Hipertexto para Ulisses

"Ulisses" é puro século 20. O século da máquina, das massas, das megalópoles, das grandes guerras, do comunismo, do fascismo
01/07/2004

Aqui estou para ler a assinatura de todas as coisas. Essa sentença, presente no Ulisses, resume a filosofia e a literatura de Joyce. Ler e compreender os signos do mundo — as marcas da natureza e da sociedade humana —, que desafio poderia ser mais instigante para as mentes absolutas? Mas o planeta não é só habitado por mentes absolutas, não somos todos decifradores das assinaturas sagradas. Somos gente comum, vivendo vidas comuns. Daí a sensação de hipermovimento que os móbiles de Joyce até hoje nos passam. Caro leitor, que tal passearmos, não em linha reta, mas aos saltos, por esse labirinto quântico? Escolha, na ordem que o acaso ditar, as peças deste meu quebra-cabeças e monte o seu próprio mosaico, o seu próprio miniensaio. Justiça seja feita: a melhor forma de navegar por Ulisses é a usada para navegar pela internet: em ziguezague, link após link.

Cem anos este ano: 16 de junho de 1904, 16 de junho de 2004. O dia mais celebrado da literatura ocidental, o Bloomsday, fez o seu mais importante aniversário. Isso, de certa forma, é péssimo sinal: em cem anos o Ocidente mudou bastante, mas continuamos comemorando a tragédia modernista do indivíduo alienado, minúsculo e expatriado, porque, sabemos bem, essa tragédia continua mais atual do que nunca.

James Augustine Aloysius Joyce, como Homero e Ulisses, fazia parte da estirpe dos nômades: o cotidiano sem grandeza da Irlanda não conseguiu segurá-lo por muito tempo. Sua prosa andarilha fixou no amplo painel do século 20 o mitológico tema da insuportável deambulação. O autor, como acontecera antes com Homero e Ulisses, para onde quer que a necessidade ou o destino o levasse (principalmente a Paris, festa das festas), carregava consigo a saudade da terra natal, as lembranças tragicômicas da infância e da juventude. Ao dar o nome de Exilados à sua única peça teatral, Joyce reconhecia a densidade dessa palavra: o século 20 foi pródigo em exilados e expatriados.

Na virada do milênio, centenas de listas relacionando os melhores romances publicados no século 20 circularam mundo afora. Ulisses chegou em primeiro lugar em todas elas. O cubano Cabrera Infante, exilado em Londres, resumiu bem o fenômeno: “O século 20 foi o século no qual a História se fez História. Foi o pior dos séculos políticos. Mas foi também o melhor dos séculos literários, deixando-nos Ulisses, o mais decisivo e importante romance do milênio”.

Confesso. Provavelmente como você, querido leitor, eu jamais li Ulysses, mas li de cabo a rabo Ulisses, a ótima tradução do Antônio Houaiss. Levei três semanas. Foi em 1986. Nessa época eu ainda não precisava ganhar a vida com o suor do meu rosto. Não existe romance mais totalitário, no mau e no bom sentido. Hoje, também com o Finnicius révem (a celebrada tradução do Finnegans wake realizada pelo Donaldo Schüller), posso dizer que Joyce me ensinou algo sobre o limitado alcance de todas as traduções. Quem quiser conhecer Ulysses e Finnegans wake conforme pensados por ele terá que mergulhar nas obras originais. Na impossibilidade disso, o Ulisses e o Finnicius são, é claro, covers excelentes.

Joyce escreveu durante décadas a mesma obra, cujo título poderia muito bem ser Irlanda. Em cada trecho de conto, romance, poema ou drama, sempre a Irlanda. Nos Dublinenses, a Irlanda vista de fora. N’O retrato do artista quando jovem, a Irlanda vista de dentro. Em Ulisses, o entrechoque entre o fora e o dentro. Em Finnegans wake, a síntese dialética entre o fora e o dentro.

Ulisses: romance que, segundo o autor, veio para acabar com todos os romances. Incluirei nele tantos enigmas e quebra-cabeças que esse meu romance irá manter os acadêmicos ocupados durante séculos (Joyce). Dito e feito.

“Este romance não serve para ser lido”, comentou a tia de Joyce, guardando o seu exemplar. Diante de observações como esta, que chegavam de toda parte e reduziam a pó o hermetismo do seu épico arqueológico-histórico-antropológico-psicológico, também conhecido como A Tentativa do Senhor Joyce de Escrever o Livro no Qual a Totalidade da Experiência Humana Fosse Centrada num Único Dia, o autor dublinense respondeu aborrecido: “Se Ulisses não serve para ser lido, a vida não serve para ser vivida”. Para Virginia Woolf o romance parecia ter sido escrito “por um operário autodidata”. George Moore viu o autor como “uma espécie de Zola piorado” e Paul Claudel devolveu o seu exemplar autografado.

De Ulisses jorram 735 páginas, numa torrente de 735 horas, dias ou anos que representam um único dia, ou seja, o inexpressivo e insignificante 16 de junho de 1904, em Dublin, durante o qual realmente nada acontece. A torrente começa no nada e termina no nada. (Jung)

Afinal, que é Ulisses? Por que esse alvoroço todo em torno de pouco mais de setecentas páginas de papel impresso? Por que a fanfarra, a serpentina e os discursos inflamados que duram até hoje? Por que o rascunho do capítulo Eumeu, desse romance, alcançou a soma de US$ 1,7 milhão quando foi leiloado na Sotheby’s, de Londres?

Narrativa de estrutura matematicamente perfeita (segundo estudos de lingüística, realizados com o auxílio do computador), Ulisses é o ícone do modernismo internacional: depois da sua publicação, em 2 de fevereiro de 1922 (dia do quadragésimo aniversário do supersticioso autor), passou a figurar no Calendário da Literatura o a.U. e o d.U, o antes e o depois de Ulisses. Jung estava certo: A ação do romance transcorre toda no imenso labirinto de nadas, que era Dublin no dia 16 de junho de 1904, de onde Stephen Dedalus (protagonista do romance anterior, Retrato do artista quando jovem) precisa escapar, assim como o mitológico Dédalo escapara do labirinto de Creta. Mas o poeta e boêmio Stephen, alter ego de Joyce e também do legendário Telêmaco, não está sozinho. Com ele estão Leopold Bloom (Ulisses), o medíocre corretor judeu de meia-idade, e Molly Bloom (Penépole), sua esposa volúvel e adúltera, cada qual isolado na própria solidão.

Com múltiplas vozes narrativas que se cruzam o tempo todo e um extravagante jogo de palavras, Ulisses é um compêndio de estilos para quem quiser descrever e desescrever o modo moderno de vida. Curiosamente, o único autor que ousou superar o alcance enciclopédico de Ulisses foi o próprio Joyce. Dezessete anos de trabalho foram dedicados ao ciclo da noite, Finnegans wake, escrito com o objetivo de retratar a vida adormecida de Dublin com a mesma minúcia com que o escritor havia explorado, em Ulisses, o ciclo do dia, o lado frenético da cidade.

O romance é um épico de duas raças (a israelita e a irlandesa) e ao mesmo tempo o ciclo do corpo humano, assim como a pequena história de um dia (a vida). O personagem de Ulisses sempre me fascinou, desde menino. Imagine que quinze anos atrás comecei a escrever a história como um conto para Dublinenses. Há sete anos trabalho nesse livro. Maldição! É também uma espécie de enciclopédia. Minha intenção é transpor o mito sub specie temporis nostri. Cada aventura não apenas deve condicionar como também criar sua própria técnica: cada hora do dia, cada órgão do corpo, cada forma de arte estará interconectada e inter-relacionada ao esquema estrutural do conjunto. Cada aventura é, por assim dizer, uma só pessoa, apesar de estar composta por muitas, como Tomás de Aquino nos relata sobre as hostes angelicais. Nenhum editor inglês quer editar uma só palavra. Nos Estados Unidos a resenha foi retirada de circulação quatro vezes. Agora, segundo escuto, estão preparando um grande movimento contra o romance, iniciado por puritanos, imperialistas, ingleses, republicanos, irlandeses, católicos… Que aliança! Por Deus que me deveriam dar o Prêmio Nobel da Paz! (carta de Joyce ao crítico italiano Carlo Linat)

Feito de camadas (como as ruínas de Tróia), Ulisses, viagem homérica pelas águas do experimentalismo moderno, é composto de um prelúdio dividido em três partes (Telemaquia, protagonizado por Stephen), um núcleo de doze capítulos (Odisséia) e um final também tripartido (Nostos). Como acontece n’A divina comédia, de Dante, aqui a divisão ternária, em perfeita simetria, novamente evoca as significações metafísicas do número três. Cada capítulo tem o seu próprio estilo literário, que é diverso dos demais: o poema, o drama, o ensaio, a farsa, a narrativa, o sermão, a ópera, o apólogo, o tratado, o solilóquio, o diálogo inquisitorial. A maior parte desses estilos recebeu do autor denominação no mínimo curiosa: Gigantismo, Peristáltica, Narcisismo, Incubismo, Desenvolvimento Embriônico…

Cada capítulo é o cruzamento de determinada cor com determinada arte, com determinado símbolo, com determinada hora do dia, com determinado órgão do corpo humano, com determinada arte. Cada capítulo é ainda a mistura de vozes, cançonetas, piadas, poemas, estribilhos, ruminações, ou seja, é o registro detalhado das bobagens do cotidiano vulgar de dezenas de personagens. Durante a estruturação dos vários estilos e das múltiplas formas literárias, o autor aproximou-se do poeta simbolista Édouard Dujardin, autor do obscuro romance Les lauriers sont coupés (1887), e seqüestrou-lhe a técnica do fluxo de consciência.

Num único capítulo encontramos um modelo de eloqüência jornalística, que comporta nada menos que 96 figuras de retórica. Em outro, Joyce reproduz uma tocata e fuga envolvendo inúmeros movimentos musicais. Para sugerir o crescimento do feto no ventre materno, o autor recorre à evolução da língua inglesa desde o baixo-saxão até a gíria americana. No famoso monólogo de Molly Bloom, desenrola uma frase de quarenta mil palavras, sem pausa nem pontuação. Essa estratégia anti-realista de imersão no fluxo de pensamento dos protagonistas representa o princípio da economia narrativa. Ela consiste basicamente na súbita e jamais anunciada passagem da terceira pessoa para a primeira, e vice-versa.

A Irlanda, em toda a parte a Irlanda, maldita ilha maravilhosa, terra de bêbados e excêntricos, de hipócritas e humoristas, de católicos retrógrados e castradores. Sempre distante no tempo e no espaço, a Dublin da mocidade de Joyce foi revisitada em todos os seus grandes livros. Essa revisitação influenciou, a favor ou contra, todos os prosadores relevantes que surgiram desde então. Existe muito de Joyce na obra de escritores como William Faulkner, Albert Camus, Samuel Beckett, Saul Bellow, García Márquez, Toni Morrison e José Saramago. Todos, com exceção de Joyce, receberam o Prêmio Nobel de Literatura.

Eu tinha um velho tio que pensava de modo retilíneo. Um dia ele me parou na rua e me perguntou: “Sabe como é que o diabo tortura as almas no inferno?” Como eu dissesse que não sabia, ele prosseguiu: “Ele as deixa esperando”. Assim falando, seguiu o seu caminho. Esta observação voltou-me à mente quando percorri Ulisses pela primeira vez. Cada frase contém uma expectativa que não se concretiza. Por fim, por mera resignação, o leitor já nem espera mais nada e, para o seu reiterado espanto, percebe gradativamente que de fato acertou. (Jung)

Ulisses começou a ser escrito em 1914. Joyce dispensou a maior parte das técnicas realistas da ficção do século 19, por isso o livro não apresenta a aristotélica sucessão de obstáculos que o herói deve enfrentar na busca de seu equilíbrio espiritual. Não existe o narrador onisciente, pronto para guiar o leitor, descrevendo os personagens e seu ambiente, fornecendo detalhes, resumindo os acontecimentos e explicando, aqui e ali, o significado moral da história. Vários trechos da obra apareceram em publicações culturais, como na inglesa Egoist e na americana The Little Review, até que os correios, alegando obscenidade, resolveram confiscar três números desta revista, que continham fragmentos escritos por Joyce. Seus editores tiveram de pagar a multa de US$ 100. Comentário de Jane Heap, editora da revista: “Não conheço americano com o QI maior do que 10, que já tenha sido julgado por um júri de semelhantes”. A ameaça de censura apenas serviu para aumentar a curiosidade sobre o livro. Antes mesmo de o romance ser publicado, os críticos já comparavam as inovações literárias de Joyce ao impacto causado pelos trabalhos de Einstein e Freud.

Alguns neologismos de Antônio Houaiss — ou palavras-montagens, como ficaram conhecidas as traquinagens de Lewis Carroll — criados a partir dos originais de Joyce, em Ulisses: nataleito, juralonjuralonjuralonjura, escrotoconstritor, canicarcaça, vegetissombras, harpicordas, azulívido, viniscuro, embotamancados, sobrondulante, marifrígidos, sandalizante, mortivômito, tramatrançado, freixestoque, serpiplantas, alvicúmulo, malzodiacado, alvimontados, hominiforma, gestojacto, marisserpentes, sanguiniflorida, mosquicocozadas, sanguibicancudas, grassicarne, decaucoloridas, maridirigidas, rubrifolegando, canicrânio, lentigalopava, gaseicadáver, luninflada, miriadinsuladas.

Ulisses é puro século 20. O século da máquina, das massas, das megalópoles, das grandes guerras, do comunismo, do fascismo. O século do rádio, do cinema, da psicanálise, da bomba atômica. Ulisses, como muitas das obras do alto modernismo, é a história de sua própria criação, sendo por isso pura metalinguagem.

Por que 1904? Porque esse ano foi para Joyce um período de importantes criações. Sua mãe havia falecido no ano anterior e a agonia da sua morte, somada ao súbito retorno de Joyce a Dublin, despertara nele o desejo de empreender ambiciosas tarefas no campo literário. Foi em 1904 que escreveu os poemas de Música de câmara. Foi em 1904 que começou a escrever os contos sobre “a vida paralisada de Dublin”, que mais tarde seriam publicados como Dublinenses. Foi em 1904 que começou a rascunhar o Retrato do artista quando jovem (no projeto inicial, um dos contos iria se chamar Ulisses). E, o mais importante, foi em 16 de junho de 1904 que se deu a epifania amorosa e existencial entre Joyce e Nora Barnacle, a jovem camareira de Galway que viria a ser a sua companheira e o modelo inspirador de Molly Bloom e Anna Livia Plurabelle, entre outras.

A versalidade incrível do estilo de Joyce tem efeito monótono e hipnótico. Nada vem ao encontro do leitor, tudo se afasta dele, deixando-o para trás, olhando embasbacado. Apesar de tudo, jamais me ocorreria classificar Ulisses como produto esquizofrênico. Além do mais, nada se ganharia como isso, pois o que nós queremos saber é por que esse romance exerce tamanha influência, e não se o autor é esquizofrênico em grau ligeiro ou profundo. Ulisses não é um produto doentio, tampouco é doentia toda a arte moderna. Ele é cubista no sentido mais profundo, ao transformar a imagem da realidade num ilimitado e complexo quadro cuja tônica é a melancolia da objetividade abstrata. (Jung)

Joyce afirmava nunca ter lido Proust. E vice-versa. Os dois só se encontraram uma vez, em maio de 1921, em Paris. Foi numa festa organizada pelo romancista Stephen Hudson, em homenagem a Stravinski, Diaghilev, Picasso, Proust e Joyce. Foi uma festa e tanto, muita gente lamentaria muito não ter podido ir. Naturalmente todos achavam que o doente e excêntrico Proust não viria, mas ele veio. Joyce chegou tarde, meio bêbado, e só se aproximou de Proust quando este já estava de saída. Não disseram muita coisa um ao outro. Proust queixou-se do estômago e Joyce reclamou da vista.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

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