Zero hora

Conto de Fernando Cesário
Ilustração: Fabiano Vianna
01/08/2024

Deparou no céu a fatia de lua minguante, que já ia alta, e umas cem, não, mil, mil estrelas piscando, tremeluzindo. A vista embaralhou, quando encontrou as luzes fortes nos postes, e o estômago ameaçou despejar para fora.

Voltou-se para o pedaço de chão a percorrer e, após breve hesitação, retomou o caminhar lento, o corpo balangando de um lado a outro. A média distância, o ronco de um caminhão dando partida; fez menção de espiar naquela direção, porém, se deteve nas chuvas de fagulhas, que escapavam do alto-forno da Siderúrgica. A tosse rouca; escarrou no asfalto a gosma avermelhada, e arrotou um bafo azedo de cachaça.

O finzinho da longa avenida, até onde a vista alcançava, onde ela mergulhava e sumia em meio à escuridão da madrugada, capacetes da peãozada e dos arigós, aos milhares, dependurados na tela que limitava o pátio interno. Com mãos trêmulas, acendeu o último cigarro do maço; em seguida, amassou a embalagem e arremessou-a, provocadoramente, na direção do vira-lata dormindo nos gramados do Escritório Central, o qual, rabo entre as pernas, ladrando, velocíssimo, pôs-se em fuga.

Olhos ardentes agora pela ponte de saída, onde, no final dos turnos, brotava, como num formigueiro, um mundéu de gente, para depois desaparecer, rapidamente, nas latitudes todas. Cambaleava. De novo, o pátio, onde estrupícios de guindastes, em sua lentidão, demoravam-se, arrastavam-se, regiravam-se; seus longos braços desciam até quase o chão, engoliam um corpo qualquer e o lançava na brasa do forno.

Veio-lhe à tona, inopinado, os tempos de usina, ele, bota de solado grosso, macacão sujo, capacete cinturando a cabeça… Todo dia: oito às quatro, quatro à meia-noite, ou zero hora. Ao deixar Minas, o plano, que trazia consigo, consistia em seguir para São Paulo, o ABC paulista, contudo, incentivado por um conhecido, que viajara na poltrona ao lado, abancou exatamente ali, na metade do caminho.

Encolhido de frio, cuspiu no chão, à cata de, na roda de saliva, uma pouquidão, que seja, de sangue. Aquela sua quase obsessão maligna que nele se fixara, desde o último inverno, e se repetia, favas contadas, intermitente, interminável, junto com a febre, nos fins de tarde (embora não fosse a ocasião própria e infalível — nos crepúsculos —, deitou o dorso da mão sobre a testa e os lados da face para sentir a temperatura); os acessos, as crises.

Por detrás da guarita, um batalhão de formigas-cabeçudas, envernizadas de grande, arrastavam fragmentos e detritos de folhas, o que, instantaneamente, magicamente, lhe remeteu à sua rocinha, lá no muito remotamente, lá no longe, detrás dos morros, nos fins das linhas de trens. Eram lembranças doloridas, claro está, que magoavam os nervos. Uma saudade, uma solidão de vastidões sem-fim, de várzeas de lambaris e morros de coleiros e canários… Porque ali, na cidade grande, era cada um para si, e, tinha razões para acreditar, Deus contra todos. Só não retornou nunca para Carangola porque tinha esperança de que um dia — a cada vez mais improvável, ele próprio admitia — faria vingar a sua vontade.

Poucos anos antes, quando o dia amanhecia, o sol nascendo por detrás dos morros, despertava-lhe misterioso e enigmático arrojo; rompia-lhe à superfície taludo impulso de… de se esforçar, meter os peitos; quem sabe não melhorava de situação, de salário, e comprava uma casinha no Retiro ou na Vila Mury, montava família e, de quebra, trazia os pais. Hum? Quem sabe!? Porém, quando nas noites, lhe rebrotava um penoso sentimento de desventura, de fracasso. Investigava por sobre os morros, no rumo de onde julgava ser Minas e, sem desejos, sem alma, assistia ao seu abatimento. Os olhos se molhavam de água e poeira e jurava que o mais aconselhável seria voltar.

Até o dia em que, no acampamento da empreiteira no Aterrado, onde se livrava com gente a três por dois, e recebeu uma carta da irmã comunicando o falecimento da mãe. Que desculpasse não ter avisado a tempo, foi tudo tão de repente, e um monte de confissões e desculpas outras, das quais nem se lembrava mais. Chegar cansado do serviço, quebrado, moído, meia-noite e tanta, e, ainda por cima, deparar com uma notícia daquelas…! Aí, a melancolia, a soledade, deram seus primeiros sinais. Afinal, “todos” os seus iam desaparecendo, pouco a pouco, a família se extinguindo. Desentocou-se para o terreiro entre as vilas de quartinhos, entre as furnas, e, no desterro e desabrigo — todos os dos demais turnos já dormiam —, olhando para os caminhos, para o céu, onde, acreditava piamente, sua mãe, o estaria seguindo e guardando.

Passou um ônibus da Itapemirim… outro da São Geraldo, depois de uns poucos minutos, e teve a cachaça, a vontade de pular dentro de um deles e fugir daquela terra desgraçada, porra, contraindo apertadamente as garras de encontro ao côncavo das mãos, e amassando, impensadamente, o envelope e o papel da carta (não teve coragem de atirá-la fora).

Descabelado, faces encovadas, olheiras manchadas de fuligem, nem notara que rumara na direção da Praça Brasil. Defronte ao Cine Nove de Abril, deu fé dos cartazes de filmes colados por detrás dos vidros, os pacotes vazios de pipoca jogados ao chão. Grogue, inteiramente grogue, viu-se na premência de tomar assento no meio-fio da calçada, descansar as carnes, os ossos. Estatelado, juntou bingas de cigarro caídos ao chão; amontoou as porcariinhas de fumo na concha da mão, enrolou-as num retângulo de saco de pipoca encontrado na sarjeta, e aprontou o novo pito. Pernas estiradas, procurava pelo isqueiro nas algibeiras. Acendeu, todo lânguido, o cigarro, enquanto os prédios, os carros estacionados, as árvores urbanas pareciam vir, de queda em queda, em sua direção.

Uns bons minutos depois, num trôpego e desequilibrante arranco, ergueu-se a prumo: a banca de jornais, em giros, a Lojas Americanas descrevendo círculos, o Hotel Central, onde, na fachada, um letreiro luminoso piscava seguidas vezes, letra por letra. Tirou uma última baforada e lançou o restante do pito no ar frio da madrugada.

A mais pura verdade, afinal, é que, após a morte da mãe, não fez sinceras forças no sentido de voltar à “terrinha”. De fato, não lhe apeteceria rever o cantinho de mundo onde viveram seus dias. Não. Nem se dispôs, em qualquer tempo, a visitar seu túmulo. Não. Cemitérios…! Estaria lá, sepultada, dissolvendo suas carnes, desconjuntando suas juntas. Que ela lhe perdoasse, que sua família lhe perdoasse, contudo… Mandou-lhes, na época, uns caramangos, que juntou vendendo jornais, ferros velhos e cascos de cerveja, a sobra da indenização, e ficou nisso.

Após a ocorrência — logo depois —, muito de quando em quando, enviava-lhes cartas, perguntava pelo círculo dos familiares… Dava notícias, dizia para não se preocuparem, que tudo andava bem: conseguira emprego fixo, salário compensador, todavia, nenhuma menção à sua saúde, aos “probleminhas”, nada. Nem de que passara a morar de favor com um quase conterrâneo seu, de Muriaé, técnico em metalurgia, que lhe destinou um comodozinho nos fundos da casa, em Siderópolis, onde guardava seus trecos desde o fim do Plano de Expansão, e a empreiteira desmontou o acampamento. Quiseram, inclusive, levá-lo para Angra, propuseram, ofereceram, mas, como não pagavam muito, aconselhado pelo amigo muriaeense, resolveu ficar por ali, aguardando por novo trabalho, dessa feita não mais como mero arigó, empregado das tais empreiteiras, mas um prestável e estável peão, quem sabe até um encarregado na Usina!?

Caramba…! Cambaleou, trambolhou, quase precipitando-se nas manchas escuras dos prédios projetadas na calçada. Após readquirir instável equilíbrio, ergueu a cabeça e pesquisou, na faixa negra do céu, a direção onde presumia ser Angra, Angra dos Reis, muito além das luzinhas fracas como luzes de cemitérios, no último dos bairros…

Com a mãos em viseira — uma da manhã, nos ponteiros do grande relógio, na fachada da farmácia — um silêncio sem fim —, os clarões, os neons… Boceja, o que lhe desencadeia novo acesso de tosse — o ar frio na garganta, os pulmões irritados… —; todavia, dessa vez, consegue refrear as incansáveis excreções, a náusea; nada do gosto de sangue no cuspe, na volta da boca. Então bem.

Girou o corpo. Por toda parte, ninguém. Na Rua Quatro, uma sirene cortava a noite, estrepitosa, ribombante, profunda, devastadora. Nada mais das estrelas detrás da claridade das lâmpadas imensas, medonhas, agourentas. A cidade morta, adormecida, sem vibração; toda a cidade, menos a Siderúrgica, que engolia vagões, fieira de vagões de minérios vindos de Minas. Minas, a sua terra, orgulhava-se de proclamar para si mesmo e para toda gente; daí a alcunha: o “Mineiro”.

Tirou dos bolsos as mãos, chutou, para longe, um pequeno toco de madeira, expeliu nova cusparada no chão, mais para pôr à prova as suas entranhas que, propriamente, por precisão.

De rua em rua, buscava conduzir-se justo por sobre os frisos das calçadas, seguir aquela linha que as cortavam ao meio, porém, o corpo quase nunca obedecia, pendendo ora para um lado, ora para o outro, como se encomendasse uma infalível e escandalosa queda.

Tio Bernardo… o velho tio Bernardo lhe emergiu na lembrança: desleixado, andrajoso, matuto, candidato ao hospício, escondido sob o chapéu de palha e agasalhos velhos e sujos fedendo a tabaco e morrinha. Nas noites, quando a escuridão infinda descia na Serra, a intervalos perfeitamente determinados, ele aparecia. Vinha pelas estradas, pelos trilhos das várzeas, encostas dos morros, pastos, e se punha, alheado, acocorado no terreiro, ou estirado nos degraus da escada, ou face a face com as chamas do fogão a lenha, sentado no banquinho de madeira, quentando as mãos espalmadas. Por acaso, ele, lá em suas carnes, não tinha medo dos escuros, não dava fé dos vultos e almas penadas? Um desplante, um atrevimento, sem estremeção!? (O engasgo, a fala engolida… Buscou ao redor, a fim de verificar se era seguido). Sacudiu-se pelas ondas de calafrios trazidos por seus pensamentos, os olhos arregalados. Tio Bernardo, virado do miolo — não batia bem —, em meio a seus desatinos, fazia conferências para a meninada de casos e mais casos de espíritos desencarnados, os quais habitavam estradas isoladas do mundo, atiçando, nas crianças, apreensões e arrepios, na hora de irem se deitar… Pois tais cismas, desembaladas, passaram-lhe, justo naquela mesma hora, por todos os seus poros e cabelos do corpo, como faz um ventinho gelado vindo do brejo, chispando para longes léguas.

De novo, tossiu, escarrou, desta vez de forma que não pôde reprimir, e a mancha vermelha-escura esborrachou no asfalto adiante.

— Merda! Eu tô fodido!

E lhe acendeu a chama do ódio, a exasperação marcada e atroz. Ódio do mundo, de meio mundo, do mundo mudo; das pessoas sem nome que, dali a um tanto de horas, abarrotariam aquelas calçadas, os botequins e cafés, invadiriam as repartições do Escritório Central, o Bandejão…

— Eu tô afundando — a voz áspera, quase rouca.

Sem piscar, olhos ferais escrutaram as casas enfileiradas, muito bem construídas, os muros baixinhos, que poderiam ser escalados num único jogo de pernas… Estendeu a vista até os quarteirões lá em cima, em frente à Escola Técnica, e retornou para o cenário de casas de paredes nuas, uma um tanto distante da outra, destinadas aos engenheiros do tempo da construção da CSN, os quintais, as jardineiras, os gramados…

Espremeu os dedos das mãos, uns de encontro aos outros, comprimiu-os, nervosamente; foi lhe prorrompendo incontida vontade de gritar, esgoelar; dentro de si uma ira ainda reprimida, ameaçava explodir. Afinal — visões salteavam dentro de si —, com apenas trinta anos e já se convertera num molambo de homem.

Então, puxou bem fundo o ar para os contagiados pulmões e, na madrugada fria como mármore, bradou bem alto:

“Volta Redonda,

Cidade do aço,

Muita mulher,

Pouco cabaço”.

Silêncio, silêncio; o mundo, as profundezas do mundo, também se pôs completamente isento de ruído. Um silêncio tumular prolongadíssimo. Inverteu a posição dos pés e, constatando a quietude em que tudo se mantivera, voltou a soltar a voz, o mais alto que pôde:

“Volta Redonda,

Cidade do alto-forno,

Em cada bar um bêbado

Em cada esquina um corno”.

Pronto! Deixou os braços caírem ao longo do tronco. Na instantaneidade, julgou perceber a janela de uma das casas se entreabrir e fechar-se, em seguida.

Sem trabalho e sem dinheiro, trinta anos e já se convertera num molambo de homem… Um tonto, um biriteiro!

Em três tempos, pôs-se novamente a caminho, dessa vez um pouco mais apressado feito possuísse um designo, um destino final, a cabeça ainda mais tonta — a vista, o globo dos olhos, giravam qual piorra —, as pernas vacilando, prestes a se precipitar numa queda para diante… Uma pontada fina atravessou-lhe o peito. Tossiu como se fosse arrancar os bofes, os rins… Ele suava, o corpo todo banhoso, mais adiante a guarnição do Tiro de Guerra, um soldadinho fazia a ronda, ia e vinha, rente ao muro, ia e vinha, outro na guarita tocaiava. Ouviu-se então um grito: “Pare!”; mas, não inferiu que era consigo, nada mais conseguia divisar, o facho de luz dos refletores sobre sua massa escura, desenhando um círculo de claridade ao redor de si, expondo o contorno da carcaça. Ainda a voz, aos altos brados, “Pare!”, o homem de verde, ao tempo em que, desfavoravelmente, algo o impelia para a frente, a bebida, a tribulação, talvez; rodou, tonteou, foi ao chão.

Quanto ao mais, na manhã seguinte, nada mais subsistia naquele cenário, a não ser um resto de sangue talhado no chão, justo onde ele caíra.

Fernando Cesário

Nasceu em 1955, no Rio de Janeiro (RJ), mas se mudou para Cataguases (MG), onde passou a infância e adolescência, e trabalhou, por 37 anos, como médico. Publicou as novelas Os algozes de sono (2000), Alma de violino (Prêmio Lima Barreto, 2004) e Olhos vesgos de Maquiavel (2011). O romance Sinos para os suicidas tem lançamento previsto para este ano, pela Faria e Silva. Possui contos e crônicas publicados em coletâneas (Novos contistas mineiros e Marginais do Pomba) e em suplementos literários.

Rascunho