Essencialmente, uma espiã

A poderosa poesia de Anne Sexton teve início graças às sugestões de seu psiquiatra
Anne Sexton, poeta norte-americana
01/07/2024

Para compreender em profundidade a obra de uma autora tão obviamente confessionalista quanto Anne Sexton, uma consulta a sua biografia se torna indispensável.    O livro de Diane Wood Middlebrook, A morte não é a vida (Siciliano, 1994), cumpre bem essa função — e, mais do que um registro informativo, traça o desenvolvimento da personalidade complexa e narcisista dessa poeta que, tal como Sylvia Plath, produziu versos na aura do extremismo suicida.

É evidente que nem toda pessoa atormentada consegue se tornar boa artista: as angústias não são um quesito de talento. No caso de Sexton, porém, foram as sugestões de seu psiquiatra que a fizeram enveredar pela escrita e, se o propósito terapêutico da criação literária jamais deixou de ser o principal motivador de seus poemas, ela também se mostrou, desde cedo, uma estrategista. Empenhou-se arduamente na divulgação de seus textos, submetia-os a várias versões e ouvia conselhos dos autores mais experientes; com o tempo, tirou proveito de sua beleza física, seduzindo conforme diversos interesses, e chegou a mimetizar uma atriz e líder de banda musical, em apresentações públicas.

O temperamento radical de Sexton obrigava a maior parte dos que conviviam com ela a orbitar em torno de suas vontades. Anne Sexton casou-se, sim, e foi mãe —submetendo-se à expectativa social dos anos 1950 sobre as mulheres —, mas nem de longe sua rotina combinava com o modelo de uma dona de casa burguesa, nos Estados Unidos da época. A sua condição mental tornou-se uma espécie de salvo-conduto, de justificativa para qualquer ato: quando as conturbações da maternidade a ameaçaram, ela deixou as filhas em grande parte aos cuidados da avó e do pai; quis de volta a presença das meninas quando já estavam crescidas e representavam mais encantos que responsabilidades; com a adolescência delas chegou a inverter os papéis familiares, infantilizando-se e desenvolvendo brincadeiras íntimas que chegavam às raias do incesto.

A sexualidade de Sexton fora marcada pelo convívio com uma parenta bem mais velha, Nana, que costumava dormir com ela na infância e ser sua companhia praticamente integral: “Ela se recordava de passar todo o tempo com a tia-avó, jogando cartas no quarto dela, fazendo lá seus deveres escolares, almoçando e indo ao cinema com ela depois da aula”. Nana seria internada num hospital para doentes mentais e, segundo a própria Anne Sexton, “sua doença era uma forma de lealdade a Nana, inútil mas irresistível”. Enlouquecendo assim como sua tia-avó, Sexton confirmava o seu amor à parenta que “havia sido uma mãe e uma amiga tão maravilhosa”. Seria difícil para ela admitir que fora abusada fisicamente por essa mulher — e, do mesmo modo, quando de noite se enfiava na cama de uma das filhas e se encostava ao seu corpo de maneira inapropriada, Sexton não reconhecia que estava ultrapassando limites.

Com o próprio marido, o relacionamento chegava a zonas perigosas. Os muitos amantes que Sexton teve não significavam exatamente um problema, de acordo com a biógrafa, mas as brigas eram constantes, seguindo um padrão de agressividade. Em meio ao alcoolismo de ambos, as provocações e insultos cresciam até Sexton ser espancada — e ela admitia ao terapeuta que isso era um tipo de vício: “Apanhar é como ingerir comprimidos, destrói uma parte de mim, esmaga-a — eu mato parte de mim”.

O desejo de aniquilamento estava na base de todos os seus colapsos. Quando Plath se matou, Sexton chegou a remoer uma inveja e disse ao seu psiquiatra: “Faz com que eu deseje a mesma sorte. Como se ela tivesse tomado uma coisa minha, essa morte era minha! Era dela também, naturalmente. Mas nós duas tínhamos largado disso, como se larga, por exemplo, de fumar”. Fanática por maus tratos, sendo o suicídio o mais extremo dentro de uma escala de autodegradações, Sexton flertava com o próprio extermínio desde sempre: “Sylvia Plath carregava seu suicídio dentro dela. Como eu carrego o meu. Como muitas de nós. Mas se tivermos sorte ele não se consuma, alguma coisa ou alguém nos obriga a viver”.

A lucidez com que Sexton observava os sentimentos e perturbações que lhe ocorriam — apesar dos inúmeros episódios em que entrava num tipo de catatonia, desconectando-se da realidade — sinaliza até que ponto ia o seu autoconhecimento. Esse percurso, entretanto, não serviu para curá-la, sequer para melhorar o seu trato relacional (ela continuou demonstrando o extremo egoísmo dos doentes até se matar, aos 45 anos de idade, exatamente meio século atrás). Ao longo do tempo, houve quem tomasse nojo por seu estilo, como foi o caso do crítico John Holmes, que observou que o problema não era que ela só tenha “dois assuntos, doença mental e sexo, mas que escreva de maneira tão absolutamente egocêntrica (…). Suas motivações são artisticamente erradas, e ao fim essa preocupação obsessiva consigo mesma fica simplesmente chata”.

Apesar dessa ressalva — com a qual podemos sem dúvida concordar —, Sexton evoluiu em sua escrita graças à tendência observadora. Em seus anos de consulta com um psiquiatra, percebeu o quanto usava o próprio inconsciente como um método criativo e, além disso, ouvir as fitas de terapia — um recurso adotado para tentar fixar em sua memória os debates que eram alcançados durante as sessões — a pôs num lugar de exame e escuta de si mesma. Com tal percepção, ela pôde escrever, no poema A magia negra, versos que são um verdadeiro testemunho da sofreguidão de um(a) artista:

A mulher que escreve sente demais
tais transes e presságios!
Como se bicicletas, e crianças, e ilhas
não bastassem; como se carpideiras e faladeiras
e legumes não bastassem nunca.
Ela julga que pode alertar as estrelas.
Uma escritora é essencialmente uma espiã.
Meu amor, eu sou essa garota.

Tércia Montenegro

Escritora, fotógrafa e professora universitária. Dentre outros livros, publicou o romance Turismo para cegos (Companhia das Letras), vencedor do Prêmio Machado de Assis 2015, da Biblioteca Nacional.

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