Em uma conferência proferida em Londres, em 1996, a escritora portuguesa Lídia Jorge debateu a idéia bastante difundida de que o romance, como forma literária, estaria agonizando. Apesar dos lugares-comuns próprios ao tema, a escritora fez considerações bastante pertinentes sobre algumas preocupações da ficção contemporânea. Referindo-se a um leitor “indignado” que certa vez a acusara de insistir em um formato literário caduco e condenado, Lídia Jorge explicou que alguns de seus romances, de fato, podem parecer antiquados. Afinal, ao contrário da literatura rápida (para ser lida em qualquer parte, aos fragmentos, em qualquer ordem) que o mundo contemporâneo parece demandar cada vez mais, seu segundo livro, por exemplo,
era longo, descritivo, não ia direto ao exemplo, nem estava a ser construído para ser lido enquanto um autocarro chegava e outro partia. Pelo contrário, precisaria de uma sólida mesa-de-cabeceira que o pudesse acolher e dum bom marcador para ser lido devagar, noite após noite, no sossego da casa.
Trata-se quase de uma declaração de princípios literários. Lídia Jorge é uma autora que se lê devagar, e com atenção: sua frase é longa e trabalhada, seus enredos são lentos. Dizer que a linguagem de seus livros é barroca pode dar a falsa impressão de que é artificiosa, o que não é necessariamente verdade. Em grande parte, o cultivo da frase está a serviço da criação de uma linguagem que incorpora a oralidade das regiões que descreve, de imagens verdadeiramente poéticas, e de metáforas sobre algumas das questões mais recorrentes na literatura portuguesa, como a da identidade da nação.
Não se trata da exaltação de certa identidade mítica, de cunho sebastianista, de um Grande Império Português. Também não se trata de uma literatura engajada, revolucionária, aferrada aos valores da Revolução de 1974. Os personagens de Lídia Jorge são de uma geração pós-colonial, em que o império foi desmantelado, mas em que os ideais revolucionários também já foram frustrados. Por exemplo: há quem interprete seu primeiro romance, O dia dos prodígios (1980), como uma metáfora da revolução: o povo da pequena comunidade interiorana, que espera por uma aparição mágica, não compreende seus sinais, assim como o povo português não teria compreendido a revolução ou sequer tomado parte dela de fato. A espera representa um destino em aberto, a ser cumprido, embora a nação não pareça disposta a cumpri-lo.
Jogo metaficcional
Nos livros seguintes, a ação dos enredos se transportaria para um universo mais citadino, a questão da identidade ganharia outros contornos. Seu romance mais celebrado talvez seja A costa dos murmúrios (1988), já lançado no Brasil pela Record, que trata da guerra colonial e, estruturalmente, promove um imbricado jogo metaficcional.
Hoje, Lídia Jorge é considerada uma das autoras mais importantes da geração de romancistas portugueses que estreou no início dos 80, e mantém uma carreira das mais produtivas. O vento assobiando nas gruas(2002), seu oitavo romance, lançado agora no Brasil, foi um sucesso de crítica e de público. Venceu os prêmios da Associação Portuguesa de Escritores, da Fundação Günter Grass, além do Prêmio Correntes d’Escritas/Casino da Póvoa. Além disso, foi um enorme sucesso de vendas.
Aparentemente, trata-se de um romance convencional se comparado, por exemplo, à estrutura narrativa de A costa dos murmúrios. De fato, o enredo é mais linear e não carrega a obsessiva questão metaficcional. Estamos na cidade fictícia de Santa Maria dos Valmares. A história tem início em frente a um grande prédio, aparentemente abandonado, em cuja fachada lê-se: Fábrica de Conservas Leandro 1908. Prostrada frente ao edifício está a jovem Milene Leandro, descendente da família que outrora fora uma das mais poderosas da região. Desorientada, ela se abriga dentro da fábrica, onde termina por encontrar uma grande família que ali vive, recém chegada de uma viagem e cuja matriarca, Felícia Mata, logo acolhe Milene. Órfã, Milene vivia com a avó, cujo corpo foi encontrado em frente à antiga fábrica, e agora vive a incerteza de precisar explicar a história dessa morte para os tios, que a tratam como um estorvo.
A convivência entre Milene e os Mata não será das mais pacíficas. Logo, as diferenças sociais entre as duas famílias se evidenciam. A família Mata é cabo-verdiana, e lida de maneira ambivalente com a aculturação portuguesa, já que tenta manter as tradições de seu país, ao mesmo tempo em que os mais novos, nascidos em Portugal, sentem-se portugueses. Mas a maior distância é, obviamente, social: pelo lado da família Leandro, temos os tios de Milene, mais preocupados com questões imobiliárias e do espólio da falecida do que com a saúde da sobrinha. E o passado das famílias, que vai sendo lentamente desvelado ao leitor, tornará virtualmente impossível a relação entre Milene e Antonino Mata, um viúvo que trabalha nas gruas evocadas no título.
Lugares intricados
O enredo pode parecer banal, descrito assim. Mas há lugares intricados na escrita de Lídia Jorge. A começar pela lentidão da narrativa, em grande parte mantida pelo exercício da repetição. Por exemplo: cada capítulo é subdivido em fragmentos menores de texto, separados por um espaço em branco. Muitas vezes, essa pausa não possui a função (esperada) de separar cenas diferentes ou indicar novos rumos ao enredo; mas está apenas cadenciando a narrativa, que é retomada em seguida quase nos mesmos termos:
As tias tinham dito — “Meu Deus, vamos descansar um bocado…”
Também Milene precisava de descansar.
Precisava, sim. Enquanto eles abalavam, ela tinha ficado no limiar da porta, para ter certeza absoluta de que desapareciam, e as suas mãos tremiam no meio dos batentes.
Também são repetitivos os momentos em que acompanhamos os pensamentos de Milene, seus movimentos circulares e suas obsessões. Uma delas consiste em ligar a um primo distante, com quem nunca consegue falar. Milene contenta-se, então, a deixar longas mensagens na secretária eletrônica.
Personagem ávida por comunicação, mas incapaz de se fazer ouvir com atenção, Milene apresenta um comportamento estranho, algo infantil, o que só será explicado no final do livro. Ela é uma moça “simples de espírito”, e seu alheamento se faz notar na linguagem, no raciocínio circular, e na percepção excêntrica das coisas. Por exemplo, nas referências pop que, neste romance, não são gratuitas, mas funcionam como um indício do desajuste de Milene na paisagem em que vive. Assim, uma fresta em uma construção a faz lembrar de um “alvéolo do Alien III”; ou um pequeno gesto de rebeldia a faz se sentir “como se tivesse participado de um filme com o Clint Eastwood ou o Schwarzenegger”.
Mas como um romance longo, sem peripécias folhetinescas, e cuja estratégia textual mais evidente é a repetição e o cadenciamento da narrativa, pode se tornar um best-seller em Portugal? Em primeiro lugar, esse dado nos diz muito sobre as diferenças entre o mercado de livros de Portugal e do Brasil. São realidades muito diferentes, é óbvio, com tradições literárias que, pelo menos modernamente, mantiveram poucos pontos de contato em comum. Mesmo quando a orientação temática era convergente (pensemos nos autores do neo-realismo português, que leram muitos romances brasileiros da década de 30), os caminhos formais se afastavam significativamente. No Brasil, Lídia Jorge é uma autora que consideraríamos difícil ou, mais do que isso, que pode facilmente ser relegada à categoria de “leitura de especialistas”. O que é uma injustiça.
É verdade que a cadência narrativa de O vento assobiando nas gruas poderá soar monótona demais para o leitor brasileiro. E com razão, já que essa é a intenção da autora, a de criar um tempo paralelo, de acordo com a percepção que Milene tem do mundo a sua volta, e da própria condição daquele lugarejo frente ao resto do país. Também é verdade que, em um mercado editorial com tantos lançamentos, em que é difícil mesmo para os leitores especializados manterem-se atualizados com tanta variedade, investir em um romance como este de Lídia Jorge pode parece uma excentricidade. Mas talvez, exatamente por isso, seja recomendável encarar suas quase 500 páginas. Porque a literatura deve ser assim mesmo, excêntrica, a ponto de ser dar ao luxo de ser lenta e contemplativa. E embora não seja a melhor obra de Lídia Jorge, O vento assobiando nas gruas é um bom romance, de uma escritora ciente de seus recursos e com uma trajetória literária das mais coerentes.