Vingança contra o patriarcado

No novo romance de Marcia Tiburi, as travessias de vidas são trilhadas por mulheres na árdua caminhada de fuga, sobrevivência e vingança
Marcia Tiburi, autora de “Com os sapatos aniquilados, Helena avança na neve”
01/08/2024

Uma história de vingança. É como Marcelo Labes apresenta seu livro Três porcos, no qual o narrador, Rafael, conta sua saga desde criança, filho de uma trabalhadora doméstica, até a vida adulta, que culmina na vingança contra os porcos que o contaminaram com sua sujeira, acabando com o olhar inocente de menino para a vida e impedindo definitivamente o curso natural das coisas. É a partir desse lugar de vingança sem condescendência que Marcia Tiburi escreve Com os sapatos aniquilados, Helena avança na neve.

E escrever com esse grau de entrega é, como diria Marguerite Duras, “o mais perto que se pode chegar de uma sensação de solidão, é como falar de uma doença terminal: ninguém será capaz de sentir o quão próximo você está da morte, da sua morte, uma travessia mais singular que a própria vida”. As travessias de vidas que se apresentam no livro de Marcia Tiburi são trilhadas por mulheres: Helena e a mãe, Eva, Chloé e Catarina, Olívia e Valéria, Gertrude Stein e Alice B. Toklas, além de outras que de passagem aparecem para ajudar nessa árdua caminhada de fuga, sobrevivência e vingança.

A personagem principal é Helena, uma menina que vira mulher nas estradas de um longínquo e interiorano lugar da América do Sul, habitando sempre “uma dobra instaurada entre épocas”, concentrada em sua tarefa de vida e morte no frio abaixo de zero, redesenhando a “emoção primitiva que ela carrega desde cedo como um órgão”.

Mas não é Helena quem narra a história. A protagonista tem o silêncio como língua materna, portanto, não conhecemos sua voz, apenas seus gestos e ações. A escolha da autora é por um narrador neutro, em terceira pessoa, que discorre as cenas em linguagem direta, concisa e sensível na medida certa, sem ser intruso.

Tendo à sua frente o caderno de desenho, Helena se pergunta como uma mulher que a instruiu na arte de matar porcos, de trinchar carne e ossos de animais, foi capaz de se deixar matar por um homem. Essa não é uma pergunta que se faça, ela pensa e, mesmo assim, ela faz. Que a mãe não pudesse imaginar o que estava por acontecer, ela sabe, mas que ela mesma não tenha sido capaz de perceber, considerando que estava ali vendo toda a violência vivida pela mãe, é algo que ela não consegue perdoar em si mesma.

E o enredo se passa como se estivéssemos diante de quadros, tamanha é a habilidade da autora em narrar os fatos e pintar as imagens.

 Dentro do carro um homem morto cai com todo o seu peso sobre o outro homem morto. O rosto do segundo morto está sobre o púbis do primeiro. A boca do segundo toca o pênis do primeiro. A boca do segundo toca o pênis amolecido do estuprador que foi o primeiro a morrer. O pênis desaparece entre pelos sujos de sangue no momento em que não está mais ereto. Helena fotografa mentalmente a cena lembrando de um ninho de ratos que ela encontrou sob o tanque e que a mãe exterminou com uma vassoura. Ela lembra também dos porcos mortos e pensa que é cedo para chegarem as moscas.

Não é à toa que a autora divide os capítulos em títulos que se assemelham a títulos de telas, como Noiva com vestido perolado, Mulher penteando os cabelos diante do espelho, Menina com cesto de ossos, Mulher com hematoma no rosto, Copo de água com cacos de vidro ao redor, Moça diante do livro de anatomia suína, Marilyn Monroe com ramalhete de flores, entre outros. E também não é aleatória a referência aos pintores Vilhelm HammershØi e Johannes Vermeer, além de Artemisia Gentileschi, a pintora barroca italiana que se vingou do estupro que sofreu na infância com quadros como o de Judite decapitando Holofernes. Pois não percamos de vista que se trata de um livro de vingança, sobretudo, uma vingança contra os homens e suas ferramentas de coerção no lar, na igreja, na polícia, na política e no mercado de trabalho.

A arte como refúgio
Outra personagem que sobressai na trama é Chloé, a francesa que recebe a misteriosa Helena em sua casa em Paris. Nos aposentos dessa casa decorada de móveis antigos e interiores entre luz, sombra e solidão, como nos quadros de HammershØi, vão se tecendo camadas de tempos e histórias de mulheres. Chloé é forte e feminista desde a infância, quando escapou do assédio de um professor misógino. Culta, independente e ativista, ela tem como missão proteger a filha Catarina do domínio marital, e com a filha, ela trava conversas cheias de reflexões sobre a vida e a arte, seja pintura ou poesia, pois só a arte poderia ser capaz de ajudá-las a suportar o horror da vida, “sendo feita a partir do horror da vida a arte traz uma sabedoria que não se encontra nos jornais ou na publicidade que se torna a cada dia o texto oficial do mundo”. E os assuntos de Chloé com Catarina derivam, passando pelo trabalho doméstico das mulheres no cuidado com os filhos, o degelo do Ártico, o desmatamento das grandes florestas, a poluição dos oceanos, a fome do mundo, chegando à causa de tudo isso: a infâmia do patriarcado.

O livro traz ainda outras referências e climas, como a música de Thelonious Monk e de Aretha Franklin, pairando na leitura como atmosfera sonora de algumas cenas. Há pitadas de humor e ironia nas maneiras clandestinas e ilegais que Chloé elege para o sustento de pequenos prazeres e luxos parisienses, que não citarei aqui, sob pena de retirar do leitor e da leitora o deleite dessas passagens. Mas posso sugerir que se trata também de uma espécie de vingança da personagem contra o universo masculino dos grandes museus, galerias e coleções de arte, uma subversão que zomba da veracidade de ícones da cultura ocidental, como o quadro de Mona Lisa.

As histórias são entrelaçadas numa relação de cumplicidade entre muitas mulheres, todas marcadas por uma espécie de dor muda, compartilhada, “lições de telepatia que atravessam o tempo”. E surpreende que a autora consiga intercalar momentos de melancolia e contemplação com episódios de selvageria e ação intensa de um verdadeiro thriller. Acompanhamos a silenciosa Helena se debruçar na mesa da biblioteca do Museu de História Natural de Paris, compenetrada em seu objetivo de desenhar a grafite “um porco tão real que provoque a ilusão de ser uma fotografia”, como nas pinturas holandesas, nos trompe-l’oeil e os chiaroscuro renascentistas dos quadros do Louvre. E de repente, estamos em uma cena de ação crua e sem qualquer delicadeza, imagens obscenas de abuso moral e sexual, degradação extrema, estupro, feminicídio e assassinato a sangue frio. Ou ainda, histórias vividas nas estradas, onde “proliferam as matanças, o sequestro e o tráfico de corpos e de órgãos”, “as mais diversas formas de vileza, crueldade, misoginia, miséria e violência”, um mundo masculino, como diria a caminhoneira Valéria.

E como se não bastasse, junto com toda ação e contemplação proporcionadas por Com os sapatos aniquilados, Helena avança na neve, há espaço para o amor entre mulheres e a evocação de pequenos milagres que surgem como pinceladas inusitadas no decorrer da trama. No atravessamento de tempos e memórias, há aparições espectrais de Gertrude Stein e sua companheira Alice B. Toklas, talvez munidas com receitas de bolo de maconha; há asas que nascem da corcunda de Helena; uma estátua de santa que fala; copos que permanecem cheios mesmo após terem sido bebidos por uma sede infinita.

Prevalece, após a leitura, uma sensação de que apenas a sororidade e a arte são capazes de conter a sanha do poder patriarcal e de todas as instituições forjadas na estrutura cultural de manutenção desse poder. Ou melhor, para além da sensação, Marcia Tiburi reforça a mensagem de ação e reação. As armas estão na mesa: as escritas ferozes de vidas, vivências compartilhadas numa prática de resistência corporal. Pois, segundo Duras, “não podemos escrever sem a força do corpo. É preciso ser mais forte que si mesmo para abordar a escrita, é preciso ser mais forte que aquilo que se escreve”.

Com os sapatos aniquilados, Helena avança na neve
Marcia Tiburi
Nós
240 págs.
Marcia Tiburi
É graduada em filosofia e artes, mestre e doutora em filosofia e pós-doutora em artes pela Unicamp. Sua área de investigação situa-se entre a estética e a política. Atualmente, é pesquisadora associada e professora convidada da Universidade de Paris 8. Dela, a Nós publicou Quatro passos sobre o vazio (2019), Um fascista no divã (2021) e O contrário da solidão (2021).
Luciana Tiscoski

É jornalista e escritora. Mestre e doutora em Literatura pela UFSC. Com o coletivo de poetas mulheres Abrasabarca (Florianópolis) participa dos livros Abrasabarca (Medusa, 2018) e Revoluta (Caiaponte, 2019). É autora da coletânea de contos Área de broca (Nave, 2021)

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