Televisão
Mãos geladas de lavar a louça e de lavá-las. Deito, apago a luz, vem um cinema mudo de infortúnios. Dos que não têm dinheiro e o caçam até a própria anulação; de internados, prisioneiros, em que cada dia é o mesmo; dos que dormem na pedra das calçadas; dos velhos que mal articulam uma palavra. E as mãos, nos bolsos, vão perdendo o gelo, nem acredito. Volta a ser possível ter mãos, ou viver. Não vejo mais o clamor dos mortificados. Se busco lembrá-lo, sinto antes as mãos quentes. Continuo neste mundo repleto de tanta insensatez e dor, e estão quentes. Levanto e acendo a televisão.
16-10-4
…
Praça da alfândega
Não gosto de me meter,
mas passo e tenho de ver
os homens fora do tempo
sentando a vida nos bancos
da central praça da Alfândega.
Já perderam a alegria
e se sorriem, pior,
tudo fica mesmo inútil
no ricto da gozação.
A maioria é de velhos,
versados em desistir.
Como ser eu diante disso?
Sento num banco e os imito.
Sou um velho, já morri.
De repente ressuscito
com umas nádegas falantes.
Umas se vê que as escutam,
outras não, nem é com elas,
têm de ir aonde vão.
Vou fazendo coleção.
Vem talvez, se me concentro,
a figurinha difícil.
E veio ou não, já não sei,
queria ficar com todas.
E fiquei mais uma vez
perdido na multidão.
Mulheres, homens, crianças
em ondas sem fim na praça.
Perco o meu próprio destino
com tantos seres como eu
sem se importar com um destino.
Vai ver tentei tudo em vão
e me afogo neste mar.
Não sou mais que qualquer um
como os que tenho a meu lado,
ali no banco da praça,
sem crer em nenhum destino.
As próprias nádegas, ah,
nem elas já falam mais.
14-10-4
…
Por nada
Preso por nada,
não há como me libertar.
Serei o que não sou até cansar.
Então, caindo em mim,
posso de novo me desencontrar.
Não é o fim?…
21-10-4