A nota biográfica vem logo de início. César Aira é um dos principais nomes da literatura argentina contemporânea, figurando entre as apostas para o Nobel de Literatura dos últimos anos. O autor destaca-se na internacionalização das letras de seu país, dividindo os holofotes com as escritoras do “novo horror” como Mariana Enriquez e Samanta Schweblin.
Se você não sabia disso, não se desespere. No Brasil, a obra de Aira tem circulado de maneira discreta e esparsa entre pequenas editoras. Isso muda com a empreitada da Fósforo, que vai publicar dezesseis das pequenas novelitas do autor. As quatro primeiras — O vestido rosa (1984), A prova (1992), O congresso de literatura (1997) e Atos de caridade (2013) — já chegaram às prateleiras.
O processo criativo de Aira é peculiar. Em particular, quando uma escrita vagarosa, que se deixa lapidar lentamente, é elevada entre os seus pares. Enquanto isso, o argentino é prolífico, tendo mais de cem títulos publicados desde sua estreia, em 1975, com Moreira. Além disso, ele não teme se aproximar de gêneros vistos como menores — aquilo que destoa de noções realistas. Se grande parte dos autores defende o silêncio e a reclusão como requisitos básicos para a criação, Aira prefere escrever fora de sua casa, em cafés, por exemplo. Esses fatores, é claro, não excluem a sua profunda devoção à literatura.
Como explicar a aclamação internacional de um escritor de “nicho”? A pergunta surge pois Aira destoa dos padrões de gosto da literatura e da crítica, tanto das tidas como canônicas quanto daquelas ligadas aos estudos culturais. Ele não poderia estar mais afastado do estilo musical de Jon Fosse, da autoficção de Annie Ernaux ou do anticolonialismo de Abdulrazak Gurnah — os três últimos laureados pelo Nobel.
Talvez a resposta esteja no fato de que Aira é um autor de muitos nichos. Seus quatro livros que chegam ao Brasil mostram isso. Ganhamos uma amostra de suas muitas singularidades: uma saga nos pampas argentinos, um pulp fiction punk de tons sexuais, um flerte com a ficção científica e uma quase parábola estão no cardápio de César Aira.
Seria exagero afirmar que as narrativas são para todos os gostos. Mas os leitores que se arriscam a molhar os pés em uma literatura que não pretende entrar para o rol da haute littérature estão bem servidos. Aira rejeita as pretensões de uma “boa” literatura, destoando da escrita pós-moderna e de seus experimentalismos — que podem soar gratuitos — em benefício de contar estórias por uma ótica irônica.
Tom extraordinário
O escritor é, sem dúvidas, afiado. Situações que poderiam ser banais adquirem tom extraordinário em suas mãos. Um vestido é o fio condutor da odisseia de um homem abobalhado — futuramente, elevado a juiz de paz. O trajeto de uma adolescente é interrompido quando duas punks fazem uma proposta nada sutil, que as leva ao violento roubo de um supermercado.
Um cientista maluco (o próprio César Aira), outrora descobridor de um tesouro, tenta clonar o escritor mexicano Carlos Fuentes e, numa desventura tragicômica, cria larvas gigantes que atacam a cidade de Mérida, na Venezuela. De forma refinada, a quarta novelita acompanha um sacerdote na missão arquitetônica de construir uma casa em que nada falte para seu sucessor.
O vestido rosa surgiu do desejo de Aira de escrever um conto. O rótulo causa estranheza, tratando-se das mais de cem páginas da narrativa. O livro é, muitas vezes, definido como um dos melhores romances do autor nascido em Coronel Pringles, na Província de Buenos Aires.
César Aira partiu de O recado do morro, conto do mineiro João Guimarães Rosa — o argentino é admirador confesso da literatura do Brasil. Em sua visão, nossas letras estão entre as maiores da América do Sul, ao lado da produção mexicana e a de sua terra natal. Na estória de Rosa, publicada em Corpo de baile (1956), temos a travessia de cinco homens pelo sertão mineiro.
Na novelita de Aira, o “bobo” Asís vive com sua família de criação, marcada pelo conflito entre a mãe e a esposa do irmão, Rosario. A anciã costura um vestido rosa (uma referência ao nosso Rosa?) para a filha recém-nascida de uma vizinha, despertando o ciúme da nora. Asís é convocado para levar o presente. Mas o menino Manuel, filho de Rosario, está decidido a roubar o vestido para sua irmã.
Antes dele, um grupo de nativos interrompe o trajeto de Asís, lançando-o numa travessia que dura décadas e perpassa as guerras do governo argentino contra os povos indígenas nos pampas. É essa viagem, tão metafísica quanto concreta, que faz Asís superar a sua condição de “bobo”, um mero espectador sem consciência das circunstâncias — convertendo-se em um respeitado e sábio juiz de paz.
Apenas três anos depois, Aira publica A prova. Ao contrário de O vestido rosa, que se passa no século 19, a novela de 1992 tenta captar a eletricidade da vida contemporânea na capital argentina. O foco está nos jovens punks, movimento que ganhou força entre as décadas de 1970 e 1980 com uma cultura subversiva e uma contemplação niilista — e bastante sarcástica — da existência.
A adolescente Marcia é interceptada por duas jovens de aparência agressiva. Elas lhe fazem um convite: “Quer foder?”. Esse é o tom inaugural da novelita de Aira. Ultrajada, mas ao mesmo tempo atraída pelo estilo de vida de Mao e Lenin, Marcia aceita conversar com as duas, questionando-as acerca de suas convicções.
Após uma série de respostas evasivas, as punks se propõem a dar-lhe uma prova de amor. Assim, a narrativa tem uma guinada brusca da alta voltagem sexual à alta violência. Mao e Lenin conduzem o assalto brutal de um supermercado, que culmina em assassinatos. O que prometia ser uma novela centrada em diálogos niilistas torna-se um pulp do final do século 20, encenado nas ruas de Flores, bairro em que César Aira vive desde a sua mudança para Buenos Aires.
O Congresso de Literatura, história publicada ainda na década de 1990, não poderia desviar mais da atmosfera de A prova. Um escritor e cientista maluco, o próprio Aira (o autor tem o costume de se colocar como personagem em alguns textos), descobre um tesouro. À primeira vista, parece que o leitor será brindado com um relato de viagem ou com uma narrativa fantástica de aventura.
A novelita vai além. O tom fantasioso é acentuado quando descobrimos que o personagem Aira tem como destino um congresso de literatura, onde seu objetivo é clonar um gênio — Carlos Fuentes, escritor e diplomada mexicano. Em uma série de desventuras, são as células da gravata de seda de Fuentes que acabam ampliadas, de modo que larvas gigantes atacam a cidade de Mérida. Mas nem tudo está perdido: em um grand finale de ação, com direito a uma cúmplice do sexo feminino, o grande Aira salva o dia, ovacionado pela população.
Requintada parábola
Se O Congresso de Literatura pode ser delírio demais para alguns leitores, Atos de caridade é uma requintada parábola, com uma escrita mordaz e irônica na medida certa. Publicada já no século 21, essa novelita e O vestido rosa são os destaques deste primeiro volume da Coleção César Aira.
A chegada de um sacerdote a uma região “economicamente desfavorecida” levanta um questionamento peculiar: deveria ele usar os recursos disponíveis para o exercício da caridade ou melhorar sua própria moradia, de modo que o seu sucessor não precisaria se preocupar com isso? Se ele escolhesse a segunda opção, os louvores da caridade cairiam sobre o futuro sacerdote.
Usando de todo o seu altruísmo — como escreveria Aira —, ele decide que os méritos devem ser do seu sucessor. O sacerdote aceita o seu sacrifício: a difícil empreitada de ter para si a residência mais luxuosa que poderia imaginar.
O que ele não poderia prever é que o sucessor também pensaria assim. Pior ainda: a moradia não supriu as expectativas do novo sacerdote. Para o luxo, não há mesmo limites. Uma sucessão de líderes espirituais transforma sua moradia em algo incompleto e monumental, similar a mítica Xanadu de Cidadão Kane, filme clássico de Orson Welles — por sua vez, o nome da propriedade deriva da cidade antiga de Xanadu, célebre por seu esplendor.
A crítica de Aira à igreja e às instituições é mordaz: “Na sua permanência, a casa se torna símbolo da alma virtuosa, da alma justa”. O olhar do autor também é visível em sua sátira das imitações baratas na literatura e dos “modelos” fáceis de escrita. O personagem Aira é categórico em O Congresso de Literatura: “eu sabia que com os clones é assim: um são todos”. Dificilmente o leitor de A prova — tendo comprado ou não a explosão de violência e o final delirante — sai impune da reflexão acerca da falta de sentido da vida contemporânea. O vestido rosa traça uma travessia rumo à consciência, com a mais bela prosa do conjunto. É marcante a última meditação do outrora bobo Asís:
Não, não sabia de nada. Mas ao menos sabia que amava o céu. E a beleza do crepúsculo o observava.
Essas são, é claro, possibilidades de interpretação. Nunca há uma só com Aira, ou respostas fáceis. Ao fim de suas novelitas, os bobos já não têm vez. A importância da obra de César Aira está em seu tributo à imaginação. Ele nos lembra que a criação literária pode ser frenética. Encontramos uma literatura com vida, pulsante. A inventividade ainda pode ser a matéria do escritor, ainda que parte do meio literário pareça ter se esquecido disso.
O cardápio de Aira chega bem variado. Aos que apreciam um belo projeto gráfico, os pequenos livros caem bem na estante. Para os que valorizam um bom aparato crítico, as edições vêm acompanhadas de posfácios de Ieda Magri, María Belén Riveiro, Gonzalo Aguilar e Ricardo Strafacce, que apresentam chaves de leitura da obra aireana. Cabe ao leitor escolher e ver se as novelitas lhe servem. Já adianto: vale, ao menos, experimentar.