Stanislaw Lew

A conversa com o autor do clássico Solaris
Lem: “Cada um constrói os labirintos que sabe construir”
01/07/2004

Eu conheço muitas pessoas que escrevem, e, quiçá, eu tenha sido uma delas. Eu me incluo entre os culpados. Ocorre com a literatura o que ocorre com os turistas. Os turistas vão a algum lugar e se queixam da abundância de turistas. Então alguém lhes diz: bom, se você se for, haverá um a menos. É o mesmo caso. Há gente demais que escreve, e mesmo assim eu segui escrevendo…

(Tenho sonhado muito com as palavras de Yamamoto Tsunetomo. “A sombra de um sonho. Nada mais que a sombra de um sonho.” Estamos em sua caverna, na província de Saga, Japão, e estou deitado sobre uma colcha de folhas. Ele me olha com seus olhos caídos, míopes de tantas leituras à luz de velas. “Eu descobri que o caminho do samurai é a morte. Se acontecer a chance de escolher entre a vida e a morte, deve-se escolher a morte.” Tenho sonhado muito, amigo, e esses sonhos não me são agradáveis. Entre estações e trens, troca de passagens e encontros fortuitos, vejo tudo e tanto e mesmo assim é vazio comparado ao que o adolescente leitor imaginava existir nos rescaldos das viagens.)

Antes de sair de Paris, comprei de Ahmed um vidro de esquecimento. Um mágico desvanecedor de sonhos. Aproveitei e peguei uma garantia final de que tudo pode acabar em bons termos.

(Porque eu preciso e apenas isso, meu amigo.)

Larguei um bom emprego de entregador de pizzas, assim como a moto que acompanhava o trabalho e vim buscar uma resposta convincente de um escritor de literatura fantástica. Agora estou em pé na estação principal de trens de Cracóvia e antes de enfrentar o inverno, compro um maço de cigarros Captan e um isqueiro.

Se pudesse voltar a ver, leria alguns dos livros que há aqui. Quiçá sairia à rua para reencontrar-me com alguma lembrança de Buenos Aires. Olharia no espelho para ver o rosto que tenho hoje. Talvez não. Penso que é uma sorte para mim imaginar-me com o rosto que tinha aos 55.

Tem o olho direito caído e a bengala apoiada sob as mãos manchadas pela senilidade. Me acompanha desde Genebra.

(Tenho sonhado muito e isso me desespera.)

Ofereço um cigarro e Jorge recusa com a desculpa de que faz mal a saúde. Sorrio e penso que não faz sentido eu ou ele preocuparmo-nos com o futuro.

— Sabem, na semana passada, todos pensaram que eu ia morrer. Eu também, mas era uma sensação muito agradável, sem dor. Não doía nada… — diz Stanislaw Lem (1921), sobrevivente judeu do gueto de Lvov e do regime comunista que tomou a Polônia após o término da Segunda Guerra Mundial.

Sua casa é de madeira e possui no segundo andar uma varanda protegida por janelas de vidro que permitem seguir a queda ininterrupta da neve. Somos três e mais um, Jorge, cercados pelo branco lençol. Bárbara, sua doce esposa, ocupa-se de trazer bebida quente e silêncio acolhedor. Seus olhos são compassivos e tem nas íris o reflexo do entardecer. No seu colo, disputam sua atenção quatro pequenos cachorros.

— Faz 13 anos que não escrevo ficção.

(Tenho sonhado muito, eu disse. E é verdade. Tenho sonhado muito.)

Um dos cachorrinhos salta da poltrona e vem cheirar meus pés. Tem orelhas pontudas e pêlos cor de caramelo. Morde a barra de minha calça e não se importa que ao longe, dobrando a esquina, eu veja um carteiro descendo do automóvel com um grande pacote nas mãos. Toca a campainha e uma jovem atende e balança a cabeça negativamente e o carteiro volta para o carro com o pacote e tranca a porta e caminha até a casa vizinha.

(Se acontecer a chance de escolher entre a vida e a morte, deve-se escolher a morte.)

— Nunca diria que todos os livros que escrevi durante tantos anos têm um único significado. Cada um vai acontecendo e, quando muda, tudo ao redor muda também. 50 anos escrevendo são muitos anos.

O cachorrinho dá a volta na bengala e volta para o colo de Bárbara. Toca o telefone. Daniel Torres avisa que está atrasado e pede desculpas. Lem diz que está tudo bem, e quando desliga, resmunga que se sente só, trabalhando — em sua própria galáxia.

Jorge vira-se para Lem como se pudesse vê-lo e suas palavras escapam de seus lábios quase imóveis como se Lem pudesse ouvi-lo.

Quando estou só, fico tramando meus poemas, contos, fábulas, porque tenho que ocupar minha solidão. E na minha condição é fácil estar só. Por exemplo, eu nunca busco temas, deixo que os temas me busquem e eu os iludo. Mas se o tema insiste, eu me resigno e escrevo. Há que deixar que os temas nos elejam, pois cada tema sabe se quer ser escrito em verso livre, em uma forma clássica ou prosa. Não penso na comunicação. Desde que perdi a visão, eu escrevo e corrijo os rascunhos mentalmente, e finalmente os publico.

Lem cata uma caneta tinteiro de pena dourada e rabisca algo. Coça a cabeça e amassa o papel e puxa de sob uma alta pilha um exemplar de O hospital da transfiguração.

— Não sei por que mudei. Simplesmente o caminho de minha vida decidiu assim. Eu não havia planejado. Pelo visto essas eram as inclinações que eu tinha. Assim eram minhas capacidades. Não queria me dedicar à literatura política, porque escrevia nos piores tempos do estalinismo, mas tão pouco havia pensado em evadir-me da realidade ao cosmo. Aconteceu assim…

É sua primeira e única obra realista, ambientada na Polônia invadida, na qual alguns médicos tentam salvar os doentes mentais de um hospital de serem executados pelos nazistas.

Lem coloca o livro em outra pilha e volta a pegar a caneta tinteiro. Sorri.

(raios de sol furando a neve que cai, algo raro)

Quando era jovem, gostava de estar em desacordo. Agora não mais. Trato de estar de acordo. Chesterton disse que havia passado a vida comprovando que os outros tinham razão. A mim aconteceu o mesmo.

Os dedos finos de Lem tornam a visão de suas pequenas mãos um espetáculo de adorável decadência. Uma sombra da fúria criativa que tomou seu corpo e mente na década de 1960, quando escreveu e publicou Éden, Solaris, Retorno das estrelas, Memórias encontradas em uma banheira, O invencível.

Eu acredito que a imortalidade pessoal não é menos crível que a morte. As duas coisas são inacreditáveis! O fato de que alguém perdure mais além do fim de seu corpo parece rara, mas também o é o fato de que alguém desapareça finalmente.

Enfio a mão na bolsa e toco a pistola de Ahmed. Minha pistola. Jorge vira-se para mim e ergue a sobrancelha esquerda, deixando parecer ainda mais fechado o olho direito.

Quando era criança, eu pensava que um dia durava uma semana e agora uma semana dura um dia. À medida que envelhecemos, o tempo passa mais rápido.

Desvio e pego o maço de cigarros e depois o isqueiro. Não os tiro da bolsa, apenas os manuseio. Tomo um gole de chá com uma pílula verde. Como o carteiro que segue batendo de porta em porta, com o pacote nas mãos, por duas vezes escorregando na calçada molhada e tropeçando em objetos ocultos pela neve, eu não posso descansar.

— Hoje em dia não tenho relações profundas com outros escritores. A maioria dos escritores com quem estava em contato está morta.

Jorge olha a padronagem labiríntica do tapete que suporta a poltrona na qual está sentado

Às vezes me pergunto se estou dormindo ou se estou sonhando. Estou sonhando agora? Quem pode saber? Nós nos sonhamos uns aos outros o tempo todo. Berkeley afirmava que Deus era quem nos sonhava. Talvez tivesse razão… Mas que tedioso para o pobre Deus! Ter que sonhar cada grão e cada monte de pó em cada taça de café e cada letra em cada alfabeto e cada pensamento em cada cabeça. Deve estar exausto!

e volta a fitar a distância infinita à sua frente.

Desgraçadamente, sou velho e tenho este rosto de oitenta e tantos anos. Que outra coisa posso fazer que não seja escrever e sonhar?

— Cada um constrói os labirintos que sabe construir.

Olho para Lem, espantado. Ele percebe e, não sei se em resposta às minhas dúvidas, diz:

— Quando sonhas com algo, você mesmo não sabe de onde veio esse sonho, como explicá-lo. É algo que não se sabe. Se o soubesse, então poderia escrever a explicação.

E começa a contar algo de seu passado, talvez a história mais conhecida e que Bárbara reconhece e desanda a rir antes que eu e Jorge o façamos.

— Aconteceu em um momento em que Philip K. Dick estava tomando muitos alucinógenos. Escrevi um artigo sobre sua obra e o convidei a vir à Polônia. Mas Dick pensou, de repente, que eu não existia, que havia algo assim como um comitê chamado Lem que planejava seqüestrá-lo e que lhe desejava o pior… Dick estava muito mal da cabeça.

Jorge gargalha e bate a ponta da bengala contra o tapete. Minha bolsa cai no chão e recolho rapidamente o conteúdo. Bárbara me encara e faz uma careta preocupada.Tomo outra pílula e aperto os olhos com os dedos das mãos, afundando os globos em suas órbitas, o mais fundo possível. Na rua abaixo, o carteiro toca a campainha. Bárbara fala algo no ouvido do marido. Digo que tenho dormido mal, que me desculpem. Bárbara censura um de seus cachorrinhos por tanto cheirar a poltrona vazia. Lem acena para que Bárbara vá atender a porta. Os cães a seguem.

O que imaginou Wells, Kafka, Poe, não é nada comparado com o que imaginou a teologia. A idéia de um ser perfeito, onipotente, todo poderoso é realmente fantástica.

Saco um cigarro da bolsa e o coloco apagado entre os lábios. Levanto e vou até a janela e observo as ruas inundadas de frio e o vento que roça os galhos de um velho ácer aprisionado entre o concreto da calçada e o asfalto da rua e deixo que o calor da palma de minha mão direita faça uma moldura de vapor a delimitar sob a forma de uma mão direita a rua em um entardecer de inverno. Digo que escrever me deixa confuso e o desespero não me abandona.

— Eu, sobretudo, escrevia sobre coisas terríveis, espantosas, virulentas, assim tinha que suavizar de alguma maneira para melhorar o sabor. O que me surpreende agora, por exemplo, é que quando leio a literatura polaca jovem — a que mandam para minha casa em grandes pacotes — a dos jovens escritores polacos de 20, 30 anos, não encontro nada de humor. Tudo o que escrevem é tremendamente sério… Pelo visto, quando se é jovem sente-se a necessidade de mostrar-se sério.

(isso não é consolo)

Procuro a poltrona de Jorge. O velho cego boceja.

Nos Estados Unidos, Poe é considerado um mau poeta. Os contos, ao contrário, são muito bons. Omar Khayan, tão pouco, é considerado um bom poeta na Pérsia, mas seu tradutor inglês o fez famoso.

(dois velhos…)

Afirmo que deve haver uma saída já escrita e que não percebo.

(me mostra)

— Harry Potter é como ópio para as massas. Hoje em dia, há muito pouca grande literatura. Talvez Pinchon, Saul Bellow… Mas esses homens são antigos, e dos novos há muito pouco. É mais fácil ser poeta, já que atualmente, para isso, não há falta ou sentido.

Jorge ajeita-se na poltrona.

Quando alguém recita um poema, este alguém já não é seu corpo, sempre é sua consciência. Há uns versos muito bonitos de Machado:

¿Y ha de morir contigo el mundo mago

donde guarda el recuerdo?

… Los yunques y crisoles de tu alma

trabajan para el polvo y para el viento.

Quer dizer, quando uma pessoa morre, morrem muitíssimas coisas pelo qual parece raro que tudo isso cesse de uma vez. Mas, por sua vez, também a idéia de que alguém dure indefinidamente parece rara. Ambas, me parece, são igualmente inacreditáveis. A mim, não me importaria durar mais além, mas com a condição de não esquecer esta vida. Por isso, me pergunto se a identidade pessoal consiste precisamente na possessão de certas lembranças que nunca sejam esquecidas. Como meus passeios por Genebra…

Bárbara entra com o pacote, seguida de Daniel Torres. Eu me despeço na esperança de que Jorge fique.

— Há que se esforçar bastante para prever o que pode trazer a realidade.

Acenamos juntos um adeus a Lem.

Ao lado de Jorge, estou caminhando pelas ruas de Cracóvia, com meu casaco de couro marrom, forrado com lã de carneiro, e comprado em um brechó.

Um grupo de punks poloneses brinca de atirar bolas de neve uns nos outros frente à estátua de João Paulo II. Quatro cavalos passam em disparada, seguidos por quatro cavaleiros fardados com dragonas douradas. Mulheres vestidas de preto seguem em procissão. Crianças vestidas de branco as seguem.

O passo lento de Jorge me incomoda menos que ver apenas meus passos sobre a neve. Tomo mais uma pílula e na hora de guardar o vidro toco o metal frio da pistola. Seguro-a pelo cabo e digo que é besteira continuar. Afirmo que a angústia existencial está fora de moda, mas me pegou de jeito.

Jorge faz um movimento grandiloqüente com os braços.

Daqui a cem anos, espero estar esquecido. Não sou Cervantes!

Digo que é fácil falar quando se já está com a cama feita.

Jorge sorri e aponta a escuridão que o cerca.

Creio que esse é o ofício, ou se você quer uma palavra mais ambiciosa, o destino do escritor: mudar as coisas… Eu mesmo tenho a impressão de que tudo o que me acontece, inclusive o infortúnio, me são dadas para que eu os transforme em algo, e por isso há uma grande literatura do infortúnio e não da felicidade, que eu saiba. Porque a felicidade é um fim em si, já o infortúnio deve transformar-se em outra coisa… Essa coisa é a arte. Pode ser a música, a pintura… Em meu caso não é senão a literatura.

E ainda falam mal dos argentinos.

Wilson Hideki Sagae

É escritor.

Rascunho