Que a morte nos una

Em "O vestido azul", Doris Dörrie deixa de lado soluções fáceis para adentrar a morte e suas dores
Doris Dörrie: romance denso sobre a perda
01/11/2004

Morte. Para muitos, a separação definitiva, principalmente se quem vai é alguém que se ama. Para alguns poucos, é libertação, o fim do exílio no corpo físico, a saída do mundo irreal (aqui) para o real (lá). E para menos ainda, uma chance de encontro. Um evento radical que leva invariavelmente à reflexão, e que, se bem utilizado, pode trazer boas mudanças.

Pois é com a morte de duas pessoas que não têm relações entre si que Doris Dörrie, escritora alemã, junta Florian Weber e Babette Schröder, eles também sem contato algum, em seu último romance, O vestido azul. Mais que um romance sobre um encontro fortuito, O vestido azul é uma oportunidade de pensar sobre esse momento que todos tememos, não importa o quanto digamos estarmos preparados para ele.

Florian é o viúvo de Alfred Britsch. Enquanto Alfred estava vivo, ambos foram estilistas de moda, com relativo sucesso. O vestido azul a que se refere o título do livro é o último trabalho da dupla, que geralmente funcionava com Alfred na criação e Florian na execução. Um vestido particular, com um tom de azul criado por eles, e com uma técnica de costura também criada por ambos. Na verdade, duas criações de Alfred. Como o próprio Florian diz, ele estava acostumado a ser a pessoa que se escondia atrás da exuberância criativa de Alfred. O vestido vai para a vitrine da loja da dupla em março, Alfred morre em junho.

Ainda em março, Babette compra o vestido. Ela não pensa muito no alto preço da peça. Meio que empurrada por Albert, que a vê maravilhosa em sua criação e exclama que “este vestido vai mudar a sua vida!”, ela o compra. Babette deseja muito que algo mude em sua vida. Seu antigo parceiro, Fritz Bader, morreu em um acidente de trânsito em Bali. Babette já está há algum tempo sozinha, e conheceu recentemente um homem. E o vestido lhe parece uma chance de seduzi-lo, ainda que ela se sinta meio estranha nele.

O encontro se dá por uma vaga motivação de Florian. Ele quer fazer um desfile em homenagem a Alfred, juntar as peças mais significativas da história da dupla. E para isso, ele precisa recuperar o vestido azul. E vai atrás de Babette. O encontro dos dois servirá para consolidar uma série de mudanças em ambos, todas relacionadas com o definitivo perdão ao que aconteceu (de alguma maneira, ambos se sentem culpados pela morte dos parceiros) e com o retomar do gosto pela vida.

Paralelas – Doris é cineasta. E como uma cineasta, vai alternando o momento presente com o passado de ambos os protagonistas principais para contar a sua história. Ela alterna diversos flash-backs de ambos, Babette e Florian, para nos dizer quem são e como chegaram até esse encontro. De maneira lógica, conhecemos bastante de Babette, que é sim protagonista de sua vida, e pouco de Florian. Nos relatos deste, aprendemos mais sobre Alfred, sua vida e o fim dela, que do parceiro que sobreviveu.

Até um certo ponto, Florian é o alter ego de Dörrie. A cineasta trabalhava sempre com a mesma equipe de gravação. Entre ela estava seu marido, Helge Weindler. Cameraman dos filmes da cineasta, Veindler morreu de câncer durante as filmages de Bin ich schön?, em 1998. Alfred pode ser o marido falecido, e Florian a tentativa de passar a limpo os anos solitários de Dörrie.

A vida de Babette também segue um caminho paralelo ao de seu vestuário. Ela afirma que poderia narrar a sua vida a partir das roupas que utilizou, e como elas foram importantes. Por exemplo, quando Fritz morre, ela vai a um teleférico nos Alpes e joga lá de cima todos os pares de bota de caubói que comprou com ele durante os anos de convivência. Livrar-se do passado, jogar fora a lembrança material para tentar viver novamente, e não conseguir.

Assim, o vestido azul passa da condição de objeto para representar uma encruzilhada na vida das personagens. Para Florian, era a derradeira homenagem, e ele fará um mau uso quando conseguir estar a sós com ele, o vestido. Para Babette, o marco de uma nova tentativa de viver, de deixar o passado lá onde ele deve estar. Para os mortos, marco algum. Afinal, estão mortos, ainda que vivos nas cabeças dos protagonistas. E a partir do encontro, ambos começam a rever suas vidas — Babette rememora o passado e também o presente, Florian recupera a história de Alfred — e assim realizam uma espécie de terapia a dois em busca de algum sentido.

Não é um livro simples, tampouco leve. Ao mexer com sentimentos fortes presentes na vida de qualquer pessoa, e de maneira particular naquelas que sofreram perdas semelhantes aos dos protagonistas, e ao mesmo tempo não oferecer soluções fáceis aos desafios apresentados, Doris nos faz pensar no sentido de tudo, e no efêmero que é nossa passagem por aqui.

A autora – Doris Dörrie nasceu em 1955 em Hanover, na Alemanha. Como Win Wenders, ela foi estudante da Hochschule für Fernsehen und Film, em Munique. Seu primeiro filme é de 1983, Straight through the Heart (Direto pelo coração), seguido de Im Innern des Wals, do ano seguinte. Seu maior sucesso e também o grande impulso à sua carreira é de 1985: Männer… (Homens…). Esse filme foi o primeiro grande sucesso de uma diretora de cinema alemã desde os anos 60, e eventualmente se tornou o filme alemão de maior êxito em 1986 com cinco milhões de espectadores na Alemanha e seis milhões ao redor do mundo.

Outros filmes dela foram Paradies (Paraíso), lançado em 1986 e Me and Him (Eu e ele), lançado em 1989 (apenas em vídeo). Happy Birthday, Türke (Feliz aniversário, turco), que estreou em 1992, é baseado em uma novela de Jakob Arjouni, e fala sobre a rotina de um detetive particular de origem turca que trabalha em Frankfurt, e que se depara diariamente com uma rotina de racismo e xenofobia. Nobody Loves Me (Ninguém me ama, 1994) ganhou o Film Strip in Gold no German Film Awards for Maria Schrader. Em 1998, ela lançou Bin ich schön?(Eu sou bonito?). Data de 2000 seu último lançamento em solo norte-americano, Enlightenment Guaranteed, uma espécie de seqüência a Homens…

Como escritora, Dörrie já produziu sete volumes de histórias curtas, uma novela e três livros infantis. A estréia aconteceu com a coletânea de contos Liebe, Schmerz um das ganze verdamnte Zeug (Amor, dor e todo o maldito resto). Em 2001, Dörrie produziu a ópera de Mozart Cosi fan Tutte, encenada no teatro berlinense Unter den Linden. A paixão pela ópera foi reafirmada com a direção de Turandot, de Giacomo Puccini, durante a temporada 2003/2004 no mesmo teatro. O vestido azul recebeu o Prêmio Alemão do Livro em 2003.

O vestido azul
Doris Dörrie
Globo
184 págs.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

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