A ficção como fábrica de história

Uma incursão pelos personagens, prazeres e mortes da Grécia antiga
01/10/2004

De ossos gregos és nascida,
santos ossos, na verdade,
como outrora, destemida,
salve, salve, Liberdade!
Hino da Grécia

Na monografia A amizade, Francesco Alberoni cita pares de amigos que se tornaram célebres e que, no entanto, são meras figuras literárias: Aquiles e Pátroclo, personagens de Homero; Orestes e Pílades, de Ésquilo; Niso e Euríalo, de Virgílio[1]. Menciona também Harmódio e Aristógiton, mas neste caso terá de convir em que ambos existiram e, portanto, ninguém os inventou. Acresce que o sociólogo italiano alude à “amizade heróica e guerreira” que uniu os dois sujeitos, uma evocação de seus martírios na luta pela liberdade em Atenas, e isto sim é uma invenção.

Depois da revolução pacífica de Sólon (640-558), que impôs nova ordem político-econômica à vida de Atenas, rompeu-se a legalidade constitucional e a cidade veio a ser governada por Pisístrato (600-527), promotor de uma administração que, segundo Aristóteles, revelou mais o estadista do que o tirano[2]. A ditadura, de pendor populista, incrementou os avanços sociais da era soloniana e travou a influência da nobreza, punindo grandes famílias, como a alcmeônida, com o banimento e o confisco da terra. Na política, substituindo-se à aristocracia, ascendia a classe média com apoio dos pobres. Atenas prosperava e sua riqueza produzia benefícios que uma crescente maioria compartilhava.

Morrendo Pisístrato, sucederam-lhe os filhos, que mantiveram a descendência de Alcmeôn no exílio. Hípias, o mais velho, administrava a cidade, Hiparco se dedicava ao fomento das artes. Eles governaram de modo igual ao pai, garante Aristóteles[3], e encerrariam pacificamente a gestão se não tivessem consentido, após 13 anos, a ingerência de assuntos privados nos assuntos públicos.

Vivia nessa época em Atenas o sobredito Aristógiton, cidadão de classe média e erastes de Harmódio, este “no apogeu de sua beleza juvenil”, nas palavras de Tucídides, que reconstitui passo a passo esse drama grego[4]. A paixão era recíproca, mas os encantos do rapaz, tendo seduzido Aristógiton, também seduziram Hiparco, que pediu seu favor e foi rejeitado. A desdita amorosa lhe inspirou uma desforra: convidou a irmã de Harmódio para um ato religioso e, publicamente, expulsou-a do mesmo, alegando que não houvera convite algum. Aristógiton, imaginando que o poderoso rival ainda haveria de usar a força para lhe arrebatar o eromenos, desesperou-se e, com a cumplicidade de Harmódio, resolveu matá-lo. Amedrontava-os, contudo, a certeza do castigo, por isso deliberaram ampliar a conjura, arregimentando descontentes em projeto para derrubar a tirania pisistrátida. Não eram muitos, mas esperavam adesões no momento próprio.

Sobrevieram, em 514 a.C., os Jogos Panatenaicos, e os revoltosos, considerando que na procissão inaugural poderiam portar suas armas sem despertar suspeitas, decidiram agir.

Hípias, com a escolta de mercenários, deslocara-se para um subúrbio extramural de Atenas, o Cerâmico, onde a procissão começaria. Era o bairro dos fabricantes de vasilhas, das habitações populares, dos prostíbulos, e uma grande multidão ali se aglomerava. Hípias dispunha a ordem de entrada dos diversos grupos na cidade e conversava prazerosamente com quem quer que o procurasse. Aristógiton, à distância, observou que, entre os interlocutores do tirano, figurava um dos sócios de seu movimento, e acreditou que aquela prática era uma delação. Em pânico, julgando-se descobertos e em vias de detenção, os conjurados, que já traziam seus punhais à mão, desistiram de atentar contra Hípias e entraram na cidade com a procissão, no intuito de ao menos se vingar daquele que lhes dera tantos dissabores. O irmão de Hípias encabeçava o desfile, que já ia pelo Cerâmico Interior, na ágora de Atenas, com destino à Acrópole. Defronte ao templo de Leocórion, os dois amantes alcançaram Hiparco e o mataram. Harmódio foi prontamente abatido pelos soldados. Aristógiton, aproveitando-se da confusão, tentou fugir, mas foi perseguido, apanhado e morto.

Hípias, que ainda se encontrava no Cerâmico Exterior, foi avisado. Ele ignorava a dimensão do movimento e, por cautela, como se nada de anormal tivesse acontecido, ordenou aos hoplitas, nos quais não confiava, que se desfizessem do armamento e se afastassem, dando a entender que lhes queria falar em separado. À sua ordem, os mercenários da escolta, que já empunhavam suas armas, apossaram-se também das que estavam no solo e deram início à repressão, isolando todos os que traziam punhais, pois a autorização de porte, no cortejo, restringia-se às lanças e aos escudos.

Estava sufocada a sedição.

Heródoto comenta que, com a morte de Hiparco, Hípias, temendo novo putsch, passou a governar com mão de ferro[5], acrescentando Tucídides que mandou matar muitos cidadãos[6], mas, na tradição grega, verificou-se uma curiosa desordem cronológica: o terror, que é posterior ao episódio sangrento do Leocórion, recuou no calendário, e Harmódio e Aristógiton, seus únicos causadores, transformaram-se em suas vítimas, granjeando a fama de mártires da liberdade ateniense.

Muitos fatores teriam concorrido nessa deturpação e um deles foi o renascimento do prestígio nobiliário após 514, nutrido por segmentos da população que já não se satisfaziam com o conforto material advindo da gestão pisistrátida e repudiavam a opressão superveniente. Mas a conquista da liberdade, que se impunha como a ambição dominante, tinha entre os ricos um desdobramento: a revalidação de antigos privilégios, como o latifúndio e a reserva de cargos. As velhas raposas da política ateniense, que se preparavam para novo assalto ao poder, adotaram os sediciosos mortos como seus representantes. Fizeram dos cadáveres, bandeiras, e as clarinadas vieram da pena de Alceu, poeta de Lesbos:

Eu coroarei de mirto a minha espada,
como a de Harmódio honrada,
e como a de Aristógiton, o forte,
quando ao sevo tirano deram morte,
e Atenas libertada
foi à igualdade antiga restaurada.[7]

Alceu, sobre pertencer a uma família de soberba extração social e, sublinha Donaldo Schüler, identificar-se politicamente com os interesses de sua classe[8], possuía motivações pessoais para glorificar os matadores de Hiparco: seus irmãos Kikis e Antimênides tinham cometido crime similar contra Melâncros, tirano de Lesbos. Além do mais, seu arroubo poético-partidário era falso. Proclamava a morte do tirano, mas quem governava e, até então, sem qualquer laivo de uma seva tirania, era Hípias, “administrador capaz, prudente” ao juízo de Aristóteles[9], e não Hiparco, que capitaneava o meio artístico. Proclamava a libertação de Atenas, estabelecendo relação de causa e efeito entre a morte de Hiparco e a queda de Hípias, quando esta teve lugar quatro anos depois, em 510 a.C., por motivos outros e independentes, decorrendo de ato militar dos espartanos de Cleômenes, auxiliados pelos alcmeônides de Clístenes, ao cabo de uma velha questão cujo punctum saliens, ainda conforme Aristóteles, era “a amizade que os Pisistrátidas tinham com os habitantes de Argos”, cidade rival de Esparta no Peloponeso[10]. Proclamava, por último, a restauração, mas a volta ao passado, nos termos em que o poeta a concebia, jamais aconteceu: a eleição de Iságoras em 508 a.C., manobra alcmeônida para guindar-se à antiga hegemonia, esbarrou na resistência de um membro do clã, o próprio Clístenes, que se adjudicou o mando e cujo primeiro ato, de inspiração pisistrátida, foi a derrubada dos derradeiros cartórios da nobreza.

Adverte Dennys Page que, para os gregos, “a Ilíada se revestia de tal interesse e autoridade pelo fato de ser considerada um relato histórico”[11]. O poema de Alceu terá cumprido igual papel, pois o século dos historiadores não havia chegado e a literatura era um dos veículos em que passado embarcava para alcançar os pósteros. Outros eram as artes, como a música e a escultura: os nomes dos amantes que sonhavam com a “liberdade” inspiraram numerosas canções populares, um hino patriótico composto por certo Calístrato e até um grupo escultórico de Antenor, instalado na ágora de Atenas.

Em 480 a.C., durante a invasão persa, Xerxes fez tábua rasa do passado ateniense, destruindo seus monumentos. Entre os poucos que preservou, estava justamente aquele que aludia não à história, mas à lenda, o conjunto de Antenor, que trasladou para Persépolis. Mas o governo ateniense não negligenciou a lembrança dos supostos heróis e, em 477 a.C., tão logo os persas se retiraram, encomendou aos escultores Crítio e Nesiotes peça idêntica à roubada — hoje no Museu Nacional de Nápoles em cópia que, dizem os peritos, é romana. E mais: reputando Harmódio e Aristógiton grandes benfeitores da cidade, mandou gravar suas efígies em moedas e contemplou seus descendentes com isenção de impostos e direito vitalício à hospitalidade pública no Pritaneu. Tinha ensinado Alceu:

Em prezada memória
viverá para sempre, eternamente,
Harmódio, a tua glória,
e a tua, Aristógiton valente.

Marchava o século, e quando se anunciaram à Grécia aqueles que escreveriam seus anais, já Harmódio e Aristógiton eram vultos intangíveis de uma galeria de cristal, sobranceira à controvertida arena da História, já não pertenciam ao catecismo aristocrata, mas ao panteão de Atenas.

O primeiro historiador grego pouco fez para resgatar a crônica, até então secreta, dos impetuosos namorados. Se é certo que Heródoto (484-420), quanto aos efeitos da morte de Hiparco, assevera que se esgotaram no fechamento do regime, atribuindo o mérito da libertação de Atenas à aliança espartano-alcmeônida[12] e descrevendo as ações dessa campanha[13], não é menos certo que mascara o que teria compelido Harmódio e Aristógiton ao impensado levante, receando, talvez, que a divulgação viesse a desgostar quem cultuava ou estimulava o culto àqueles santos ossos. O sexo entre homens e, sobretudo, entre adultos e adolescentes, tinha numerosos adeptos na cidade, mas não se pode afirmar, como Lambert, que a pederastia evoluíra “ao ponto de se transformar numa instituição social estimada, desempenhando funções precisas e vitais”[14]. Não era bem assim. Crê Morali-Daninos que essas caracterizações da sociedade grega decorrem, antes, da “projeção pessoal” de alguns autores[15], e com efeito, lê-se no insuspeito Platão, em tom de queixa, que os pais atenienses contratavam seguranças para proteger os filhos do assédio dos adultos, que muitas pessoas consideravam “vergonhoso” que um jovem se entregasse a um amante, e que, enfim, aquele que se entregava era ridicularizado pelos seus coetâneos[16]. Aristófanes, em múltiplas passagens de As nuvens, condena com veemência as práticas homossexuais, inclusive a pederastia em seu sentido estrito[17], mas é em Lisístrata que parece registrar com maior isenção e verossimilhança o status do amor masculino entre os gregos de seu tempo, não muito diverso daquele que nos dias de hoje ainda vigora. A certa altura, diante da irredutível continência das mulheres, diz o Embaixador Espartano:

— Acho que se Lisístrata não resolver logo, vamos ter que apelar para um Lisístrato.

O Magistrado ironiza:

— (…) nós, atenienses, diferentes de vocês, bons espartanos, não temos inclinação para substituições como essa.

Retruca o outro:

— Na aparência, amigo. O mundo sabe que vocês também, atenienses, não desdenham de todo certas variações, desde que discretas.

Prudentemente, Heródoto menciona a conjura, o atentado das Panatenéias, mas a sedução de Hiparco, no leito, por “um homem de grande beleza e esbelto”, é apenas um sonho.[18]

Tucídides (465-395) reclama que “nem os helenos de fora” (Heródoto?), nem os próprios atenienses, ofereciam um relato acurado do incidente, e sobre desvelar, por fim, as fisionomias que seu antecessor rebuçara, ultimando o script daquilo que chamou, com sóbria descerimônia, “um caso amoroso”, confirma que a ruína da ditadura não deveria ser creditada ao povo e tampouco a Harmódio e Aristógiton, mas aos espartanos.[19]

Toma corpo certa oposição à centenária fantasia, como em Aristófanes (445-386), pela voz de Lisístrata:

Vocês já se esqueceram de que, quando usavam a túnica de escravos, foram os espartanos que vieram de espada em riste e puseram em fuga as hostes dos tessálios, mercenários de Hípias, o tirano? Eles, e eles sozinhos, lutaram a nosso lado naqueles dias de amargura, nos livraram a nós do despotismo e graças a eles nossa nação pôde trocar a túnica servil pela toga de lã dos homens livres.

Platão (428-348), entendido no amor masculino e erastes de nada menos do que três eromenoi, já não poderia e nem desejaria negar a ocorrência pederástica. Ao contrário, saúda-a, e sendo Platão, confere-lhe instância política, prelecionando via Pausânias:

(…) não é útil aos tiranos que se formem nos seus súditos sentimentos nobres nem essas amizades vigorosas, essas comunidades de coração que o amor, por excelência, se apraz em suscitar. Nossos tiranos, aqui mesmo, aprenderam-no por experiência: a paixão amorosa de Aristógiton e a firme amizade que lhe votava Harmódio em paga, acabaram por dissolver o seu império.[20]

Em suma, a reação do saudosismo aristocrata, que Platão caldeia num exótico refogado de suas convicções, do legado alcaico e, decerto, das crendices da época: antes e depois da morte de Hiparco, outros governantes tinham sido assassinados por jovens que eram seus amantes, como Periandro de Ambrácia, Arquelau da Macedônia, Alexandre de Feras, e porque eram tiranos, frisa Tannahill, “a pederastia adquiria um toque de empreendimento político, uma reputação de amor à liberdade, algo que não feria os olhos atenienses”[21]. A mesma constatação de Flacelière: tais atentados contra tiranos conferiam prestígio político ao amor masculino, embora inspirados “pelo ciúme ou por vingança amorosa”.[22]

Aristóteles (384-322) corrige seu mestre, lembrando a diferença entre conspirar contra a pessoa dos governantes e contra seu poder:

As conspirações contra a pessoa têm por causa os ultrajes, e, pois que os há de muitas espécies, cada um deles vem a ser uma causa particular de ressentimento. Ora, a maior parte daqueles que sofrem ressentimentos conspiram para se vingar e não para se apoderar do poder. Tal foi a sorte dos filhos de Pisístrato.[23]

Era uma interpretação curial do relato de Tucídides, do qual se depreende que a questão do poder, para Harmódio e Aristógiton, era intercorrente ao temor do castigo.

Prevaleceria, contudo, a versão heróica, e por volta de 330 a.C. Atenas celebrava o retorno das estátuas roubadas por Xerxes, um preito de Alexandre, que viera de conquistar a Pérsia. A lenda sobrepunha-se às vozes dissentâneas e ao seu tempo. No século 16, empolgaria o infeliz ministro de Henrique VIII, Thomas More, que verteu para o inglês o hino de Calístrato, e ainda hoje se divulga, como na citada monografia de Francesco Alberoni. Passaram-se dois mil anos e as estrelas de Harmódio e Aristógiton ainda cintilam no universo mítico dos homens, como aqueles pontos de luz que, há muito extintos, continuam no firmamento com seu brilho enganador. Donde se conclui que o sociólogo italiano, errando, pôde acertar: como as personagens de Homero, Ésquilo e Virgílio, os ditos libertadores de Atenas não pertencem à história da raça humana, mas às dimensões que ela criou com a força da imaginação.

Notas

[1] ALBERONI, Francesco. A amizade. Rio de Janeiro: Rocco, 1989. p.133.

[2] Constituição de Atenas, 16.

[3] Constituição, 17.

[4] História da Guerra do Peloponeso, I, 20 e VI, 53 et seq.

[5] História, V, 55 e 62.

[6] História da Guerra do Peloponeso, VI, 59.

[7] A espada e o poeta. In: Poesia. Clássicos Jackson. Rio de Janeiro, 1952. v.1, p.9.

[8] SCHÜLER, Donaldo. Literatura grega. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985. p.47.

[9] Constituição, 18.

[10] Constituição, 19.

[11] O mundo homérico. In: LLOYD-JONES, H. O mundo grego. Rio de Janeiro: Zahar, 1965. p.15.

[12] História, VI, 123.

[13] História, V, 62 et seq.

[14] LAMBERT, Royston. A pederastia na idade imperial. Lisboa: Assírio & Alvim, 1990. p.24.

[15] MORALI-DANINOS, André. História das relações sexuais. Lisboa: Estúdios Cor, 1974. p.74.

[16] O banquete, IV.

[17] As nuvens, vv.970-80.

[18] História, V, 56.

[19] História da Guerra do Peloponeso, VI, 53.

[20] O banquete, IV.

[21] TANNAHILL, Reay. O sexo na História. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. p.96.

[22] FLACELIÈRE, Robert. A vida quotidiana dos gregos no século de Péricles. Lisboa: Livros do Brasil, s.d. p.124.

[23] A política, VIII, 8, 9.

Sergio Faraco

Nasceu em Alegrete (RS), em 1940. É autor, entre outros, de Dançar tango em Porto AlegreRondas de escárnio e loucura e Lágrimas na chuva.

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