A mossa da bazófia

Em "Amar-te a ti nem sei se com carícias", Wilson Bueno invade o final do século 19 com fina ironia à Machado de Assis
Wilson Bueno: eterno apego ao burilamento da linguagem
01/08/2004

Cornucópia, bazófio, estro, mossa e sorrelfa são algumas das palavras que o intimorato Wilson Bueno recupera para compor seu mais novo livro. Poeta e escritor, famoso pela edição do jornal de literatura Nicolau, que reverberou nacionalmente e circulou desde o final da década de 80 até o início da de 90, Bueno lança agora Amar-te a ti nem sei se com carícias.

Ativo freqüentador dos meios intelectuais de Curitiba, o paranaense Bueno é um grande pesquisador da língua, e busca nela matéria para sua literatura. É o que demonstra, ao menos, em outras de suas experiências literárias, Mar paraguayo, em que a oralidade da fronteira é restaurada, retratando a interpenetração — não apenas lingüística, mas cultural — entre os habitantes das fronteiras, falantes de portunhol e ainda fortemente influenciados pelo guarani.

Em seu novo romance, obra que já foi premiada com a bolsa Vitae de Literatura de 2000, Bueno mantém o padrão de qualidade que o fez ganhar o merecido destaque que hoje possui. Depois de alguns sucessos, como Manual de zoofilia, Jardim zoológico e Pequeno tratado de brinquedos é a vez de Amar-te a ti nem sei se com carícias, que, diga-se, merece nota pela edição. O livro é belíssimo, com ilustrações muito significativas, papel bonito e tipologia agradável aos olhos. Pontos a favor.

O romance retrata o Rio de Janeiro e abarca um período que vai de 1850 até 1914, dando relativo relevo às questões de Estado. A política, a cultura, e o comportamento do tempo são explorados pelo autor no que essas vigas da sociedade têm de mais sutil e discreto; ele sugere, aponta, mas não abre o jogo. Pode-se afirmar com segurança que o livro é uma reprodução muito próxima da realidade dos idos de 1900 e que, apesar de sofrer com a distância temporal, mantém muita semelhança às obras publicadas naquele tempo.

Por isso, o elemento que salta aos olhos, num primeiro momento, é a linguagem reconstruída que contextualiza a trama. A reconstrução não se limita, evidentemente, a salpicar palavras que já caíram no desuso. Pelo contrário, busca o tom e a dicção do sujeito imerso naqueles dias para arquitetar os períodos, os parágrafos e formar o todo.

O autor propõe, desde logo, um pacto com o leitor, afirmando no prólogo ter encontrado os manuscritos do texto numa certa demolição: um caderno abandonado, com as iniciais LP na capa. Com esse artifício, busca a verossimilhança e tenta convencer o público de que o texto não é uma obra ficcional, mas sim as memórias de um homem real.

Bueno afirma nesse prólogo que, por ter encontrado o texto e não ser mais possível a verificação da autoria, imagina pelas evidências que a obra tenha sido escrita por Leocádio Prata, aparente narrador da obra. Contudo, as iniciais LP são também as dos outros personagens, Licurgo Pontes e Lavínia Prata. Lembra também o autor que os manuscritos encontram-se em perfeito estado de conservação e sem qualquer rasura, o que o leva a crer que, na verdade, não sejam os originais do texto, mas uma cópia, reescrita e, por que não?, adulterada. Surge a possibilidade, então, de que os originais tenham sido adulterados pelo rival de Leocádio, Licurgo, na medida de seus interesses; ou ainda que Lavínia os tenha escrito ou modificado em nome de algum escuso proveito. Não há, porém, elementos textuais evidentes que corroborem essa assertiva, ficando apenas a dica do autor. Para quem quiser se aventurar, talvez uma leitura detida, que busque experimentar essa hipótese, encontre a verificação almejada. Então o livro se tornará uma obra com várias faces, das quais deverá o leitor previamente escolher a pretendida: se memórias de Lavínia, Licurgo ou Leocádio.

Nesse manuscrito, que é uma espécie de diário, mais afeito a elucubrações do que ao retrato fidedigno do dia-a-dia, Bueno recupera o estilo do Memorial de Aires, de Machado de Assis. Por ter bebido desta fonte, a influência machadiana se delineia de maneira claríssima em seu romance. Aliás, não é apenas nesse particular que Bueno busca em Machado a fonte. O livro é epigrafado por uma citação do Bruxo do Cosme Velho: “O maior pecado, depois do pecado, é a publicação do pecado”, de modo que toda a leitura deve ser orientada por esse argumento.

Além da citação expressa, Machado está presente em muitos outros momentos de Amar-te a ti…. O estilo peculiar em que Aires escreve seu memorial, da obra machadiana, é um espectro que ronda o leitor durante a fruição do texto. E há, ainda, uma referência expressa a Xavier de Maistre, que merece um cuidadoso olhar.

Machado não coincidentemente se refere a de Maistre no início de Memórias póstumas de Brás Cubas, no trecho dedicado “ao leitor”, quando comenta sobre a forma livre que adota em sua narrativa, já assumindo a voz de seu personagem Brás. De Maistre é, também, citado na epígrafe de Viagens na minha terra, obra fundamental de Almeida Garrett. Este último é tido pelos estudiosos do tema como o grande mestre de Machado. A quem por certo influenciou tanto na produção de Memórias póstumas, quanto do Memorial, fechando-se a cadeia. Então é fácil perceber que Bueno, em posse de tais informações, trabalhou com “engenho e arte” (aproveitando a expressão de Camões, a quem Garrett dedica belíssimo poema) e forjou seu texto a partir dessas claras influências. Por isso, ao se ler Amar-te a ti…, o leitor se cola à obra de Machado.

O memorialista é Leocádio Prata, viúvo de Lavínia Prata, um advogado com certa idade que resolve fazer um apanhado geral de sua vida, equacionando dores, alegrias, desconfianças e reflexões, acima de tudo reflexões. Azedas e ácidas reflexões de um tempo, de uma vida, de um comportamento. Leocádio tem uma relação muito conflituosa com Licurgo Pontes, um sujeito que aparece de vez em quando e que traz consigo um rebuliço de sentimentos para Leocádio. Lavínia Prata morreu em um acidente, que não se explica muito bem; por sinal, o que também não se explica muito bem é a sua questionável relação com Licurgo.

Como o texto é escrito por Leocádio, tal qual em Dom Casmurro qualquer juízo de valor feito por ele é absolutamente passível de dúvida, porque ele está intimamente envolvido com o tema e tem a sua verdade a contar. Esse elemento abre a leitura porque tudo aquilo que pode ser pode ao mesmo tempo não ser, e o que fica, de fato, são apenas elucubrações. Leocádio é um escravista, conservador, ladino e culto. Contraditório e misterioso, oculta-se ou pavoneia-se a seu gosto, tornando-se um homem falível cujas opiniões e valores deve o leitor pesar muito bem — a palavra é muito importante e tem um valor na precisão, que não pode ser descartado. Não há maniqueismos.

Leocádio Prata, em suas memórias, sugere que é acusado da morte de Lavínia, sua esposa, mas a todo o tempo nega e se defende como pode. Mas por ser ele um suspeito, todo o seu comportamento é igualmente suspeito — inclusive sua própria defesa. Licurgo é agressivo, seco, distante e acusa Leocádio do crime, ao que parece com alguma propriedade. A relação de Licurgo é realmente estreita com Lavínia, porque há uma reciprocidade de emoções — ambos se respeitam, se freqüentam, enfim, são amigos (ou mais que amigos). Lembrando Machado pela epígrafe, não podemos esquecê-lo em seu famoso triângulo amoroso.

Tudo, no entanto, não passa de um enfileiramento de sugestões. Apenas sugestões, nada que se deva publicar. Leocádio despreza Licurgo, sente ciúmes dele, mas, contraditoriamente, parece viciado nele, precisa de sua presença, de sua agressividade, da sua atenção, numa interação patológica. Mas, conforme ensina o mestre, pior que o pecado é a publicação do pecado.

LEIA ENTREVISTA COM WILSON BUENO

Amar-te a ti nem sei se com carícias
Wilson Bueno
Planeta
195 págs.
Guida Fernanda Bittencourt
Rascunho