Quando se lê um livro como Zoozona, do poeta Mauro Gama, tem-se ainda alguma esperança. Nem tudo se perdeu. E falar isto neste país pode ser uma dádiva, dessas que algumas divindades ainda oferecem aos homens. Eis um livro de poesia, de Mauro Gama, a quem José Guilherme Merquior chamou de mestre, dizendo-o “uma das vozes mais admiráveis da poesia em nossa língua”. Merquior estava certo. Aliás, Merquior pouco errava, queiram ou não seus desafetos. Provou até que uma estrela acadêmica decadente brasileira ligada aos poderes vigentes não passava de uma plagiadora de Spinoza, que transformou o filósofo holandês em militante de seu partido. Mas isso não tem a ver.
Estamos falando de Zoozona, uma aula de poesia e de poema. Uma lição de como se colhe a poesia ainda existente e como se constrói a poesia sem a farsa de um João Cabral de Melo Neto, por exemplo, que usava régua e compasso para estruturar seu poema sem alma e sem sangue, um engenheiro juntando seus tijolinhos com fio de prumo. O poeta e crítico Mauro Gama não é farsante. Não. Prova são os poemas deste livro. É bom colocar aqui palavras do poeta para explicar sua obra: “Desde o início, minha criação poética teve sempre duas vertentes. Uma voltada para dentro, subjetiva, lírica, introspectiva, e a outra voltada para fora, objetiva, social e até política, satírica com freqüência”.
Mauro Gama explica que essas, no entanto, não são diferenças rígidas, inalteráveis. Seus dois primeiros livros, Corpo verbal e Anticorpo, mantêm essas diferenças com toda nitidez: “São paradigmas desse comportamento, de antinomia e complementaridade”. O poeta observa, então, que a partir delas — como diz — “a divisão se observa mais em grau, em predomínio, do que em terrenos, ou conjuntos, distintos”. São dois livros num só volume: Zôo e Marcas da noite. Sem erro: o que de melhor se pode produzir em termos de poesia, especialmente num país que está sempre a se enganar no que diz respeito a esse gênero literário. A poesia se transformou em algo descartável completamente por conta da mentira de todos os dias de um jornalismo cultural medíocre que inventa poetas da noite para um dia, que escrevem poemas que não resistem a uma crítica razoável. Marcas da noite, especialmente, é uma lição de poesia e de poema, tal beleza de palavras em tom poético de música. Vejam apenas os primeiros versos do poema Ação no escuro: “Na escuridão repisada/ de águas esquivas/ e tábuas/ um cheiro vivo de velas/ e flores já sufocadas”. Um retrato de palavras certeiras. Mais um exemplo, em Fuga em si menor: “As estrelas — feridas — se descamam/ perdem pestanas viram mamas e ânforas:/ há olhos congelados dedos cegos/ tubérculos em febre. Os lagos arfam/ passa um frêmito azul na água dos juncos/ os sapos se extasiam a banda e os banhos/ bilham erguem-se cantos balões bombos”.
Mauro Gama sabe lidar com as palavras. Faz com elas o que bem entende. O som, as sílabas, a frase poética, o verso, as letras. Isso também está presente em Zôo, poemas sobre e para bichos, numa linguagem poética rara. Como em Girafa, pequeno exemplo: “Este é um camelo metafísico:/ cansou de areia de deserto/ e é um movimento para cima —/ sempre partindo para o céu”. O poeta e também crítico de literatura observa na sua apresentação que “a poesia, quando verdadeira, jamais se esgota na composição, ou na fisionomia gráfica que adquire”. Tem razão. É assim mesmo.
Por fim, tomo a liberdade de sugerir ao leitor de Zoozona que arranque um trecho do livro que tem o título Saída, da página 87 a 91. Arranque e jogue fora. Esqueça. Trata-se somente de uma mancha num belíssimo livro de poesia. De uma inutilidade surpreendente. Uma espécie de pequeno manifesto, bem pequeno mesmo, que torna difícil entender por que razão entrou no livro. Num dos trechos, Mauro Gama afirma que “perpetrar sonetos, por exemplo, é caso de internação”. Para citar apenas dois casos, teríamos então de internar imediatamente Glauco Matoso e tirar Bruno Tolentino da morte para interná-lo também. Arranquem essa parte. Poetas como Mauro Gama têm, claro, o direito de escrever o que bem entenderem. Mas quando a bobagem é demais, dói.