Mulher entre os peixes

Conto de Lucia Bettencourt
01/08/2008

Alguém lhe dissera que, para escrever, era preciso sonhar peixes. Começava-se sonhando peixes discretos, que mal-e-mal consubstanciavam sua existência entre a líquida maciez do sono. Depois de treinada, podiam-se sonhar peixes maiores, lentos e confiantes como meros, ou violentamente rápidos como marlins-azuis. Ela, agora, quando apanhava a máscara e o respiradouro para ajustá-lo sobre a face, sonhava-se escrevendo. E, submergindo nas águas transparentes, ia observando a substância mesma dos sonhos. Nas páginas líquidas uma ou outra palavra sobressaía como o rápido clarão de um peixe. Fulgurava e, antes mesmo que seu cérebro pudesse registrar sua beleza, já havia mergulhado, discreta, entre as outras, deixando apenas uma possível incerteza de sua presença.

Seus olhos enxergavam os peixes. Sua mente, palavras. Nada que se comparasse com o dia, já remoto, quando, ancorada numa pacata praia, avistara uma baleia. Um mamífero deslocado entre peixes fugazes. Ela gostaria que sua escrita se destacasse assim, de repente, bela e solene, diferente, mas, ao mesmo tempo tão pertinente, como a baleia confusa que viera visitá-los naquela praia longínqua.

As cores fugazes só apareciam quando ela submergia. Por cima da água só conseguia ver a opacidade acinzentada que os peixes ofereciam, destacando-se no líquido apenas pela sua concretude. Quando mergulhava, porém, as cores explodiam e era um festival de amarelos e azuis, negros e vermelhos, verdes e prata.

Submergiu lentamente e só o que escutava era o som compassado de sua respiração, o ar correndo pelo tubo, sendo sugado por sua boca e expandindo seus pulmões, enchendo-a de vida e capacitando-a a nadar, serena, entre algas escuras e peixes indiferentes. Eles passavam por ela, nadavam na direção dela, destemidos, curiosos. Alguns saíam de suas tocas para observá-la na sua desajeitada humanidade. E ela seguia, mascarada, vestida com nadadeiras falsas, consciente daqueles olhares levemente zombeteiros, que a observavam.

No fundo de areia, muito claro, destacavam-se estrelas de todos os tamanhos. Brancas e vermelhas, elas se mantinham plácidas e distantes como suas irmãs celestes. Os ouriços, tão comuns, ameaçavam com seus espinhos a quem deles se aproximasse. Peixes pequenos se azafamavam entre as folhas ondulantes das algas, incautamente se aproximando de caranguejos que, agressivos, tentavam pinçá-los. Ela passava por aquele mundo, perturbando-o, mas os peixes, generosos, se acomodavam a seu corpo mal-desenhado, a seus movimentos inarmônicos.

Foi com surpresa que constatou a presença de lulas. Era a primeira vez que as encontrava por ali. Seus corpos pareciam translúcidos e ela as tomaria por folhas descoradas de algas se não fossem por seus olhos, atentos, vigiando-na. Uma verdadeira colônia de lulas fazia dela o centro de suas atenções, e ela observava e era observada com deleite e receio.

Ali, dentro d’água, tudo tomava uma outra dimensão, e o tempo parecia perder sua urgência, estagnado. Os peixes-palavra nadavam sem ordem gramatical, esbarrando uns nos outros, mas formando um conjunto de beleza ímpar, inteligível e completo. Via os peixes e sonhava palavras. Nadava, intrépida, num mundo que não era o seu, mas que a aceitava, magnânimo, enquanto o ar que ela trazia consigo não lhe falhasse. Os sons, compassados, eram os sons de sua própria vida, e eram os únicos que escutava.

Em casa, mais tarde, tentava sonhar os peixes, enquanto lia as palavras. Os seus ouvidos estavam cheios de ruídos estranhos, campainhas de telefone, marteladas nas paredes, vozes, nada que lhe dissesse respeito. Tentava nadar entre as palavras, mas sentia-se submergir. E as palavras fugiam-lhe: como peixes assustadiços, nadavam para outras paragens.

Definitivamente, para escrever, era preciso sonhar peixes. Mas talvez fosse necessário sonhar também redes e anzóis, e ela não desejava esse sonho. Queria suas palavras-peixe nadando soltas pelas suas páginas, criando seus próprios percursos. Queria que sua página fosse pouco a pouco deixando de ser praia, e se transformando em mar, e depois oceano, cuja profundidade abrigasse todo tipo de peixe, até aqueles apenas suspeitados, que só sobrevivem na densa escuridão do abismo. Era com essa ilusão que mergulhava no aquário, desajeitada, e se iludia entre sonhos. Nas águas transparentes se via sendo examinada pelos peixes, e se aquietava, não fossem seus movimentos descompassados afastá-los de perto de si. Em instantes de muito sossego, sem vento nem danças de sombras alegradas pelo sol, uma ou outra lagosta chegava até perto e editava seus peixes, com pompa acadêmica. Ela saía da água, o rosto marcado pela máscara, e se deixava ficar olhando as ondas, esperando o momento.

Suas tentativas eram tímidas. O corpo boiava, somente o rosto enfiado na água, os olhos mergulhados no líquido. Um dia decidiu-se. Era preciso mergulhar, submergir completamente, ir até onde os peixes habitavam, conviver com eles. Vestida com um traje escuro, equipada com instrumentos que lhe conservariam a vida, ela ousou. No meio do oceano, distante de seus abrigos habituais, ela se jogou na água misteriosa. Seu corpo submergiu e ela, apavorada, sentiu o ar faltar. O coração disparou, assustado, os pulmões perderam o ritmo e ela desistiu, voltou à tona, entristecida.

Naquele mundo de silêncios, julgou ouvir uma voz que a tranqüilizava, repetindo que, para escrever, era preciso sonhar peixes. Então fechou os olhos, esperou que o som de sua respiração se regularizasse e, quando os abriu, estava no meio de um cardume. Seu olhar não se cansava de acompanhar os movimentos curiosos dos peixes que a escoltavam em sua descida, cada vez mais profunda. Um linguado se incomodou com sua proximidade e mudou de lugar, espanando areia numa nuvem. As algas dançavam, os corais exibiam suas cores enquanto ela se deslocava em movimentos lentos, de braços abertos, as pernas movendo-se compassadas. Numa caverna, um peixe de longos dentes abria e fechava a boca, como se desejasse lhe dizer algo. Ela se concentrava, mas não entendia seu recado. Não importava. Os peixes passeavam a seu redor, curiosos. Um deles, azul, com escritos amarelos ininteligíveis, avançou sobre sua boca, apertada no respiradouro. Ela compreendeu. Não precisava mais submergir. As palavras-peixe viriam. Era sua hora de voltar à superfície.

Lúcia Bettencourt

É vencedora do Prêmio SESC de Literatura 2005 com o livro de contos A secretária de Borges (Record, 2006), do Prêmio Josué Guimarães (2007) pelos contos A mãe de ProustA caixa Manhã, e também do Prêmio Osman Lins da Cidade do Recife. É colaboradora do Rascunhoe do suplemento literário Idéias, do Jornal do Brasil. Publicou também Linha de sombra (Record, 2008). A novela O amor acontece será lançada em breve.

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