Os ventos recentes seguiram os incertos tempos em que vivemos neste planeta convulsionado. Pelo menos dessa vez eles sopraram em direção mais favorável ao que temos de melhor enquanto seres humanos dotados de razão e sensibilidade, embora ainda nos falte muito a alcançar.
Em seu podcast na Rádio USP em 12 de julho, a jornalista e professora Marília Fiorillo fez uma boa síntese: “Os ventos começam a mudar, soprando em direção a uma maior justiça, igualdade, liberdade, valores civilizatórios”. Referia-se à derrota da extrema direita nas eleições francesas, enterrando a iminência de uma França institucionalmente reacionária; a vitória dos trabalhistas sobre os conservadores no Reino Unido após 14 anos; e a vitória da ala mais moderada sobre a linha dura nas recentes eleições iranianas.
Nessa parte dos trópicos, mesmo com batalhas jurídicas que sofrem dos males de um sistema construído para “os de cima”, a impunidade, as falcatruas, as ladroagens e os crimes hediondos praticados no governo federal anterior começam a ser devidamente apurados. Há, como houve na queda da ditadura militar, um crescente movimento da sociedade que exige justiça contra a instrumentalização do Estado para benefícios privados/escusos, em oposição às políticas públicas democráticas e includentes expressas na Constituição de 1988. Ações de assalto à institucionalidade do Estado brasileiro, que foram lideradas pelo próprio ex-presidente, conduzido ao poder em 2019 pelo voto popular. Chegamos aqui, como em outros países, ao máximo da insensatez: destruir a democracia pelo voto.
Julho também marca um ano e meio do terceiro governo Lula que, apesar dos avanços obtidos, nem sempre bem demonstrados pela equipe governamental, ainda tem um enorme passivo para administrar.
Alguns desses passivos históricos foram agravados nos governos anteriores de Temer e de Bolsonaro, principalmente os ligados à educação, à cultura e, mais especificamente, à capacidade de os brasileiros e brasileiras realizarem adequadamente a leitura do mundo.
A literatura especializada é farta nas análises e evidências, e trato do tema nesta coluna quase como um mantra: ler adequadamente o real movimento social, econômico e cultural do mundo globalizado monitorado pelos algoritmos das big techs requer o pleno domínio das linguagens que comandam tudo isso. Saber ler e escrever plenamente, e não apenas funcionalmente, como a antiga definição de que alfabetizado é a pessoa que consegue ler e escrever seu nome, é algo que deve ficar definitivamente no passado de excludência.
Foram pesquisadores comprometidos com a educação, como a saudosa mestra Magda Soares, que dilataram consideravelmente os conceitos de alfabetização e letramento, ampliando os deveres da escola e dos governos no trato deste tema estratégico. Para Magda Soares, há uma diferença entre a pessoa alfabetizada e a letrada:
[…] um indivíduo alfabetizado não é necessariamente um indivíduo letrado; alfabetizado é aquele indivíduo que saber ler e escrever, já o indivíduo letrado, indivíduo que vive em estado de letramento, é não só aquele que sabe ler e escrever, mas aquele que usa socialmente a leitura e a escrita, pratica a leitura e a escrita, responde adequadamente às demandas sociais de leitura e de escrita. (Letramento: Um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998)
Superar esse passivo significa multiplicar ao cubo o maligno índice de apenas 12% da população brasileira possuir capacidade plena de leitura e escrita entre os considerados alfabetizados, como demonstrado na pesquisa Inaf/2018. É inviável um país com 78% de sua população com algum grau de analfabetismo funcional. Mais ainda, é fundamental chegar a zero o nível de analfabetismo, superando o vergonhoso número de 9,3 milhões de brasileiros analfabetos, ou 5,4% da população, segundo o IBGE apontou em 2023. E não valem os argumentos atenuantes, como as explicações de que o analfabetismo se situa mais nas pessoas com idade avançada porque foram gerações que não tiveram acesso à universalização da escola. Direitos são para todos e todas, não há desculpas para a exclusão e a urgência e a prioridade deve ser a marca dos programas destinado a cumprir esses direitos inalienáveis.
As últimas semanas trouxeram duas pesquisas que recaem sobre esse tema e trazem elementos que demonstram a centralidade da formação de leitores e leitoras para o presente e o futuro.
Uma delas demonstra ameaça à manutenção de editoras nacionais que garantam a bibliodiversidade no país. A série histórica da pesquisa Produção e vendas do setor editorial brasileiro (Nielsen Book Data/CBL/Snel) demonstrou que o setor editorial teve uma queda de faturamento de 5% entre 2022 e 2023, consolidando um encolhimento do faturamento de 43% desde 2006. O jornalista Rodrigo Casarin (UOL,10/7/24) reafirmou o que todos os pesquisadores e ativistas do livro e da leitura sabem:
Dá pra mudar? Enquanto há vida há chance, mas é um trabalho difícil e que leva tempo. Passa, não tem jeito, pela formação de leitores. Cairia bem apostar em discursos que falem mais sobre o prazer do que a respeito da relevância da leitura. Pessoas fazem as coisas porque gostam, não porque são importantes…
Concordo com Casarin sobre o “não tem jeito” e que sempre será importante formar leitores para o gosto pela leitura. É este o sentido dos eixos e do conjunto de sugestões recomendadas no primeiro Plano Nacional do Livro e Leitura/PNLL tanto para os profissionais e equipamentos públicos (escolas, bibliotecas, centros culturais, etc.) quanto para as famílias e instituições da sociedade civil. Ambientes acolhedores nas bibliotecas e mediadores bem formados, por exemplo, são fundamentais para a boa convivência com os livros em todos os seus suportes.
A segunda pesquisa publicada em junho, realizada pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico/OCDE e organizada metodologicamente pela OECD Truth Quest Survey, demonstra que o Brasil está em último lugar entre 21 países na capacidade de reconhecer conteúdos falsos, as notórias fake news.
Estamos em último lugar quando se trata de reconhecer, como pessoas adultas, se uma notícia publicada virtualmente é verdadeira ou falsa, atrás de países como Colômbia, Suíça, França e Estados Unidos. E muito distantes dos primeiros lugares da lista que, sim, têm capacidade de identificar as fakes news, como a Finlândia, o Reino Unido, a Noruega e a Irlanda.
Alguns fatores podem ser identificados para explicar esse fenômeno, inclusive a alta incidência da influência das políticas de ultradireita que são usinas de negacionismos e falsidades. É elucidativa a entrevista do antropólogo David Nemer, da Universidade de Virgínia/EUA, ao portal ICL Notícias, em 12 de julho:
Nemer, autor do livro Tecnologia do oprimido: Desigualdade e o mundano digital nas favelas do Brasil (editora Milfontes), reitera a importância de procurar “os fatores culturais de um certo padrão de comportamento. Entre os cinco últimos do gráfico, pelo menos Brasil, Colômbia, França e Estados Unidos são países em que a ascensão de uma direita muito reacionária criou uma demonização da imprensa, que tende a afastar os leitores da informação”.
Concordo que esses argumentos explicam uma parte do problema pelas conjunturas políticas, mas, no caso brasileiro considero os dados do nosso iletramento. Ao contrário dos quatro primeiros países da lista a identificar as falsidades e cujos índices de analfabetismo é zero, o Brasil ainda pena em compreender o que lhe chega por escrito ou pela fala no idioma dominado pelos detentores do poder. Aqui, como em qualquer parte, a leitura, que pode ser um prazer, é também necessária e assim deve ser estrategicamente considerada nas políticas públicas.