Um sorriso de Coringa

Os muitos filtros possíveis para tornar a literatura uma aventura ainda mais lúdica
Ilustração: Thiago Thomé Marques
01/08/2024

A coluna do mês passado foi interrompida no momento em que seriam apresentados o filtro Cardoso e o filtro Ramil. Vamos a eles:

Filtro Cardoso: uso exaustivo de palavras em CAIXA ALTA:
Nesta ALVA sala em que os olhos DOEM de tão LÍVIDA, nada mais há que uma POLTRONA de CAMURÇA marrom postada na frente de um PUFE igualmente ACOBERTADO e um TELEVISOR antigo, provavelmente TELEFUNKENÍACO ou SIMILAR. Permitindo o TRÂNSITO entre o cubículo e o resto do MUNDO, ainda há uma PORTA, ao lado da qual JAZ o interruptor responsável pela LÂMPADA que, acesa, QUEIMA. {Infinito, de André Czarnobai, também conhecido como Cardoso}

Filtro Ramil: todos os sinais de pontuação ganham algum destaque. O nome homenageia o compositor e escritor Vitor Ramil e seu terceiro romance, A primavera da pontuação, que principia assim:

Certa manhã pintou-se um quadro negro: uma palavra-caminhão, dessas que trafegam ameaçadoramente inclinadas, carregadas de letras garrafais, atropelou um ponto em uma esquina de frases e fugiu. Revoltada, a pontuação, que a tudo assistira, aglomerou-se no local do acidente. Exclamações nervosas e interrogações confusas logo instalaram o caos, provocando um avanço descontrolado de palavras seguido de grave engavetamento, ao fim do qual uma palavra-pneu rodou na direção de uma padaria, bateu no meio-fio e, saltando sobre o padeiro, chocou-se contra o balcão, quebrando o vidro do mostrador e espalhando palavras-pãezinhos para todos os lados. Um polvilho finíssimo subiu com força entre estilhaços, para depois descer suavemente sobre os ombros de um guarda-pó, que chegava com o objetivo de controlar a situação.

Luci Collin é uma de nossas escritoras mais criativas e versáteis, uma poeta e ficcionista que domina plenamente os filtros transgressores. Todos os seus livros oferecem um bom sortimento deles. Não somente os filtros mais básicos — os delitos de pontuação e das letras maiúsculas & minúsculas — mas também os mais sofisticados. Por exemplo, as notas de rodapé. Na breve ficção No céu com diamantes, da coletânea Inescritos, as notas de rodapé não cumprem a função esperada de uma tradicional nota de rodapé. Elas participam ativamente dessa narrativa feita de parágrafos de naturezas diferentes, que se estranham. Não esperaria menos de uma breve ficção que começa com um aviso: o ministério das drogas adverte: este conto é prejudicial à literatura. {Tempos atrás, aqui no Rascunho, Luisa Geisler publicou um relato de viagem intitulado Corpo discente (don’t call it a comeback). O recurso das notas de rodapé insubordinadas é o grande barato desse texto. Procurem na edição 279.}

Os mais de vinte títulos publicados por Luci Collin formam um catálogo espetacular de filtros transgressores. Um de meus filtros prediletos, o texto em colunas, também foi usado na coletânea citada há pouco. Também em Inescritos a autora oferece ao leitor o conto Dir-te-ei que (psicotópicos) composto de duas colunas verticais, Lado A e Lado B, e seis personagens em cada lado, os pensamentos descendo paralelamente…

Outros filtros igualmente eficientes:

Filtro Bueno-Diegues: portuñol salvaje.
Los abogados, los médicos, los periodistas, todos quierem fornicar com mi mamá. / Nadie tiene las tetas mais bellas que las de la xe sy. / Los gerentes de banco non resistem. / Los músicos, los guarda-noturnos, los karniceros, todos querem fornicar com ella. / Nadie tiene los ojos mais bellos que los de la xe sy. / Tengo três años. / Me enkanta jugar com la lluvia. / Y non tengo padre. / Los idiotas, los seccionaleros, los farmacêuticos, todos suenham enfiar el pau en la tatu-ro’o de mi mamá. / Todos los bugres de la fronteira deseam la xe sy como legítima esposa ni que sea apenas por una noche tíbia junto al lago azul de Ypacaraí. / La xe sy es la fêmea mais bella del território trilíngüe. {La xe sy, de Douglas Diegues}

Filtro Bananère: português macarrônico.
Migna terra tê parmeras, / Che ganta inzima o sabiá. / As aves che stó aqui, / Tambê tuttos sabi gorgeá. // A abobora celestia tambê, / Che tê lá na mia terra, / Tê moltos millió di strella / Che non tê na Ingraterra. // Os rios lá sô maise grandi / Dus rios di tuttas naçó; / I os matto si perde di vista, / Nu meio da imensidó. // Na migna terra tê parmeras / Dove ganta a galigna dangola; / Na migna terra tê o Vap’relli, / Chi só anda di gartolla. {Migna terra, de Juó Bananère}

Filtro Jaguadarte: palavras-montagem.
Era briluz na velha vilha brancamaleoa. Um queridoso e uma queridosa, a fim de rejuvelhecer um bocadito, adoutaram um garotário monstrombudo faminto por homulheres e elefantasmas de grande visibrilhidade. “Vamos celembrar essa adoução, putada!”, o polvo assovaiou. Bendito & feito. A velha vilha brancadeirante vibrou numa relampajelança supimpalavrosa. Celembrar até o solstício esporrar é sempre uma fresta! Mas o feiroz e antigosmento gachorro da melhor amargamiga do queridoso e da queridosa examirou bem a hindumentária e as sabotatuagens do homenino prodígito e gritrollou de espântano: “Perirgo, perirgo! Amanhoje esse visigordo exploudirá nosso horizontem!” Excrito & feito. Nesse mormento molenga-lenga um estroundo oceanônimo, exemplosivo, mais monstrombudo que o garotário, reduziu à poeira o gachorro, a amargamiga, o queridoso e a queridosa, a velha vilha corruptotal. Amoral da histeoria: quem conférias fere, com fera será conferiado. {Perirgo, perirgo!, de Sofia Soft}

Filtro Ball: também chamado de filtro Sonorista.
gadji beri bimba glandridi laula lonni cadori / gadjama gramma berida bimbala glandri galassassa laulitalomini / gadji beri bin blassa glassala laula lonni cadorsu sassala bim / gadjama tuffm i zimzalla binban gligla wowolimai bin beri ban / o katalominai rhinozerossola hopsamen laulitalomini hoooo / gadjama rhinozerossola hopsamen / bluku terullala blaulala loooo {Gadji beri bimba, de Hugo Ball}

Venho colecionando filtros literários há praticamente uma década. Minha coleção já conta com quase cinquenta filtros diferentes, uns mais simples, outros mais complexos. Bem antes disso, eu já utilizava filtros em minha literatura, mas de maneira esporádica.

Atualmente, em meu ateliê de criação literária, costumo apresentar & incentivar o uso de filtros, principalmente na escrita de ficção insólita. Principalmente na escrita de ficção fantástica & ficção futurista.

E sempre que os leitores vierem com a clássica pergunta — o que o autor quer dizer com isso? — minha sugestão é que respondam apenas com um sorriso, nada mais que um sorriso.

Um sorriso de Gato de Cheshire.

Um sorriso de Coringa.

{¿Literatura Mainstream versus Literatura Experimental?}

dois planetas gasosos orbitam a estrela da Literatura

um planeta grandalhão e um planeta pequenino

o planeta grandalhão é pelo menos dez vezes maior que o planeta pequenino

no planeta grandalhão estão todos os autores que respeitam as regras da Gramática

no planeta pequenino estão todos os autores que desrespeitam as regras da Gramática

em ambos os mundos existe uma grande população de Monoteístas

Monoteístas são os autores que acreditam que somente sua crença é legítima

os Monoteístas do planeta grandalhão gostariam que todos os autores do planeta pequenino parassem de desacatar regularmente as regras gramaticais

os Monoteístas do planeta pequenino gostariam que todos os autores do planeta grandalhão parassem de acatar cegamente as regras gramaticais

Monoteístas sãos uns babacas de visão estreita

não sejam uns Monoteístas monomaníacos

não sejam uns babacas de visão estreita

se vocês estiverem sentindo um forte impulso para o Monoteísmo, procurem ajuda intelectual

a estrela da Literatura admira mais — muito mais — os que apreciam um pouco dos dois planetas

Olyveira Daemon

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho