O jogo

Conto de João Batista Melo
Ilustração: Cesar Marchesini
01/10/2004

Uma gota se eterniza, metálica, na pia do banheiro. Nem o rapaz que se assenta mais próximo, numa banqueta na porta da cozinha, presta atenção no som que ecoa persistente. Seus olhos, assim como os de todos na sala, convergem apenas para o aparelho de televisão. Ali dentro, no espaço das vinte e nove polegadas, movimentam-se homenzinhos coloridos, alguns brancos e outros amarelos, e por baixo deles o carpete esverdeado de um campo de futebol.

O mais velho entre as pessoas na sala não ultrapassa os vinte e cinco anos de idade e se acomoda num sofá puído bem diante da TV, o braço pousado no ombro de uma mulher. Ela, por sua vez, segura a mão da criança sentada ao lado, um menino de quatro anos que, também, não desvia os olhos da tela. Em cadeiras e tamboretes espalhados pelo cômodo, há mais dois casais e três rapazes.

Um dos homenzinhos de branco toca a bola pela esquerda do campo, contorna os jogadores do time rival e se aproxima do gol. Alguém de uniforme amarelo suga a bola com os pés e a joga para o campo adversário. As pessoas na sala suspiram aliviadas. A mulher observa, para ninguém em especial, que a Seleção está segurando bem o jogo.

O início de uma partida é como o princípio de tudo. As formas e acontecimentos parecem sondar-se para descobrir o seu verdadeiro caminho. Algo ainda em formação, tateando na experiência enquanto não consegue se firmar. Como os encontros amorosos. Como os textos que vão se construindo. Ou como aqueles que nunca se constroem.

Lá fora, soa o estrondo isolado de um foguete. O homem no sofá reclama do estouro, diz que o povo se apressa.

— Nem chute no gol teve, praquê estourar bomba?

Os rapazes balançam a cabeça, concordando com a observação. Bebem em silêncio o copo de cerveja e assistem ao jogo. Naquele instante, nada no mundo parece ter uma real importância. Apenas no retângulo da tela se desenrolam os fatos que interessam. Afinal, trata-se de uma emoção inesperada, ninguém apostaria dez centavos, no início da Copa, que o Brasil chegaria à final. No entanto, lá está a Seleção enfrentando, de igual para igual, a máquina da Alemanha. É por isso que as pessoas naquela sala preferem conversar menos e apenas ver o bordado que a bola tece por cima do gramado.

Os nomes dos jogadores, subitamente convertidos em palavras mágicas, invadem o espaço da sala. A cada lance perdido ou jogada feliz, alguém murmura merda, porra ou legal e volta a se calar. Os alemães traçam ofensivas rápidas e ameaçadoras. Um brasileiro chuta contra o gol, mas a bola choca-se na trave e se desvia como um reflexo. Outro jogador elabora uma jogada bem tramada, mas que se desfaz inútil quando a bola é retida, por acidente, pela perna do goleiro alemão.

O menino diz que vai fazer xixi e a mulher se impacienta com a perturbação no instante crucial: — Vai logo!

Porém, o menino demora para sair, temendo perder o desenrolar da partida. A mulher faz um carinho em seus cabelos e diz que é só um minuto e que ele não vai perder nada. O garoto se levanta, passa no meio das cadeiras e entra no banheiro. Prestando atenção no som do televisor, que chega ali abafado como se vindo de uma casa vizinha, pergunta a toda hora “foi gol? foi gol?” e o pai, o homem sentado ao sofá, responde numa voz sem entonações: “não, faz xixi”. Ansioso, o menino molha o assento, frisos dourados aflorando sobre o plástico, uma miríade de canais que larga ali sem limpar e começa a voltar para a sala. Na saída do banheiro, ouve as gotas na pia e sente-se atraído pelo ruído, leve, quase inaudível. Olha os pingos e então os intercepta, o pequeno dedo encostando-se à boca da torneira. As gotas se espraiam, convertem-se em fonte. O garoto não se move por alguns minutos, esquecido da partida de futebol, alheio aos gritos e desabafos dos adultos, enfim se cansa, tenta inutilmente fechar a torneira, e retorna ao lado da mãe.

Quando o juiz encerra o primeiro tempo, todos se levantam com gestos de lamentação. Conversam animadamente em grupos distintos, apontando as falhas que perceberam na Seleção, as oportunidades perdidas, as ameaças que os pés dos alemães construíram rumo à grande teia do gol brasileiro. Alguns dos homens vão ao banheiro verter a cerveja e as mulheres, por sua vez, se ajuntam em volta do fogão. Numa trempe aquecem o óleo de soja e lançam na frigideira fatias de batata. Em outra, uma panela é fechada para acolher os estalos — reprodução dos foguetes em escala reduzida — dos milhos florescendo e se abrindo no branco esponjoso de um turbilhão de pipocas. O menino rodeia os cheiros, ansioso para abocanhar ambas as guloseimas.

O homem do sofá continua sentado, revendo os lances que a televisão repete em meio aos comentários do locutor. Quando se iniciam os comerciais é que ele se levanta, abre a porta da sala e olha para o horizonte. Foguetes esporádicos estouram no céu, ofuscados pela brilhante luz da manhã. Lá longe o mar responde à iluminação do dia, criando uma profusão de traços e brilhos, entre os quais os barcos são meras sombras sem definição. O homem olha para o arco da Baía de Guanabara e o domo do Pão de Açúcar lhe sugere o cupim de formigas gigantes. Ele se diverte sozinho dando rostos humanos aos titânicos seres de sua imaginação, depois volta para dentro da sala e fecha a porta para isolar a claridade. Vai ao banheiro mijar. Antes enche de novo o copo de cerveja e bebe tudo de uma vez, enquanto beija a boca de sua companheira que, por pouco, não se queima no manuseio das batatas ferventes. Diante do espelho rajado por manchas de ferrugem, sorri feliz com o começo desse dia. Todas as manhãs deveriam ser assim, somente o prazer de assistir a um jogo e beber uma cerveja, sem a balbúrdia do trabalho e da sobrevivência. Abre a torneira e passa água no rosto para espantar os vestígios de sono, trabalhara até muito tarde na véspera e agora o canto dos olhos insiste em se manter mais fechado que o normal. O choque do encontro com o líquido frio faz a pele arder, mas ele sequer treme, tornando a repetir o gesto mais algumas vezes até se sentir de novo desperto. Uma bênção a água e o esgoto, raros canais penetram no subterrâneo dos morros. Privilegiada sua favela, privilegiada sua casa, construída na região da encosta onde os fluidos circulam no encaixe dos canos.

Ele roda a torneira, fecha a braguilha, abre a porta, e, antes de sair, escuta os pingos caindo sobre a lâmina de água que flutua em torno do ralo entupido. Retorna e torce o registro com força, mas as gotas não se desfazem, mantendo o ritmo cadenciado. Dirige-se à porta, ameaça desistir, porém as gotas infiltram-se em seus ouvidos e ali se alojam num segundo que parece eterno. Volta atrás, insiste com mais força, o rosto se contraindo com a tensão do desafio, até que o registro da torneira se solta em suas mãos.

— Puta — ele grita, jogando a peça metálica num canto, e sai do banheiro, alheio ao filete contínuo que agora substitui as gotas e, devagar, eleva o nível da água empoçada no fundo da pia.

Na sala ninguém dá mostras de ter ouvido sua explosão. Não falam mais do jogo, e sim da cerveja, discutindo se aquela é a melhor e se não deveriam ter comprado garrafas de outra marca. Uma das mulheres se aproxima com o prato cheio de batatas crepitantes e todos se aglomeram em torno dela, as mãos lambuzando-se de óleo, as lâminas amarelas regadas pelos copos de cerveja.

O segundo tempo da partida já começa e o homem retorna ao seu lugar no sofá. A volta ao jogo é como retomar atividades interrompidas, relações abandonadas, projetos adiados. É preciso reencontrar o ritmo que durante o primeiro tempo se buscou construir, mas isso não ocorre de maneira repentina. Para o espectador, o processo requer também um reordenamento das referências, a inversão dos campos das duas equipes gerando um deslocamento inicial. No entanto, esse tempo de remontagem das peças não dura muito, pois em breve a bola gira como um ser autônomo junto aos pés dos jogadores e as atenções convergem outra vez para a tela colorida e luminosa.

As camisetas brancas dos alemães movem-se como um conjunto, em movimentos precisos, calculados, arquitetônicos.       Entre elas correm as roupas amarelas dos brasileiros, surpreendendo às vezes com um pequeno balé, o vaivém que confunde o adversário. Os minutos avançam com ataques sucessivos de ambas as partes, mas o gol não acontece e o letreiro registra zero a zero ao mesmo tempo em que o cronômetro corre números no canto da televisão.

Um dos homens comenta que não quer nem pensar se o jogo for para a prorrogação. Então, quando a expectativa já se cansa e os olhos se acomodam àquele movimento de idas e vindas pelo campo sem chegar a lugar nenhum, a bola é bloqueada pelo goleiro alemão que a acolhe como uma criança em seus braços, mas, em seguida, ela se rebela e salta de volta para trás, onde pés brasileiros a interceptam, recuam um pouco para depois ultrapassar o goleiro ainda perplexo, e bombardeiam a rede do gol.

Na sala, todos gritam e se abraçam, repetindo em espelho os vultos que pulam e comemoram na tela do televisor. Passa-se um instante em que a cidade ainda preserva a modorra da espera, mas, de repente, o lado de fora da casa é ocupado pelos estouros dos foguetes, que envolvem a sala dentro de um manto de sons. O homem levanta-se do sofá carregando dois rojões e o filho pede para segurar um deles, mas o pai manda que ele apenas observe. Os foguetes sobem ruidosos, num arco de luz ofuscado pelo dia. O homem dá uma rápida olhada pela favela que se estende morro afora, vendo aqui e ali as pessoas deixando, por um instante, as casas e barracos para comemorar. Retorna à sala, pega mais uma cerveja na geladeira e concentra-se na partida que prossegue. O perigo agora é a possibilidade dos alemães aumentarem a pressão e igualarem outra vez o placar.

Pouco depois, um jogador brasileiro corre pela lateral do gramado, tocando a bola ao mesmo tempo em que parece protegê-la. A televisão o mostra bem de perto, parecendo prever o que acontecerá em seguida. O jogador chuta com força em direção ao meio do campo. Outro brasileiro posiciona-se de frente para ele e, por um momento, parece encarar a bola, decidindo qual destino lhe caberia. Mas ao invés de recebê-la, vira-se de repente para o gol, deixa a bola girar por trás de suas pernas e abrigar-se nos pés do mesmo jogador que abrira o placar a favor do Brasil. Há na seqüência uma impressão de farsa teatral, como se brincassem com o adversário e o espectador, tirando ilusões de uma cartola inexistente. Quando menino, o homem no sofá via um circo montado na base da favela onde morava, bem no início de onde germinam os prédios de classe média que ilham o morro, embora muitas vezes tenha pairado em sua mente a dúvida sobre quem é ilha e quem é mar ao seu redor. Sua mãe não tinha dinheiro para pagar a entrada e o pai morrera muitos anos antes num tiroteio com a polícia. Mas os artistas do circo faziam às vezes rápidas demonstrações numa praça ali perto, divulgando os shows que aconteciam em matinês repletas de crianças. Numa dessas ocasiões, ele viu o mágico e fascinou-lhe o movimento das mãos, os lenços e cartolas de onde germinavam coelhos e cartas, o mundo aparentando algo distinto do real. No dia seguinte, sua mãe desapareceu, saiu para trabalhar na casa da família onde fazia a faxina e nunca mais voltou. Uma vizinha o criou e o pôs logo cedo numa esquina para mendigar até que ele repetiu o gesto da mãe e também partiu para não mais retornar.

Após o novo gol, os fogos preenchem o céu de toda a cidade. Desta vez, o homem não se levanta, continua atento ao jogo, esperando que os brasileiros arremessem mais bolas contra o ninho rendado que pende das traves. Ganhem de três, quatro, cinco, precisamos de muitos motivos para comemorar, o homem pensa e bebe mais um copo de cerveja.

Por mais que os alemães ataquem, parece que o cronômetro no canto da tela da TV inverteu o seu ritmo. Ao invés dos minutos se estenderem, os números escorregando lentamente, após o segundo gol eles já se movem com esperteza, sucedendo-se rumo ao fim do jogo. Contudo, eles não param nos quarenta e cinco minutos que regem o final de cada tempo, avançam para frente, recriando a sensação de um tempo que não prossegue, de ações que não acontecem. Alguém comenta que já se chegou aos quarenta e sete minutos. A mulher esclarece que o juiz está descontando o tempo parado durante o jogo e diz duvidar que os alemães marquem dois gols em poucos minutos. Um dos rapazes ri sozinho ao comentar sobre a semelhança entre o juiz e os monges de filmes de kung fu.

Não demora muito e o vulto negro do juiz apita e encerra a partida. Na sala, as pessoas não olham mais para o televisor, com exceção do mais novo dos rapazes que ainda a observa com olhos fixos, os cotovelos apoiados nos joelhos, como se ainda não acreditasse na vitória. Os outros saem munidos com foguetes e rojões. O homem do sofá toma a dianteira e aponta um foguete para o alto. Enquanto a pequena explosão se junta ao mosaico de fogos que coalha o horizonte, ele vê três homens subindo o morro pelo beco que dá acesso à sua casa. Eles têm as roupas amassadas e há uma nódoa de sangue na camisa do primeiro.

— Perdemos o jogo — é ele quem fala, um pouco ofegante.

— Não perdemos. A Alemanha perdeu — responde o homem que estivera no sofá.

— Tou dizendo que a gente nós três num viu.

— Sei.

O homem com a roupa manchada de vermelho olha os outros e sorri:

— A gente perdeu o jogo. Mas pegou o cara.

— Ele falou?

— Não.

— Putz. Faz ele falar. Depois arrasta pelo morro pra todo mundo ver e acaba com a raça dele.

Um dos rapazes que estavam na sala durante o jogo pondera que os moradores da favela estão comemorando o jogo, mas se cala e abaixa os olhos quando o homem que se assentara no sofá o encara e diz que é bom ser assim pois todo mundo saberá: só quem anda na linha tem o que comemorar naquela favela.

— Sai daqui e acaba logo com isso — ele determina.

Os rapazes esperam um instante em silêncio, talvez para contestarem alguma coisa ou apenas para retomarem o fôlego, e voltam pelo mesmo beco de onde tinham saído.

Dentro da casa, o menino termina de urinar e vai deixando o minúsculo banheiro, mas volta atrás para olhar a pia, o filete de água novamente convertido em pingos intermitentes, os ruídos das gotas contra o aro de metal no fundo do bojo. É estranho aquele gotejar assim tão estridente, como chuva em telhas de zinco, talvez o eco do banheiro, ou a imaginação dos que transitam ali dentro, ampliem o som além dos limites normais. Não há mais vestígio da água empoçada na pia e o registro da torneira foi recolocado por alguém em seu encaixe. O menino espera algum tempo, enfeitiçado pelos estalidos, mas enfim as bombas estourando lá fora o despertam para a festa da vitória. Ele sai e estende um foguete para o pai. No céu ainda faísca o turbilhão de fogos, véus de fumo dissolvendo-se na luz do sol. Um ritual que se repete em cada bairro, em cada cidade do país. O homem que se assentara no sofá pega um isqueiro e acende o foguete. E enquanto o canudo de papel jorra fagulhas e estrondos, grita bem alto:

— Brasil!

João Batista Melo

Autor de As baleias de Saguenay, Patagônia e Um pouco mais de swing.

Rascunho