Em momentos de tensão, a pequena Maria costuma morder a parte interna dos lábios. Você vai ler isso sobre a personagem diversas vezes ao longo de Dias de se fazer silêncio, primeiro livro da gaúcha Camila Maccari. A repetição não é à toa: ajuda a contar uma história triste da perspectiva caótica de uma criança, e quem lê é levado junto à exaustão da rotina familiar em meio ao luto.
O narrador se concentra na perspectiva de Maria, uma menina de uns 12 anos, sobre as condições da família diante da morte inevitável de seu irmão caçula, Rui. Vítima de uma doença que o submete a diversos exames e internações, o menino ocupa os pensamentos, as emoções e a rotina dos parentes.
Dias de se fazer silêncio foi lançado pela Bestiário, de Porto Alegre, em 2020. Em 2021, venceu o Prêmio Açorianos de Literatura na categoria Narrativa Longa e esteve entre os finalistas de outros três: o Prêmio AGES, o Prêmio Academia Rio-Grandense de Letras e o Prêmio Mozart Pereira Soares. Três anos depois, a Autêntica relançou o livro e o trouxe para uma nova leitura do público. Assinada pelo crítico Luiz Antonio de Assis Brasil, a orelha elogia a “força dramática” do texto de Maccari ao relatar a “conduta claustrofóbica” da família do menino.
Em uma das cenas, Maria ouve o pai dizer a um tio que Rui é “terminal”. O peso desse fato para a criança se manifesta na raiva que ela sente, nas reações, na dificuldade em expressar seus incômodos. Ela se irrita com a mãe, dá uma resposta fria e inesperada à família quando é convocada para se despedir do irmão.
No entanto, o comportamento dos adultos mostra que nem mesmo eles estão preparados para vivenciar algo tão duro. Ninguém está. A aparente frieza de Maria parece ser uma resposta àqueles que pouco a explicaram sobre o que estava acontecendo, ou que sequer abriram espaço para ela dizer como se sentia, quais eram as suas necessidades.
A mãe, por exemplo, embarca em uma obsessão pela limpeza da casa, o que parece uma forma de proteger a saúde sensível de Rui de qualquer contaminação possível, mas é uma estratégia para escoar a tensão nas atividades domésticas, e organizar, ao mesmo tempo, seu íntimo.
Mas Maria escreve. Ela ganha de uma parteira amiga da família um caderno que, mais tarde, entendemos como parte de seu recurso para digerir sentimentos, os desejos de resolução da crise que ela não tem coragem de externar, nomear as dores que sente. O narrador não julga, respeita o tempo de Maria no luto que se constrói aos poucos. A ludicidade também aparece nas formas que ela encontra para estabelecer medidas de tempo e de gravidade da situação: repara nos cheiros presentes na casa, na mãe, e nas cores diferentes que enxerga em cada dia.
As mulheres são o destaque do ambiente. A mãe, uma tia e a parteira representam o núcleo da família no meio da crise. É o comportamento da mãe que dá sinais da saúde emocional da casa como um todo. Além desse grupo, é determinante na vida de Maria a presença do primo Germano, seja nos momentos de solidão ou nas brincadeiras quando Rui está em casa.
Parte da riqueza da leitura está em observar como todas essas relações se transformam depois da morte do caçula. “A vida sempre continua, mas como a vida pode continuar?”, diz um dos subtítulos da obra. Neste livro acompanhamos o avanço de um luto familiar antecipado, por assim dizer, até o desfecho previsto. Mas, mais do que isso, justamente a vida continuando, das maneiras e no ritmo que uma família consegue.