Diálogo ou conversa fiada?

"Tablados", de Luis Alberto Brandão, levanta questões de forma despretensiosa sobre o processo da escrita e da leitura
Luis Alberto: metalinguagem do começo ao fim
01/07/2004

Livro de difícil classificação, Tablados, de Luis Alberto Brandão, percorre uma tipologia rara de textos que oscila entre diversos gêneros sem priorizar nenhum. O livro divide-se entre crônica e mini-conto, sempre com reflexões acerca do leitor, dos atos da escrita e da leitura, num “diálogo” constante entre narrador e leitor, como, por exemplo, este Espiral: “Você lê estas palavras com atenção. Com muita atenção. Você lê estas palavras com uma atenção tão concentrada que se sente incapaz de levantar os olhos da página. Você mantém os olhos presos na página, e eles avançam devagar, palavra por palavra. Você lê bem devagar, escandindo as sílabas, observando os espaços entre as letras, atento ao intervalo que leva seus olhos de uma linha a outra. Você repara nos sons que compõem cada palavra. Você repara que estes sons ecoam em sua mente” (p. 101). O tom do texto Consulado é o mesmo: “Está escuro, o ar um pouco frio. É madrugada, isso é tudo que você pode dizer até agora deste livro. Seus olhos não divisam nada além de um pedaço deserto de rua. Você não sabe se este livro é uma cidade conhecida” (p. 61).

O livro persegue essa dinâmica sempre numa tentativa de manter um “diálogo” com o leitor, tornando-o, assim, personagem central, protagonista, participante e testemunha ativa do processo. Mas, apesar de o exercício por vezes parecer interessante e de resultado literário convincente, vez ou outra resvala também para algo artificial porque nem sempre este “diálogo” funciona. A indisfarçada proximidade com que o narrador se dirige ao leitor às vezes parece gratuita, cumplicidade “forçada” pelo autor. De qualquer forma, a experiência, se não totalmente resolvida, é louvável por tornar o leitor (em geral, desconhecido) figura-chave do seu livro. O narrador se remete a este leitor o tempo todo como personagem que integra e completa sua obra.

O subtítulo de Tablados é Livro de livros, o que deixa clara a intenção metalingüística do autor. Ou seja, trata-se de um livro sobre o objeto livro, assim como, sobre a escrita, o leitor e a sedução engendrada entre autor (figura fictícia) e leitor. A metalinguagem, recurso utilizado à exaustão, serve para lançar reflexões que escorrem pelas páginas e que tentam apreender o mundo e as pessoas através dos livros. O livro aqui é objeto louvado e enaltecido, que deve ser tocado e, sobretudo, reverenciado, porque é também instância de saber e prazer táctil: “A página sente o peso da mão, pousada sobre o livro aberto. Este livro conhece bem a pressão que a mão, inerte, abandonada, exerce sobre suas páginas. Sobretudo porque está aberto quase na metade, o que significa que vem sendo regularmente tocado pela mesma mão, que ela se tornou familiar. As páginas dos livros reconhecem as mãos dos seus leitores, se são apressadas ou lentas, suaves ou abruptas, sensíveis ou indiferentes à textura do papel” (p. 42).

Como “livro híbrido”, não há propriamente histórias em Tablados. O fio que separa os textos é tênue, por isso eles podem ser lidos como fragmentos, instantes isolados de um todo, daí ser perfeitamente possível ler separadamente. O pouco que há de ficção é, mesmo assim, algo esgarçado, sem intenção de se descrever um enredo (tradicional).

Dividido em três partes, Páginas, Livros e Leituras, Tablados trata-se, antes de mais nada, de um livro que levanta questões de forma despretensiosa sobre o processo da escrita e da leitura, colocadas por um narrador que oscila o tempo todo — ora é o autor falando em primeira pessoa, ora alguns poucos personagens fictícios, como a atriz Sandra Bittencourt, ponto alto do livro, por sinal uma das “seções” mais instigantes e irônicas. O “conto”, intitulado Fotos, é construído a partir de seis ou oito linhas em páginas quase vazias, como se fossem, na verdade, legendas de fotos. Mas, claro, não há nenhuma foto. Nas páginas, em vez das fotos, temos grandes espaços vazios e, logo abaixo, pequenos textos. E é através delas, dessas “legendas”, que se conta sua história fulgurante. Eis o texto de abertura: “Sandra Bittencourt (21) e Roberto Abranches (25) comemoram o sucesso da novela ‘Suspiros’ em agitada festa na boate carioca Limelight. O ator e a atriz não escondem a paixão que os une desde o fim do ano passado. ‘Estou anestesiada de tanta emoção’, declarou a sorridente Sandra, sem se afastar um só minuto do galã” (p. 91). Noutra legenda, ou melhor, num texto seguinte, eis mais um desenrolar da sua vida glamourosa: “O magnata americano George Featherstone (73) dá um beijo apaixonado em Sandra Bittencourt (40) em frente ao espetáculo de águas e luzes do megaresort Bellagio, em Las Vegas, onde o casal passa a lua-de-mel. Ao lado, no luxuoso closet da suíte, George recebe os mimos da esposa, que o ajuda na escolha de uma das gravatas de sua sofisticada coleção” (p. 95). A história é narrada nesses curtos textos, típicas legendas de revistas Caras ou Quem, descritas nesse tom de crítica ácida ao show business das celebridades instantâneas, até que chegamos no ocaso (e na morte trágica) da atriz, que já não vivia seus dias de fama. O pequeno “conto”, escrito em forma de legendas, repito, é um grande achado do autor.

Outro texto de ficção, Janela, é dedicado ao escritor carioca Sérgio Sant’Anna (Confissões de Ralfo, A senhorita Simpsom), com quem Luis Alberto certamente mantém afinidade literária e sobre quem, aliás, já escreveu um ensaio, Um olhar de vidro: a narrativa de Sérgio Sant’Anna (UFMG, 2000). O “conto” segue a tônica oscilante de Tablados: “Agora, ao longo de toda esta página, Sérgio está de pé, envolvido pela luminosidade que atravessa a janela sem cortinas, incide diretamente sobre seu corpo nu e imóvel. Reparando-se bem nos traços que compõem neste momento o rosto de Sérgio, é possível supor o que ele olha, como reage à visão, e mesmo quais serão seus próximos gestos. Ele vê, sobre uma antena do edifício ao lado, um prosaico bem-te-vi, e crê absorver do seu canto uma sensação de enlevo algo fortuito, que faz com que lhe venha a vontade de assoviar, cantarolar levianamente” (p. 23).

Se o autor lança questões e se remete o tempo todo a um hipotético leitor, assim como Silviano Santiago faz em Keith Jarret no Blue Note, no final, esse mesmo leitor, entretanto, pode também fazer perguntas (que soam incômodas): O que quis o autor? Fazer ficção? Levantar reflexões sobre o processo da sua escrita? Compartilhar suas angústias e alegrias com o leitor? As questões vão surgindo ao passo em que avançamos no livro e não vemos um direcionamento claro, uma proposta de criação nítida, além de textos esgarçados que se remetem a outros e a outros num “círculo” que não se fecha. Diz o seu texto Disco: “Vou apalpando o livro aberto, com cuidado extremo, avaliando as superfícies, reconhecendo o volume deste aparelho cujo funcionamento me é estranho. Meus dedos deslizam pela lombada, à procura de interruptores, percorrem a extensão da capa, indagam mostradores com ponteiros e luzes, passam à contracapa” (p. 58). Assim também pode agir leitor, tentando perscrutar e entender os meandros de um trabalho que deve ser sorvido lentamente, “escrito” enquanto discorre sobre o próprio processo do objeto livro.

Tablados
Luis Alberto Brandão
7Letras
126 págs.
Suênio Campos de Lucena

É jornalista e escritor, autor de 21 escritores brasileiros e Depois de abril.

Rascunho