O som, a cor e o cheiro das nossas ruínas

Lídia Jorge é um dos grandes nomes da literatura portuguesa atual. Seus romances trazem fascinantes continuidades e descontinuidades
Lídia Jorge, autora de “A manta do soldado”
01/10/2004

À minha irmã emigrante

 

“Ato ou efeito de destruir”, “destruição, extermínio”, do Latim ruina, “queda, desgraça, infelicidade, desventura”…, também chamamos de ruína àquilo que sobrevive à morte, ao embate, à carnificina, são os restos que nos lembram da pujança. Lembro-me de ter visitado há quatro anos as impressionantes ruínas de São Miguel das Missões (RS), de ter adentrado a igreja e ido em direção a uma capela-mor inexistente pela nave central de paredes erguidas até a lembrança de um teto. As orações feitas nessas ruínas talvez comuniquem diretamente à divindade os desejos dos fiéis, pois o teto é todo o céu que a vista do penitente ou turista curioso pode alcançar.

As ruínas se reportam a uma história externa que historiadores e arqueólogos tentam deslindar, mas lembram àqueles que com elas tiveram alguma espécie de privança uma história interna que passa pela saudade, ou pelo repúdio, pela verdade e pelos silêncios, pelo solilóquio desejoso de ser diálogo e pelo discurso que se ergue e soçobra em paredes repletas de aranhas artistas.

Dez anos separam os romances A costa dos murmúrios de A manta do soldado, extraordinários, ambos da escritora portuguesa Lídia Jorge. A editora Record trouxe este ano ao Brasil o primeiro citado, publicado em Portugal em 1988, dando prosseguimento necessário, ainda que moroso, à publicação das obras da autora. Em 2003, a mesma editora publicou A manta do soldado, felizmente renomeado, pois em 1998, quando foi lançado em Portugal, o romance recebia o nome lastimoso de O vale da paixão.

Desconheço os critérios de escolha que animaram o projeto da editora, mas os romances têm continuidades e descontinuidades fascinantes para o leitor brasileiro e em ambos as ruínas não rejuvenescem tanto a ponto de fazer esquecer o seu destino de resto, mas dão a ilusão do cheiro e do som, que como corrigiu a narradora de A costa dos murmúrios, Eva Lopo, “Não, não é pouco o cheiro e o som” (p. 42). O hotel Stella Maris e a casa de Valmares são espaços acesos de ambigüidades nas narrativas — “da ambigüidade surgiam acontecimentos férteis e calorosos como se nascessem de verdades” (A manta…, p. 18), paredes firmes que sustentam uma paz dificultosa, pronta a ruir.

Em A manta do soldado, o objeto que nomeia a obra é uma parte da herança deixada por um pai/tio à sua filha/sobrinha. Francisco Dias é o patriarca de uma família presa por fios prontos a se romper a uma terra de emigrantes, cujo desejo de evasão foi despertado, segundo a mágoa do pai, pelo filho mais novo, Walter Dias, desde sempre completamente dissociado do projeto centralizador do pai. Se o destino do caçula não parecia ser o de cavador, o pai resolveu encaminhá-lo à vida militar, lá adquiriu o seu bem para herança. A manta também se converteu rapidamente em matéria para outros tecidos, entre verdades e desejos recalcados dos Dias, dizia-se que mulheres dos mais diversos países haviam se deitado sobre a manta e que a história dissoluta da vestimenta havia começado na própria terra com Maria Ema Baptista. Esta, engravidada e abandonada pelo namorado, casou-se com o irmão dele, Custódio, graças ao plano de Francisco para salvar a honra dos Dias.

Maria Ema é ave que não voa, daí o desinteresse de Walter, esperou, pariu e esperou, com a porta trancada até que o velho amor voltasse, mas só cartas com pássaros exóticos davam notícia da trajetória dele em permanente viagem. Um dia, ela destrancou a porta e teve três filhos, encontrou um parceiro sem harém, responsável pelas crias, guardião do ninho, mas continuou a esperar porque o coração é surdo às conveniências do corpo que se acomoda à passagem dos anos. O patriarca Francisco jamais viu Maria Ema com bons olhos, afinal agricultores não têm simpatia pela paixão dessas grandes aves por tenros brotos…

A narração cabe à filha de Maria Ema e Walter e se inicia com a recordação da visita clandestina do pai ao quarto da menina em uma noite chuvosa na casa de Valmares. Visita esta tão cheia de conseqüências para a mulher de Custódio. As emas são aves rústicas que sobrevivem à seca, no entanto não suportam grandes períodos de chuvas, pois suas penas não são impermeáveis e o excesso de umidade pode ser fatal para os filhotes. Assim, a visita em época chuvosa trouxe conseqüências, e, ao longo de boa parte da narrativa, ela acorda mais detalhes na memória da narradora.

A princípio, o encontro desnuda um diálogo interdito entre um pai marcado pela culpa, a prometer uma fuga e uma outra vida em terras distantes, e uma filha que se cala, não porque não havia o que dizer, mas porque o havia em excesso — “queria dizer-lhe que não lhe devia nada, pelo contrário, que tudo estava certo como uma conta de multiplicar bem contada” (p. 14). Marcado pela ilusão da falta, o pai tenta supri-la com discurso, mas a filha “estava rodeada de objectos e seres deixados por ele, imagens, ideias e fundamentos, tecidos, (…) e se tinha desejado aquele encontro, era só para lhe explicar como vivia com ele, na ausência dele, por tudo isso que possuía” (p. 14).

Enquanto todos os Dias ainda habitavam a solidez pronta a ruir da casa de Valmares, os fragmentos da sua memória eram cerzidos pela filha de Walter e constituíam a sua herança, como o álbum de pássaros formado por ela a partir dos desenhos enviados junto às cartas do pai pródigo. Só depois que todos partiram — os irmãos Adelina, João, Inácio, Luís, Manuel, Joaquim e seus cônjuges — a memória começou a ser conspurcada pelo disse-me-disse dos que pressentem a própria culpa, mas estão habituados a culpar o mesmo, o filho “depravado, que a natureza fazia nascer no seio duma família composta, para que o equilíbrio se mantivesse, para que o mal não fosse só dos outros” (p. 58). Apenas um fica, guardião da casa arruinada a mimar a mulher com guarda-sóis de folgar no jardim, cadeiras de vento e trepadeiras, a ouvir as palavras do pai mais e mais dissociado de um mundo em transformação, dos filhos que também se vão e da filha que herda com o casamento, Custódio de todos, coxo e atado à casa de Valmares. Todos os dias depois da diáspora dos filhos, o velho Francisco agradecia a Deus pelo pé manco do filho que ele julgava incapaz de partir.

Espalhados pelas novas partidas, Estados Unidos, Canadá, Venezula…, os filhos de Valmares só respondem às cartas do irmão que suplicava pela sua volta para que se resolvesse o destino da casa, com tramas de perversões protagonizadas por Walter, a quem paradoxalmente eles solicitavam que Custódio recorresse, afinal o irmão mais novo era o único que não estava encaminhado como eles. Durante dois anos, a correspondência em português sofrível, tão esquecido quanto a velha pátria, se acendeu contra o irmão, entre os irmãos, a uni-los pelo ódio contra aquele que ignorava “que é preciso fazer verdadeiros esforços, (…) [e] ainda desenhava pássaros e deitava mulheres por cima duma podre manta de soldado” (p. 190). Enobrecidos pelas conquistas advindas do suor vertido em novas pátrias, os Dias dão azo aos recalques dispendiosos para a ótica do capital, tecendo tramas onde figuram toda a sorte de dissoluções morais, incluindo o mais grave interdito, o incesto.

As cartas dos Dias são um discurso que tece e retece o rancor, todavia a sua mais decisiva conseqüência é a corrupção da memória da filha de Walter e Maria Ema. Outrora, na infância, a menina modificava e reconstruía a memória da ausência com narrativas arcaicas, fragmentos de histórias, desenhos, olhares e blasfêmias do avô. As cartas passam, porém, a convocar imagens inconciliáveis com a trama de conforto e afetividade: “Como poderia invocar outras imagens dispersas, limitada que estava pela insignificância das vagas notícias dos factos, confundidos na recordação da alma privada” (p. 207) e motivam um acerto de contas que também se faz pelo discurso narrativo: “percebia que não podia continuar a viver se não aniquilasse a vida de Walter” (p. 208).

“Ela sabia, tal como os Dias desde sempre tinham sabido, que não se atinge verdadeiramente a reputação de alguém, enquanto não se atinge o local reservado de seu sexo” (p. 209), assim a filha constrói pequenas narrativas, uma delas chamada “O Soldadinho fornicador”, cujo objetivo era o exorcismo das imagens dispersas e corrosivas das missivas dos Dias. Historietas não endereçadas a esses cegos para sutilezas alheias, mas ao pai, a quem vem a encontrar, quinze anos depois da visita furtiva e longínqua cheia de promessas tão bem intencionadas quanto impossíveis. A filha de Walter encontra o pai na Argentina a falar nem português nem castelhano, aliás, ele só consegue se lembrar da língua materna no momento em que decifra a identidade do personagem das histórias da filha e a põe para fora de seu bar, chamado obviamente de Los Pájaros.

Poucos meses depois do encontro com a filha, os Dias informam à casa de Valmares que seu filho pródigo havia dissipado todos os bens e que não deixara nada de seu, além da preocupação com os gastos do enterro. Só não poderiam saber da última novidade do morto, a derradeira herança chegada pelo correio, um embrulho “com a letra elegante de Walter, (…) contendo ainda o rabisco dum pássaro — Deixo à minha sobrinha, por única herança, esta manta de soldado” (p. 235).

Em uma velha carta dos Dias, uma declaração lançada como ofensa ganha novo significado quando o núcleo de Valmares contempla a velha manta dobrada, “a manta dele é um Atlas” (p. 186). O presente a ser dado à filha era a promessa do mundo inteiro que tanto assustava os Dias. Isso porque a emigração não mudou o destino dos irmãos dispersos pelo mundo, continuaram a missão de cavadores, para quem o único suor sagrado era o de comer o pão que o diabo amassou. Antes de se despedir para sempre da filha, ela ainda perguntou ao pai, na entrada de Los Pájaros, por que ele desenhava pássaros. A resposta era inapreensível mesmo para ela, também cativa do chão de Valmares, “Não tenhas ilusões, foi sempre para o meu prazer, para mais nada…” (p. 226).

A Manta do soldado atravessa boa parte do século 20. A voz de Francisco Dias parece atualizar o camoniano velho do Restelo vociferando contra o desejo de expansão dos nautas portugueses, parece acordar a voz da velha aristocracia rural. Mas há diferenças…, Eduardo Lourenço, no seu Labirinto da saudade, nos lembra que “a ‘emigração’ simbólica de que Camões seria agora o exemplar e mítico patrono (…) foi expansão, conquista, descoberta, gesta desmedida de pequeno povo convertido em ferro e lança da burguesia empreendedora e mundialista do Ocidente”, bem diferente foi a “emigração dolorosa” que fez abalar muitos Dias de aldeias e vilas para novas terras, na América e na África. Se as primeiras fotos que chegavam a Valmares sugeriam um inferno que Francisco Dias jamais entendeu ser mais agradável a seus filhos que a terra de seus antepassados, até sangue as cartas daqueles que labutavam sem descanso continham, mais uma vez vale nos reportarmos à questão de Eduardo Lourenço: “se ‘lá fora’ é esse inferno que muitos desejariam supor para se tranquilizar, julgando assim exaltar por contraste as doçuras do ‘pátrio ninho’, que espécie de inferno seria o caseiro para ter tido coragem e vontade de abandoná-lo?”. Tanto suor e sangue premiaram os Dias com um rol de benefícios que legitimou a gesta de muitos emigrantes portugueses do século 20.

A manta do velho soldado Walter é, diferentemente, a suprema herança para a ambigüidade do lar abandonado, para a filha/sobrinha que ficou, é um atlas que contém a memória de uma partida fundada no trabalho, mas também no prazer de quem não precisa de motivos além do contentamento para desenhar pássaros.

Tanto a voz da filha de Maria Ema e Walter quanto a de Eva Lopo, narradora de A costa dos murmúrios, encenam a tensão própria da escrita, nascida do descentramento do autor em relação à linguagem. Edson Luiz André, no seu ensaio O inconsciente e as condições de uma autoria, afirma que o poeta T. S. Eliot em The Waste Land “ilustra a necessária condição de exílio de quem escreve e o escrito que surge como testemunho desta condição”. Ora, as narradoras de Lídia Jorge promovem esse descentramento, favorecido pela distância do tempo da narrativa, deslocam a si mesmas para construir outro sujeito e ficcionalizam o processo de escrita que implica uma “condição de exílio daquele que enfrenta o desafio de escrever” (Edson Luiz André). Em vários momentos da narração de Eva, por exemplo, ela esclarece o seu interlocutor mudo afirmando que, naquele tempo, no tempo do conto “Os gafanhotos”, Evita era ela. A herdeira da manta liberta-se do pai transformando-o em outro, abalando autoridades constituídas pela sua memória afetiva. Assim, as personagens procedem na narrativa de forma análoga ao sujeito empírico e histórico que se diferencia do sujeito que seu escrito produz.

A narradora de A manta do soldado reconstrói a visita de seu pai em uma noite chuvosa ao longo de boa parte da narrativa, mas o valor dessa experiência vai além das promessas e da consciência do abandono, ou seja da realidade. “Só a verdade interessa” (A costa…, p. 91), mas ela é o todo tecido em seus silêncios pela ficção, pelos cheiros e sons, enquanto o real é disperso e escorregadio, pronto a se romper (p. 91). A filha de Walter e Maria Ema lembrava-se que “as promessas feitas [pelo pai] nessa noite tornaram-se inesquecíveis, porque o peso da água nas telhas retirava-lhes a inteligibilidade mas acrescentava-lhes uma batida de música à medida que criavam cor e velocidade entre os olhos e os lábios de Walter” (A manta…, p.20). Para além do rascunho das promessas, só interessava a verdade do cheio, da cor e do som.

A costa dos murmúrios é o romance mais referido de Lídia Jorge, talvez o mais estudado. É dividido em duas partes, o conto “Os gafanhotos”, escrito por alguém que não tomou parte nos acontecimentos narrados, e o romance propriamente dito, narrado por Eva Lopo muitos anos depois, em resposta à verdade da primeira narrativa, ao tempo em que ela era conhecida como Evita. No primeiro capítulo depois do conto, a narradora esclarece ao seu interlocutor mudo, autor do relato de abertura, os limites da narrativa — “Esse é um relato encantador. Li-o com cuidado e concluí que nele tudo é exacto e verdadeiro, sobretudo em matéria de cheio e som” (p. 41). E se o interlocutor parece considerar que o índice é pouco satisfatório, ela precisa “Não, não é pouco o cheiro e o som. Se entender apenas o cheiro da fruta que lá tão rapidamente apodrecia (…). Pense, porém, como o som das figuras pode ser a sua voz, o perfume delas pode ser tão intenso que constitua sem querer o halo perfeito das suas almas.“ (p. 42). Assim, a escritura deve procurar correspondências pequeninas para iluminar um pouco a nossa treva (p. 43).

Os narradores de A costa dos murmúrios estão temporalmente muito afastados dos acontecimentos da narrativa, ou seja da guerra colonial em Moçambique. Sobre esta, é importante que se resguarde a ressalva de Eva Lopo, de que a História “é um jogo muito mais útil e complexo do que as cartas de jogar” (p .42)… Depois da Segunda Guerra Mundial o anticolonialismo ganhou corpo com a denúncia da servidão sofrida pelos povos da África portuguesa. Pressionado até por vozes internacionais, o ditador português Oliveira Salazar idealizou alterações na sua política colonial, que continuava a ser, a despeito das modernizações “para inglês ver”, colonial! Apenas em 1961, por exemplo, desapareceu a abstrata condição jurídica de assimilado com o Estatuto dos Indígenas, que “concedia” maior participação dos povos na administração dos negócios das colônias. Em Moçambique, um incidente catalizador do combate contra as formas portuguesas e ditatoriais foi o Massacre de Mueda que causou a morte de vários trabalhadores que contestavam o sistema, criando uma intensa mobilização contra o colonialismo. Logo depois, em 62 com a criação da FLELIMO, muitos passos políticos vieram a ser dados para a independência de Moçambique. Walter Dias, em A manta do soldado, faz menção a uma África a arder e acaba por preferir as Américas.

As atrocidades de uma guerra que se afirma no desejo de escravidão do outro estão no relato de Eva Lopo, não nos “Gafanhotos”, neste só a harmonia interessa e até a violência contra as mulheres pode ser narrada muito “naturalmente”: “Naturalmente o capitão esbofeteou a mulher. (…) Com a face esbofeteada, era naturalmente cada vez mais linda. (…) Naturalmente o marido se aproximou dela, e a puxou para si, e ela entregou a cara, a lágrima e o cabelo, encostando tudo isso no ombro dele, naturalmente” (p. 30). Em um tempo em que Eva Lopo era Evita, noiva do jovem alferes Luís Alex, ela já pressentia a ruína na transformação dele que, antes de se alistar, em Portugal, fora um estudante de Matemática interessado em descobrir uma lei que resolvesse as equações de qualquer grau. A guerra transformou Luís Alex, apelidado de Evaristo Galois em época de Universidade, em Luís Galex, porque o seu divertimento em África passou a ser acertar a cloaca das galinhas com tiros de pistolas e fazer pose para fotografias ao lado de cabeças de negros espetadas em paus ao longo de estradas que conduziam crianças às escolas. Perguntado por Evita se voltaria à Matemática, Luís Galex respondeu: “Nunca”, pois na guerra “Descobri-me” (A costa…, p. 62).

Evita partira de Portugal para se casar na África e o conto narra a festa do casamento no Hotel Stella Maris, mesma festa da bofetada “natural”. O hotel era uma ilha de paz para as esposas dos oficiais portuguesas que lutavam na mata contra a vontade de ser livre, era o império colonial protegido dos desejos de liberdade. Lá dentro, porém, também se vivia na obediência a leis de ferro, casais que brigavam em voz baixa, para não abalar o sossego da filial da casa portuguesa na África. “O sussurro dum tempo colonial doirado vinha ali aportar” (A costa…, p. 45), depois a ilusão corroída pela derrota de muitas forças portuguesas transformou em resto esse bastião, convertido em ruína para as brincadeiras das crianças e desafogamento das aves.

No conto, conhecemos o casal Forza Leal e Helena de Tróia que funciona como paradigma para Luís Alex, pois até a cicatriz de seu capitão ele almeja. O alferes também deseja o sacrifício da liberdade de Evita, representação de prova de amor oferecida por Helena a Forza Leal. Mas a noiva não se propôs a ser reflexo baço da beleza da outra, dos cabelos vermelhos e dos gestos de pomba… da discórdia. No conto, Helena não fala, só quando Eva assume o discurso, a narradora relembra o contrato diabólico da outra com as divindades de plantão. Trancada enquanto Forza Leal estava preso à guerra, Helena oferecia a todos os deuses e diabos a sua liberdade em troca da morte do homem que jogara a roleta russa com outro que ela amou. A “alegria doméstica triunfante” (A costa…, p. 74) era pura representação para uma mulher cuja beleza era literalmente “a causa do conflito”. Em uma visita à cativa, Evita surpreende a beleza do corpo da outra e quase cede ao convite: “Tranca a porta“ (p. 246), “Vamos vingar-nos deles?” (p. 248).

Erótico também é o desejo do alferes de ser como Forza Leal. Cativo da cicatriz do capitão, que a ostentava em camisas transparentes, Luiz Alex repete os gestos e as palavras, mas talvez lhe falte a verdade sinestésica que interessa. Diante das fotografias sorridentes do alferes ao lado do horror da guerra, Evita tentava achar “o momento, o brilho, a palavra que desencadeava na pessoa o gosto de degolar. Se achasse isso através do que conhecia do noivo, o antigo estudante de Matemática (…), ela julgaria ser capaz de compreender as hordas dos bárbaros de todos os tempos, mesmo os calados e sem espada de quem ninguém fala” (A costa…, p. 151). Se achasse a resposta talvez conseguisse decifrar o enigma da transformação de filhos em assassinos de pais, de pais em violadores de filhas, de jovens em queimadores de índios, assassinos de mendigos, assassinos…

Dois acontecimentos abrem brechas de podridão na harmonia do conto, o aparecimento de cadáveres na praia e a morte de Luís Alex. Muito embora, ao longo de toda a narrativa, Eva preencha muitos silêncios abertos nos “gafanhotos”, ela não assume tons detetivescos para a paz de espírito do leitor desejoso do real. Evita busca a verdade, arrisca-se com o jornalista da “coluna involuntária” e lentamente decifra a morte dos negros envenenados por metanol. A princípio, os cadáveres surgem nas praias, são recolhidos por caminhões de lixo e não há conhecidos, mas a morte chega ao Stella Maris, na figura do negro Bernardo, tolerado nos paços dos colonizadores. Essas mortes geram reações diversas, a mais comum é a revolta contra a ignorância de pessoas que não sabiam conhecer vinho, só depois tristeza pelos criados próximos, como o Mateus Rosé de Helena de Tróia. Aliás, muitos negros tinham nomes de vinhos, irônico designo.

Evita não se mistura às mulheres do hotel, evita o convívio, fascina-se por Helena, mas encontra os indícios disponíveis a todos que poderiam escolher entre fingir ou ignorar. Rápido, ela inventa novas escolhas, percebe que garrafas com rótulos falsos de vinho estavam disponíveis no mercado e escondiam o veneno cuja intenção era promover a limpeza étnica. Aliás, esse procedimento era uma variação do processo de esterilização em massa que trocava a castração sem assepsia por rádios. Só quando um pianista branco “se deixa” enganar, as autoridades locais realizam campanhas para que os apreciadores de vinho pudessem se proteger do veneno. O pianista não foi recolhido por caminhões de lixo, mas teve um cortejo perigoso que ameaçou a integridade do próprio Stella Maris.

A morte de Luís Alex, no conto depois da festa de casamento e da perseguição ao jornalista, é um estranho acerto de contas com a roda da fortuna. Teria o noivo procedido de forma análoga ao seu capitão depois de descobrir o envolvimento de Evita com o jornalista? Seria possível que a roleta russa tivesse acertado as contas da fortuna pelo envolvimento dos dois — Luís Alex e Força Leal — com as garrafas cheias de metanol…? Tudo longe do tempo daquela realidade que só pode ser narrada na lembrança de breves correspondências: “a pouco e pouco as palavras se desprendem dos objectos que designam, depois das palavras só se desprendem sons, e dos sons restam só os murmúrios, o derradeiro estádio antes do apagamento” (A costa…, p. 287).

A escritura resgata o resto antes do apagamento. Sobre Twombly, Bathes afirmou que ela “não é nem uma forma nem um uso, mas simplesmente um gesto, o gesto que a produz deixando-a acontecer como um rascunho, uma sujeira, uma negligência (…) Como se da escritura ato erótico forte, não restasse mais que a fadiga amorosa” (APUD, Edson Luiz André de Sousa). O resíduo não é o fracasso, é uma afirmação que persiste quando a vontade deixou de existir. É a manta que vira herança, é o hotel de pombos, é a escrita da emigração, da guerra, sem ser nenhuma dessas coisas só.

Qual é o destino da manta, o atlas da vida que não dissociou sonho, trabalho e prazer? A filha de Maria Ema e Walter cava, no meio das oliveiras, lugar para enterrar na sua terra todo o mundo, sob a tutela de Custódio que alivia o peso da sua missão. Evita deixa de ser a terceira pessoa de um conto que ressuma a harmonia provisória, pronta a sofrer as conseqüências da praga nomeada em seu título e vira a autora do passado. Manta dobrada, palavra partida, murmúrios, rótulos levados pela água do mar… da casa de Valmares partem os Dias, depois da transformação do Stella Maris em ruína, destino em trânsito, fuga do inferno caseiro que também nos formou.

No início do século 17, o padre Cristóbal de Mendonza fundou a redução de São Miguel (RS). Palco de uma história sangrenta, o que sobrou dos Sete Povos das Missões divide hoje seu espaço com vacas que exigem o calcorrear cauteloso dos arqueólogos… O que há de mais impressionante ainda em pé é parte da Igreja de São Miguel, construída no século 18 e, desde 1983, patrimônio da Humanidade. Uma redução é um complexo que inclui as casas dos índios, colégio, oficinas, pomar, cemitério, igreja, etc., mas nada disso pode ser visto hoje, só o que restou da igreja. Há quatro anos, assisti a um show de luz e som que deve fazer parte do trabalho de valorização institucional das Missões. Não sei se isso ainda existe por lá, mas durante pouco menos de uma hora, o visitante podia conhecer uma versão da história, esse jogo um pouco mais complexo do que as cartas, seus principais nomes e a dramatização de sons de combate. As pedras iluminadas em uma sincronia hollywoodiana falavam da formação do Brasil, do encontro persuasivo com a diferença, da intolerância e da força de vontade. Durante o dia, entretanto, as pedras prometem segredos aos visitantes surdos, pesados de máquinas fotográficas. O que se afirma em pé é a parede das naves que cruzam com um transepto até chegar a nenhuma capela-mor. O batistério fala da aculturação, da continuidade de uma epopéia de dilatação da fé e do império, da expansão, da violência, da rapina, dos infernos caseiros e da língua que tece as correspondências e só pode sonhar com a verdade, longe, muito longe do real.

A manta do soldado
Lídia Jorge
Record
240 págs.
A costa dos murmúrios
Lídia Jorge
Record
288 págs.
Marcella Lopes Guimarães

Professora Associada II de História Medieval na UFPR, membro permanente do PPGHIS/UFPR, Bolsista de Produtividade em Pesquisa 2 do CNPq. Escritora e criadora do blog Literistorias.

Rascunho