Além da escrita, não há nenhum papel para o autor. “Nela [o autor] nasce, se inventa e se esgota”, escreve Elena Ferrante em Frantumaglia, coletânea de não-ficção composta por cartas e entrevistas. Desde seu primeiro lançamento, a autora italiana tece críticas sobre os relacionamentos entre autores e o jornalismo cultural, acreditando que toda atuação de um escritor se encontra no texto. Pouco tempo após a publicação de Um amor incômodo, seu romance de estreia, disse em carta: “Já fiz o bastante por essa longa narrativa: eu a escrevi; se o livro for de algum valor, isso deve ser suficiente”.
Ferrante moldou a carreira a partir de um pseudônimo. Mantendo sua figura autoral “ausente”, leitores e jornalistas constroem a escritora italiana apenas a partir dos traços biográficos presentes nos livros e entrevistas. Sua escolha foi muitas vezes confundida com “anonimato”, que implicaria uma escritora desconhecida ou sem nome, e acusada de criar “polêmicas midiáticas” para vender livros, queixa que ignora o fato de o sucesso ter surgido antes da personalidade ser posta em xeque.
No entanto, a trajetória da escritora italiana está marcada pelo desrespeito às suas posições intelectuais. Na leituras dos trechos de Frantumaglia, é possível notar uma insistência exaustiva pelos jornalistas e diversas entrevistas que ignoram os livros para focar apenas nas questões sobre sua identidade. Outro caso emblemático aconteceu em 2016, quando o jornalista italiano Cláudio Gatti investigou dados bancários sigilosos para atribuir à Anita Raja os escritos de Elena Ferrante.
Gosto de pensar que a figura de Elena Ferrante é importante apenas naquilo que se propõe: Ferrante é uma escritora, nascida em Nápoles, filha de uma costureira e com duas irmãs. Entre suas inquietações estão as situações de abandono, principalmente em personagens femininos, e a investigação de relações maternais. Mesmo que saia das mãos de Anita Raja, de Domenico Starnone ou de qualquer outro… pouco importa. Conhecemos Ferrante naquilo que escreve; nas temáticas, estilo e formas do texto. Qualquer coisa que extrapole o texto, é inútil.
Escreveu Elena Ferrante em Frantumaglia:
Conto histórias de mulheres de classe média, cultas, capazes de se autocontrolar. Elas dispõem dos instrumentos adequados para refletir sobre si mesmas. A linguagem lenta, distante que utilizo é a delas. […] Depois algo se rompe e essas mulheres se desmarginam, assim como a linguagem que estão tentando usar para contar suas histórias também se desmargina. A partir daquele momento, o problema […] é reencontrar gradativamente a linguagem fria e, com ela, uma forma de autocontrole que impeça que as mulheres se percam na depressão, no menosprezo de si próprias ou em um sentimento de revanche perigoso.
Desmarginar é a palavra que Ferrante usa para marcar, por exemplo, a crise existencial gerada pelo abandono e traição de Olga pelo marido em Dias de Abandono, e que é definida por Rafaella Cerullo, conhecida como Lila, ao longo das páginas da Tetralogia napolitana como uma ocasião em que “de repente se dissolviam as margens das pessoas e das coisas”, sentido pela primeira vez após um forte episódio de violência masculina.
Tetralogia napolitana
Originalmente publicada entre 2011 e 2014, a Tetralogia napolitana foi recentemente relançada pela Biblioteca Azul em uma versão com box, novo projeto gráfico e posfácios inéditos escritos por Fabiana Secches, Francesca Cricelli, Maria Carolina Casati e Maurício Santana Dias — também responsável pela tradução do projeto —, que concluem cada um dos quatro volumes: A amiga genial, História do novo sobrenome, História de quem foge e de quem fica e História da menina perdida.
Ao longo das mais de 1.700 páginas, acompanhamos Lila e Elena Greco, apelidada de Lenu, ao longo de seis décadas de existência: do nascimento da amizade, ainda na infância, entre duas meninas nascidas em um bairro pobre de Nápoles permeado pela efervescência e esperança da Itália na década de 1950, até a velhice, no início da década de 2010.
Ferrante conta que queria contar a história de uma amizade ao longo de uma vida inteira e retratar toda sua complexidade, mostrar “como uma obtém força da outra. Mas atenção: não apenas no sentido de ajuda mútua, mas também no sentido de pilhagem mútua, roubo de sentimento e inteligência, extração recíproca de energia”.
Se as inimizades são simples, sentimentos puros de aversão, a amizade é complexa, íntima e perigosa, às vezes com a mesma medida de ódio e amor. Para Elena Ferrante, a situação se torna ainda mais complexa no caso da amizade feminina, já que não é regida pelos mesmos acordos tácitos do afeto masculino.
A narrativa começa como uma rusga, quando Lenu, já idosa, recebe uma ligação de Rino, filho de Lila, procurando pela mãe. Lenu explica que Lila sempre teve um desejo de “sumir sem deixar rastro”. Não como uma vontade simples, porque “nunca teve em mente uma fuga, uma mudança de identidade, o sonho de refazer a vida noutro lugar. E jamais pensou em suicídio, incomodada com a ideia de que Rino tivesse de lidar com seu corpo, cuidar dele”. O objetivo de Lina era mais complexo, “queria volatilizar-se, queria dissipar-se em cada célula, e que ninguém encontrasse o menor vestígio seu”.
Rino conta que não há sequer um traço de Lina: roupas, livros, fotos, vídeos, escritos e gravações. Qualquer coisa que pudesse registrar a presença da mãe desapareceu. E é o incômodo com a possível concretização do desejo de Lila que leva Lenu a escrever o romance, como um desafio: se Lila não quer deixar vestígios, não pode apagar o fato de que viveu.
Lenu esforça-se para comprimir a realidade, transformá-la em uma massa crítica capaz de ser reproduzida fielmente pelas palavras. Lila, por outro lado, é uma agente de resistência. Lembra Lenu de que o mundo não cabe nas páginas de um livro e que muitos acontecimentos habitam os pontos cegos. Por isso, a trama tensiona-se constantemente entre a ânsia de retratar o mundo e os limites da narrativa — uma tensão entre Lenu e Lina, que transforma a narrativa em uma singela brincadeira de bonecas, um faz-de-conta entre as duas meninas.
Um dos desejos de Ferrante era o de contar uma história em que a “voz narradora omitisse abertamente uma parte da história como se não conseguisse levá-la até o fundo ou como se suas páginas fossem o rascunho de uma história que jamais conseguirá ser passada a limpo porque é a outra, aquela que não narra, mas que é narrada, que tem a força para levá-la completamente a cabo”.
A amizade de Lila e Lenu se estabelece dentro desta dinâmica complexa e simbiótica em que ambas são, simultaneamente, antítese e complemento. No fluxo da relação, compartilham desejos, amores e rivalidades. É Lila quem dá significado para grande parte das ações de Lenu, quem instaura nela o sonho de enriquecer como forma de fugir da violência do bairro e do domínio dos Solara e, juntas, desbravam a possibilidade de traçar este caminho por meio da escrita, quando leem juntas uma edição de Mulherzinhas, de Louisa May Alcott. Em certo momento, Lenu diz: “o que eu podia me tornar fora da sombra de Lila não contava nada”.
Lenu e Lila dedicam-se à escrita e à arte de contar histórias desde muito pequenas, quando ainda brincavam com bonecas. Lenu inveja a capacidade que Lila tem de criar imagens, tramas envolventes. O primeiro livro da amiga, A fada azul, impressiona Lenu a ponto de guardá-lo até a vida adulta. Mas a primeira cisão entre as duas se dá quando Lila é impedida de continuar seus estudos, precisando recalcular as rotas para a riqueza com um casamento de interesse ainda adolescente, mas Lenu, não. Escolhida pela professora como aluna promissora, Lenu recebe ajuda de custo para parte das provas e trabalha para manter-se como estudante ao longo de muitos anos de vida.
Parte da estrutura que Ferrante propõe é conhecida dos romances de formação, como a saída do mundo familiar e restrito para espaços férteis, permeados por transformações históricas e sociais. Lenu e Lila traçam seu caminho em busca da autonomia individual ao mesmo tempo em que as cidades entram em ebulição. Cada uma — em Nápoles, ou pelo mundo — interioriza as transformações sociais e suas particularidades.
O percurso delas envolve a descoberta dos primeiros amores, a preparação para um ofício profissional, a formação intelectual e a aquisição de cultura, além dos casamentos arranjados com classes mais abastadas — ainda que fora da conclusão da história. Como parte específica dos romances de formação femininos, há também discussões sobre a maternidade, o sucesso na carreira, a busca pela independência financeira e o questionamento sobre a natureza do matrimônio.
No entanto, o que me parece mais interessante é uma pequena subversão que Ferrante propõe. Além de não se restringir aos elementos citados acima, a autora italiana apresenta um jogo que não está focado no indivíduo, mas nas relações sociais. Lenu, por exemplo, estuda a partir da percepção que a professora tem dela e de Lila. Ambas agem a partir de acordos propostos internamente, que definem qual delas será a cruel e qual, a amiga genial.
Nápoles tem um papel crucial para a dinâmica. Não só pela construção do espaço e as lutas políticas tão presentes no momento de efervescência e modernização, mas pelas dinâmicas que emergem de um espaço em constante pressão. Ao descrever a cidade, Elena Ferrante comenta em Frantumaglia que “a ideia de que cada eu é, em grande parte, formado de outros e pelo outro não era uma conquista teórica, mas uma realidade”. Ali, o espaço geográfico restrito obriga o contato constante, muitas vezes alternando entre desdobramentos odiosos e benevolentes. Ferrante escreve algumas páginas depois: “O sujeito, no fim das contas, é apenas um campo de batalha”.
A linguagem se torna um elemento importante neste “campo de batalha”. Lenu descreve um mundo infantil “cheio de palavras que matavam”. O dialeto usado em Nápoles, oposto do italiano refinado aprendido nas escolas, aparece como visceral e violento e, se é um obstáculo na construção de afetos positivos dentro dos núcleos familiares, torna-se apoio para uma mulher tímida que precisa aprender a se impor quando muda para cidades maiores.
Mulheres, mães e filhas
Em uma das cenas, Lenu define a própria mãe a partir do ponto de vista de sua educadora e diz:
Me envergonhei pela diferença que havia entre a figura harmoniosa e decentemente vestida da professora, entre seu italiano que parecia um pouco com o da Ilíada, e a figura toda torta de minha mãe, os sapatos velhos, os cabelos sem brilho, o dialeto forçado a um italiano cheio de solecismos.
Aqui, Ferrante constrói não apenas o conflito entre o espaço de professora que Lenu, quando jovem, aspira e a figura ameaçadora da tradição familiar em outra classe social. Há também o embate entre duas figuras maternas, mulheres que tutelam a menina e adotam posições opostas em relação às possibilidades de seu futuro.
A maternidade é um tema caro para Elena Ferrante, recorrente em sua ficção. Dentro da Tetralogia napolitana, surge ainda na infância das garotas e nas figuras que povoam seu bairro, como Melina, a mulher que enlouquece de amor e retorna como eco no final do quarto livro, ou de Manuela Solara, que herda o poder do marido, um agiota assassinado.
Lenu, em particular, é assombrada pela própria mãe. Logo nos primeiros anos de vida, Lenu começa “a suspeitar de que mudaria cada vez mais, até que de mim saísse realmente minha mãe, manca, com o olho torto, e ninguém mais gostasse de mim”. No segundo livro, se pergunta: “Será possível que os pais não morram nunca, que todo filho os carregue dentro de si inevitavelmente?” e, durante a vida adulta, ao comparar a família dela e do marido, percebe que “cada um trazia no corpo os próprios antepassados”.
Lila, por sua vez, passa por uma sensação que descreve como desmarginação. Elena Ferrante dá a isso o nome de frantumaglia, razão do título do livro homônimo, e nele descreve que essa sensação ocorre em mulheres modernas que, sem um mundo onde são vigiadas, sentem a necessidade de expandir-se. Elas “não sofrem pelo conflito entre o que elas gostariam de ser e o que suas mães foram”, não fazem parte de uma genealogia extensa. Sofrem, sim, pelo “fato de que, em volta delas, simultaneamente, em uma espécie de acronia, amontoam-se o passado de suas precursoras e o futuro daquilo que elas procuram ser”.
Por fim, é preciso ressaltar que toda esta busca está imersa em um mundo visceral não só pela violência e opressão econômica, mas também pelo espaço masculino. Cercadas de homens vis, com talvez uma única exceção, Lenu e Lila acumulam experiências de exploração e violência de gênero no trabalho, nas famílias e relacionamentos amorosos, vivem com mães que criam filhos abandonados pelos pais, discutem episódios de assédio e estupro e precisam saber como organizar (e, muitas vezes, esconder) os próprios desejos.
Em determinado momento do livro, Lenu passa a se interessar pela produção intelectual feminista italiana e confronta sua formação pedagógica. Percebe que foi ensinada a pensar de forma “masculina” e precisa repensar sua escrita. Ao narrar a Tetralogia napolitana, parte da crise também surge da busca de Lenu por uma voz não colonizada pelo pensamento masculino, por formas e estruturas que refletem angústias e filosofias femininas. Lenu percorre um caminho à procura da voz ideal, da forma precisa da escrita, do estilo mais pungente, da trama mais envolvente e das imagens mais vivas. Lenu segue em busca de palavras que seriam as palavras de Lila.