Perda de tempo

“A sombra do vento”, do espanhol Carlos Ruiz Zafón, é um emaranhado risível e sonolento
Zafón: leitura para quem quer apenas passar o tempo
01/07/2004

Qualquer um que tenha atravessado no mínimo a adolescência intelectual deve estar ciente de que não há nada mais ultrapassado em literatura que uma história de amor na qual os jovens protagonistas, depois de alguns intercâmbios de fluidos numa tarde chuvosa em frente a uma lareira, e de uma concepção quase imaculada, se descobrem irmãos. Tampouco se aceitam outras fórmulas já desgastadas, os pequenos mistérios que buscam despertar a curiosidade do leitor de forma banal, os maniqueísmos absurdos que afastam a obra de qualquer relação possível com a vida real, as metáforas infantis, forçadas, que transformam a narrativa num encômio à breguice.

Tudo isso está presente em abundância nas 463 páginas de A sombra do vento (tradução: Marcia Ribas), do espanhol Carlos Ruiz Zafón, cujo título, por si só, exprime o mau gosto prestes a ser descoberto pelo leitor desavisado já no primeiro parágrafo. Trata-se de uma imitação bastante inferior da frase que abre Cem anos de solidão, de García Márquez, ainda que em lugar de ver o gelo, o pai do protagonista o leva ao “Cemitério dos Livros Esquecidos”, outra imitação barata, agora da biblioteca de Babel de Borges. Dito “Cemitério” serve para alertar o leitor da importância dos livros, os quais, em um acesso de afetação e cafonice, o narrador define como “espelhos da alma”.

O pseudo-intelectualismo de Zafón, presente em comparações desnecessárias como “Barceló não era Bernard Shaw”, ou “O dia ameaçava fazer-se mais longo do que Os Irmãos Karamazov”, me faz lembrar outro membro da família Ruiz, o intelectualmente esclerosado Pedro Ruiz, apresentador de um dos programas de entrevistas mais patéticos da televisão mundial, que consegue ser pior que Jô Soares e Jay Leno juntos. E levando-se em consideração que Pedro Ruiz tem de fato audiência na Espanha, não me surpreende que A sombra do vento se torne um best seller.

Quanto ao êxito de vendas do livro, ele é sem dúvida sintomático de um país mergulhado na cultura de massa. Ao contrário de países como França, Alemanha, Inglaterra, Canadá e Estados Unidos, onde as massas são igualmente ignorantes, mas existe uma elite intelectual poderosa, na Espanha a classe intelectual é muito pequena, insignificante, quase, e disso resulta o êxito de autores medíocres como Pérez-Reverte, por exemplo, o repórter/novelista vaidoso e arrogante que posa como a voz da inteligência com suas novelas de aventura. Em suma, o povo não sabe o que ler.

Ainda assim a questão do êxito editorial parece importar bastante ao autor de A sombra do vento. O livro conta a história de Julián Carax, um autor misterioso cujos livros são publicados na França e logo traduzidos ao espanhol. A obscuridade de sua vida e obra vai sendo desvendada por um jovem que descobre um de seus livros, intitulado “A Sombra do Vento”, no acima mencionado “Cemitério dos Livros Esquecidos”. Em um determinado momento, o jovem se pergunta como era possível que uma obra tão boa como a de Carax vendesse tão pouco. Implícita está a noção de que bons livros devem vender bem. Mas sem dúvida esse não é o caso. Uma visão totalmente contrária à que sugere o protagonista de Carlos Ruiz aparece no volume Artículos de incierta necesidad, de José Donoso. Ali, Donoso se pergunta como era possível que uma obra tão boa como Herzog, de Saul Below, se tornasse um êxito de vendas.

O que está por trás do sucesso editorial de A sombra do vento e de Herzog são dois elementos sociais diametralmente opostos: a existência de uma elite intelectual nos Estados Unidos, e sua inexistência na Espanha. E aqui aparece um elemento fundamental na questão do consumo de bens culturais: o papel da universidade como formadora de elites. Em uma entrevista recente, Fernando Henrique Cardoso ressaltou a importância da universidade norte-americana no processo que levou aquele país à condição de superpotência. Ao contrário da sociedade espanhola, a norte-americana reconhece o papel das elites intelectuais como fundamental no processo de construção social, e suas universidades refletem esse reconhecimento. As melhores universidades do mundo são as norte-americanas, e as melhores norte-americanas são as particulares. A distinção é bem clara, universidades particulares como Harvard, Yale, Columbia, Stanford, e Princeton existem para formar elites; universidades públicas, como Louisiana State University, University of New Orleans e University of Alabama, existem para melhorar a condição de vida do pobre, tirá-lo da escuridão, proporcionar-lhe uma chance razoável de ascensão social, e criar uma sociedade mais justa com menos gente ignorante. E é por meio das universidades particulares, aquelas que chegam a custar 50 mil dólares por semestre, que se formam os formadores de opinião, aqueles que vão consumir livros como Herzog e não A sombra do vento. Já a universidade espanhola, como toda a universidade de funcionários públicos, produz nada mais que aleijões intelectuais, por isso ali, de forma indistinta ao que acontece no Brasil, é comum encontrar estudantes universitários discutindo em quem votar entre os candidatos de Operación Triunfo, versão igualmente patética do programa de televisão brasileiro Fama.

Falando de universidades públicas e privadas norte-americanas, é preciso levar em consideração que ali, muito ao contrário do Brasil, as universidades particulares não visam o lucro, e, como tal, não existem para que seus donos possam comprar apartamentos em Paris. As públicas, por outro lado, não são gratuitas, e os professores não são funcionários públicos mafiosos.

Seja como for, o êxito editorial de A sombra do vento só se explica pelo baixo nível cultural do público leitor. O maniqueísmo da obra é alarmante: o inspetor Fumero é mau, Julian Caráx é bom. Ponto final. A metáforas são infantis: Bernarda esconde “uma natureza de fada madrinha”; depois de receber uma bofetada o protagonista se encontra “zonzo como o apito de um guarda”; e aqui uma preciosidade: “Senti dedos frios se fechando sobre meu coração”. Além disso, o romance todo é um emaranhado de personagens, todos incrivelmente relacionados entre si como em um quebra-cabeça muito bem pré-concebido. Por não ter o que dizer, Zafón vai passando de um personagem a outro, contando as idiossincrasias de cada um deles sem que nada seja realmente palpável. O humor é fraco, sempre fora de lugar e incongruente com a história.

Mas o pior de tudo é o mistério. A boa literatura é sempre uma literatura de verdades, não de mistérios. Autores que não têm o que dizer costumam apelar para o suspense e assim “prender a atenção do leitor”. A verdade é que o leitor não precisa de algo que lhe prenda a atenção. Como dizia Cortázar, o leitor deve ser macho, ativo, deve ser capaz de contribuir para a realização do texto. Além disso, o que acontece é que maus autores não são capazes de reconhecer que em literatura não é preciso ter algo para dizer, basta que se diga com força, ainda que não se diga nada. Beckett escreveu as melhores novelas desse século sem tema, sem personagem, sem trama, sem mistério, e sem breguice.

Além dessas dificuldades, existe também uma evidente defesa da cultura de massa na obra de Zafón. Tal defesa pode ser observada por meio do personagem Fermín, que faz uma crítica à sociedade de massa, mas logo demonstra retroceder em sua opinião. Em uma cena em que está no cinema, Fermín parece ter um ataque de lucidez dizendo: “…essa tal de sétima arte me irrita. Do meu ponto de vista, não passa de uma forma de anestesiar a plebe embrutecida, pior do que o futebol ou as touradas. O cinema nasceu como uma invenção para distrair as massas analfabetas e 50 anos depois continua do mesmo jeito”. Algumas páginas mais tarde, Fermín aparece discutindo sobre futebol com um garçom, logo o encontramos utilizando algumas metáforas sobre touros, demonstrando ser um amante das “corridas”, fatos que se somam às suas constantes idas ao cinema. A mensagem que Ruiz quer transmitir é obviamente a de que os pseudo-intelectuais que criticam a cultura de massa acabam sendo aqueles que mais a consomem. Sem dúvida tal mensagem está em consonância com o resto de seu romance, que é pura cultura de massa, tão patética quanto uma partida de futebol, onde o grande ponto de questão é se alguma das 22 cuecas vai conseguir chutar uma bola dentro do vão formado por três postes de madeira, ou quanto uma tourada, onde o supermacho toureiro mata o touro, sim, sempre, ainda que obviamente não com suas mãos, mas enganando-lhe e fincando-lhe uma espada (suprema inteligência a de quem consegue enganar um animal irracional!).

Em suma, o futebol é a arte dos imbecis, as touradas, a glorificação da mediocridade, e a novela de Zafón, uma perda de tempo que não deve ser empreendida. (Dizem que Hemingway gostava de touradas, talvez por isso ele tenha dado um tiro na boca ao se dar conta do idiota que tinha sido). Além disso, a tradução é fraca, e desnecessária. Livros em espanhol deveriam ser editados no original no Brasil. Se você não é capaz de entender um texto em espanhol deveria rever suas prioridades na vida. Ademais, não há nada que você possa ler em português que não exista uma versão melhor em outra língua.

Gostaria de poder ajudar nas vendas de A sombra do vento no Brasil, mas me sinto incapaz de realizar tal tarefa. Ao contrário da maioria dos professores universitários brasileiros, que falam e escrevem sobre livros que não leram, li o livro do começo ao fim para escrever este artigo. Foi uma tarefa ingrata que não recomendo a ninguém.

A sombra do vento
Carlos Ruiz Zafón
Objetiva
463 págs.
Roberto Pinheiro Machado

É escritor e professor de literatura japonesa na UFRS.

Rascunho