Trabalho com dinheiro mas não tenho comigo nem mesmo prum cafezinho. Vendo os vales-transportes que recebo na empresa e ando a pé. É muito mais saudável. Às vezes, chego suado no emprego. Ou molhado, com os tênis encharcados; a roupa permanece úmida durante o expediente nos dias de chuva. Que não são raros na região em que vivo. Usar guarda-chuva, pra mim, significa perder guarda-chuva. E eles não impedem que eu me molhe nos inúmeros dias de garoa e de chuva. No entanto, o que eu vinha dizendo é que caminho, e muito, pela cidade. E circular molhado não é problema pra mim.
Problema é viver sem crédito. Afinal, todo dia muita grana passa, direta e indiretamente, pelas minhas mãos. Mas não fico com nada. Recebo apenas meu salário no final do mês. Salário esse que parecia ser um grande negócio num momento em que me encontrava em uma situação-limite hoje garante apenas o básico. Não posso cogitar gasto extra. Cortei tudo que poderia ser dispensado. Agora, nem vejo o dinheiro: recebo o salário no dia do vencimento das contas. Se atrasa, pago multas e passo fome. E não vislumbro solução pro meu caso. Por isso, vou pra rua.
Caminho bastante, como já falei. O que eu ainda não disse é que ando olhando pro chão. E nunca bati em poste, placa ou árvore. Nem caí em buraco. Presto atenção pra ver se há dinheiro perdido na rua. Por isso, prefiro o centro.
Moro sozinho em um pequeno e antigo apartamento alugado na região central. É gosto. E tem explicações. Práticas. Não permaneço muito tempo no mesmo emprego; assim, posso vir a trabalhar em qualquer bairro da cidade: tudo parece perto a partir daqui. E tem mais: sou fascinado pela pulsação do centro. Pelo menos de segunda à sexta, incluindo as manhãs de sábado. Com tanta gente circulando, pode vir a sobrar algo pra mim.
Agora, caminho pela Rua XV. É manhã, dia útil e sigo da Praça Osório até a Praça Santos Andrade. São muitos pedestres. Algum deles deve perder dinheiro nesse vaivém, nessa correria, nesse abrir e fechar de carteiras e bolsas. Bem que eu poderia encontrar uma nota de 50. Ou de 100. Ainda não pensei no que faria com esse dinheiro. Mas ficaria mais tranqüilo. Estou quase chegando na Praça Santos Andrade. Dobro à direita na Presidente Faria e volto para a Praça Osório pela Marechal Deodoro. Aqui também há comércio. Aqui também tenho chance.
Todo dia antes de ir para o emprego faço esse trajeto. Até agora, não achei dinheiro na rua. Mas conheço quem já encontrou.
Um conhecido me contou que estava sem dinheiro. Era uma situação-limite. Não havia saída. Ou parecia não haver. Ele caminhava por uma rua com pouco movimento e, de repente, um automóvel passou em alta velocidade. Esse conhecido parou de andar. Estava paralisado. De susto. Antes de voltar a caminhar, olhou para o chão. Ali, a seus pés, havia uma nota de 50. O dinheiro permitiu que ele continuasse vivo. Pelo menos nos dias seguintes.
Eu até sonhei ter encontrado dinheiro na rua. Às vezes, mentalizo a ação bem-sucedida e repito: “hoje vou achar”. Mas, como já confessei, até agora, nada. Em situações de carência extrema, cheguei a cogitar se eu seria capaz de furtar, roubar, enfim, de praticar uma ação ilegal. Mas não consigo. Não por me julgar moralmente melhor do que aqueles que agem de maneira ilícita. Algo me impede. Não sei dizer o que é. E, pensando nessas coisas, vou do centro a outros bairros. Principalmente nos finais de semana e feriados.
Era sábado e eu estava em um bairro distante do centro. De repente, vejo uma carteira no chão. De couro. Me abaixo, pego e coloco-a no bolso de minha calça. Não olho para os lados. Alguém poderia estar me olhando. Ou filmando. Poderia ser uma brincadeira de programa televisivo. Mas nenhuma dessas hipóteses impediu que eu a levasse comigo. Logo, dentro do meu quarto, eu constataria não haver documento nem cartão nem outro sinal que ligasse aquela carteira a seu dono. Havia sim muitas notas de 50. E outras mais, muitas, de 100.
Guardei toda grana dentro de uma gaveta do armário do meu quarto. E, a partir de então, passei a circular com uma nota de 50 no bolso da calça. E algo mudou. Ou pareceu mudar. Os velhinhos passaram a me cumprimentar; as mulheres, a mostrar seus dentes; e os porteiros dos estabelecimentos comerciais me convidavam para entrar: as portas pareciam não ser mais intransponíveis. Enfim, se eu quisesse, agora, poderia beber café na Rua XV. Até assaltado eu poderia vir a ser: havia o que entregar. Mas eu me cuidava. E não gastava nada.
Eu continuava a caminhar olhando para o chão. Não mais obcecado pela hipótese de vir a encontrar dinheiro. Se aparecesse, ótimo. Caso contrário, não faria tanta diferença.
Deixei de ficar indignado por ver tanto dinheiro passar pelas minhas mãos e eu não reter nada. Passei a trabalhar com mais motivação. E os colegas — todos sonhando com aumento, ou promoção, que não vinha, e não viria, e cada vez mais desmotivados — estranharam essa minha inesperada empolgação. Alguns disseram que eu estaria apaixonado; outros, que eu era mesmo um bobo alegre; e a maioria não pensou nada e disse muita bobagem.
Eu que agora poderia vir a ser assaltado, também poderia vir a ficar doente: a reserva financeira me possibilitaria adquirir remédios e até garantiria uma temporada em um leito hospitalar.
Era um outro sábado quando peguei mais três notas de 50, além daquela que permanecia no bolso de minha calça, e saí do apartamento. Caminhei em direção a um shopping center. O salário ainda garantia roupa, comida e aluguel — eu não estava precisando de nenhum produto. Mas queria comprar: queria ver o dinheiro viabilizar uma ação. Circulei pelo primeiro e segundo pisos olhando as vitrines. Nada chamou minha atenção.
Então, entrei em uma loja de roupas e fiquei olhando os produtos. Uma vendedora anunciou que poderia me ajudar. Pedi que mostrasse calças e camisas. Ela trouxe várias unidades e passou a enumerar as qualidades dos produtos, que ficariam muito bem em mim. Enquanto ela prosseguia discursando, eu prestava atenção apenas no movimento de seus lábios, pensando em convidá-la para sair depois que terminasse seu expediente. Então, ela pára de falar e espera que eu me manifeste. Comentei que estava atrasado para um compromisso. Saí da loja.
Saí do shopping center. Caminhei até um bairro distante e voltei para o centro depois que anoiteceu. Entrei no apartamento e fui direto ao meu quarto: coloquei dentro da gaveta do meu armário as três notas de 50 que eu havia retirado. Deixei no bolso da calça apenas aquela única nota de 50.
Continuei por mais um tempo naquele mesmo emprego. Às vezes, dependendo do clima, chegava molhado ou suado. Mas isso não me desanimava. Foi a rotina que destruiu meu entusiasmo. Apesar disso, seguia caminhando, olhando para o chão. E o que me animava era a perspectiva do final do dia. Afinal, depois de chegar no apartamento, tomar banho e comer algo, eu entrava em meu quarto, abria a gaveta do armário e ficava olhando para aquele dinheiro. Eu sabia que era por causa dele, e sobretudo por causa dele, que eu me sentia especial. E feliz.