Todas as palavras

"Oração para desaparecer", de Socorro Acioli, traz uma personagem sem memória, em busca do seu passado
Socorro Acioli, autora de “Oração para desaparecer”. Foto: Igor de Melo
01/06/2024

Da safra mais recente da literatura brasileira, não são poucos os romances que trazem a língua ou o acesso aos usos sociais que fazemos dela como um dos pontos centrais das narrativas. Se por um lado, as personagens procuram enfrentar a língua, em especial a portuguesa, em suas trajetórias por razões diversas, por outro, é de se pensar como essa autoria tem se debruçado sobre um dos dilemas do todo escritor — levantar na página em branco um universo inteiro alicerçado pela língua portuguesa ou em outras línguas em circulação no país, em referência aquelas dos povos originários e de ascendência africana.

O mais recente romance de Socorro Acioli, Oração para desaparecer, traz uma personagem sem memória, em busca do seu passado e da compreensão do primeiro ato do livro — o fato de ter o corpo desenterrado em um local desconhecido, nua, apenas com um colar de búzios no pescoço e a consciência de que fala português. Na situação extrema em que se encontra, privada de qualquer recordação, sem absolutamente nada material, sem reconhecer espaço, tempo e pessoas ao seu redor, a enunciação em uma determinada língua é a sua única certeza.

Dividido em três partes, o romance conta a trajetória da personagem Cida, seu encontro com o casal que a ajuda logo após sua “ressurreição”, o enlaço amoroso com Jorge, a história pelas lentes de Miguel, a reconstituição do soterramento da igrejinha de Almofala, episódio verídico no Ceará e espécie de leitmotiv da obra. Na primeira parte, é a própria Cida quem nos conta como foi desenterrada. Acompanhamos como observadores, sua recuperação e aflição em torno da memória. Para tanto, Acioli aciona um jeito de falar que também marca os diferentes usos do mesmo idioma em Portugal e no Brasil, notadamente no Nordeste, como quando usa o substantivo “rapariga”. A reconstituição da memória de Cida passa por certo sotaque, pela música popular brasileira, tendo, portanto, o português como fiança.

Na segunda parte, a memória que falta à Cida está presente em Miguel, seu namorado 49 anos atrás. Ele estruturalmente funciona como disparador do flashback de episódios que se sucederam até o desaparecimento da mulher. Cida retorna como narradora na terceira parte, tendo revelado para si os episódios naturais e sobrenaturais que fizeram seu corpo desaparecer em um lugar e reaparecer em outro continente. A obra nos sugere temas importantes para a constituição do país, escolhendo deixar em primeiro plano o tom fantástico que já marca a sua escrita, investida desta vez do cruzamento de diferentes manifestações de fé.

O encadeamento das três partes que se comunicam e já parecem roteirizadas em um estilo cinematográfico dão um princípio de ordem para o leitor. Muito mais do que apresentar uma incógnita a ser desvendada por quem lê, o que está em questão é contar uma boa história, mostrar o processo e não o fim ou a moral da história. E nesse ponto, mais uma vez vale recorrer aos contemporâneos de Acioli para sugerir que ela se alinha a uma certa produção (dentro desse todo amplo, diverso e múltiplo que chamamos contemporâneo) de contadores de histórias. Não significa dizer com isso que não há preocupação formal por parte da autora, mas fica evidente no livro que o elogio ao gênero romance se faz em primeiro lugar ocupando-se da história em si, narrando como os bons narradores são capazes de narrar e sem se preocupar com experimentalismos como parte da crítica especializada espera.

Trata-se, portanto, de um romance bem acabado e arrematando semelhanças à obra anterior, ainda que dez anos separem os lançamentos dos dois romances. Se sobre A cabeça do santo, sucesso inconteste de público, pairou um limite de compreensão sobre o texto, como se ele fosse uma espécie de corpo estranho ao lado de seus pares literários de época na visão de alguns críticos, o livro de agora aproxima-se mais do tal espírito de época de obras literárias produzidas nesta década. Enquanto o tempo e a crítica parecem ter mudado, o novo romance de Acioli repete a dicção anterior, provando que saber contar boas histórias é o que de fato cativa o público. Daí Oração estar no topo da lista de livros mais vendidos na Flip em 2023, acompanhado de A cabeça do santo, ocupante da terceira posição do mesmo ranking.

Antes do encantamento, a história
Quem abre o volume de Oração para desaparecer se depara logo de cara com a fotografia de uma igreja. A mesma espelha o verso da quarta capa do livro, antecedida dos agradecimentos, onde a igreja também é citada. Parto desse ponto porque a fotografia em preto e branco atesta o real e reforça a sugestão de pesquisa que permitiu a feitura do livro. Jornalista de formação, Acioli empreendeu um trabalho de pesquisa que exigiu trânsito em diversas cidades dentro e fora do Brasil, mais de uma Almofala e a busca do fato verídico que beira a ficção, o soterramento da Igreja de Nossa Senhora da Conceição nas dunas, em Itarema (CE), no fim do século 19 e começo do 20.

Ainda que as ciências expliquem a movência das dunas, o ressurgimento da igreja 45 anos depois ainda parece assombroso, bem como toda a mitologia que envolve os indígenas locais, os Tremembé, que ocuparam o território desde o começo do século 18, e a figura de Joana Camelo, mulher que teria lutado contra a retirada de objetos sacros da igreja antes do seu fechamento a pedido do segundo bispo do Ceará. No terreno da ficção, acompanhamos a vida de Joana Camelo após a luta corporal travada com o pároco Antônio Tomaz e no qual outros manifestantes indígenas morreram.

A ficção montada por Acioli mobiliza um episódio histórico que provavelmente estava perdido no tempo e, ao fazê-lo, acaba por colocar os leitores diante de fatos a se pensar, como a tensão dentre os povos originários e a Igreja Católica, um dos braços para a consolidação da ocupação do Brasil pelos portugueses, bem como no futuro sua ação em favor da escravização. A este respeito podemos acrescentar ainda que o romance, ao recuperar os sujeitos que compõem a formação do país, também nos aponta mais uma vez para a questão fundiária, problema irremediável e que também ocupa romances de outros escritores de sua geração como Itamar Vieira Junior, Luciany Aparecida e Morgana Kretzmann.

Das possíveis réguas de validação de um romance, sem dúvidas, a capacidade de construção de personagens e narradores convincentes é uma delas, visto que com eles estabelecemos o pacto de leitura, engatamos ou não ao que nos é contado. Cida e Miguel cumprem bem essa missão, ele por viver uma vida de espera por notícias de seu amor, mesmo refazendo seu percurso ao lado de outra mulher, ela ao nos transferir a angústia de não se saber vítima ou vilã de sua história. Cida ou Joana Camelo, como Acioli, trazem todas as palavras para desenterrar uma história e dar protagonismo às mulheres e aos Tremembé.

Oração para desaparecer
Socorro Acioli
Companhia das Letras
204 págs.
Socorro Acioli
Nasceu em Fortaleza (CE), em 1975. É jornalista e doutora em estudos de literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É autora do romance A cabeça do santo (2014) e de Ela tem olhos de céu (prêmio Jabuti infantojuvenil em 2014). Em 2023, lançou a coletânea de poemas, Takimadalar, as ilhas invisíveis.
Edma de Góis

É jornalista e doutora em Literatura pela UnB.

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