Discurso para além dos arranha-céus

Nos contos de “Concerto para arranha-céus”, Ronaldo Cagiano discorre sobre as contradições humanas
Ronaldo Cagiano, autor de “Concerto para arranha-céus”
01/01/2005

Ronaldo Cagiano é um poeta de linguagem elegante e consistente. Não é um dos equívocos brasileiros que passeiam impunes pelas plagas tropicais com fotinhos nos jornais e palavras doces escritas pelos comparsas. Não. Ronaldo Cagiano é um poeta. E isso basta. É sempre preciso dizer isto, para que as coisas fiquem claras no país da escuridão cultural. E no apagão cultural brasileiro, o que mais se vê são pequenas lamparinas transformadas em luzes poderosas, iluminando palcos com personagens todos fabricados nas redações dos suplementos culturais. Ronaldo Cagiano está fora desse esquema. Ele é poeta. Nasceu em Cataguases, em Minas Gerais, em 1961. Vive em Brasília desde 1979. Entre seus livros de poemas destacam-se Palavra engajada (1989), Colheita amarga & outras angústias e Exílio (1990), e especialmente Canção dentro da noite (1999). Autor de livros para o público juvenil e de ensaios de literatura.

Agora lança seu segundo livro de contos Concerto para arranha-céus, no qual discorre sobre as contradições humanas, numa linguagem de contista feito, sem apelações, sem modelos fáceis, fiel a si mesmo, à sua literatura séria, ao seu trabalho honesto. Ronaldo Cagiano afirma que Concerto para arranha-céus surgiu depois do amadurecimento de seu processo criativo. “É fruto da minha busca de ampliar os horizontes da minha construção literária iniciada com a poesia”, diz.

Optou por publicar primeiro os livros de poemas. Os contos tiveram de esperar sua própria evolução na técnica narrativa. Surgiu então Dezembro indigesto, que venceu o concurso Bolsa Brasília de Produção Literária em 2001. “Isso acabou por representar um divisor de águas em minha trajetória literária, provocando minha entrada definitiva no terreno ficcional”, observa Ronaldo, completando: “O conto é para mim um território em que podemos expandir nosso discurso, ao contrário da poesia que exige maior contenção, precisão e síntese e uma caminha de força formal que muitas vezes nos impede de expressar o que queremos”.

Ronaldo Gagiano assegura que no conto se terá maior espaço para a experimentação e para usar recursos que o gênero faculta para situar uma trama. Concerto para arranha-céus é um livro de contos produzido no Brasil, literatura do Brasil da melhor qualidade, que não se perde em devaneios baratos e que tem a seriedade como afirmação dos que desejam uma obra literária distante das facilidades vigentes.

Você é fundamentalmente poeta, ao meu ver. Mas este livro de contos, acredito, será marcante em sua obra literária. Afinal, qual é o caminho: a poesia ou a prosa?
O caminho é a literatura, independentemente do gênero, pois creio que é por meio dela que podemos nos comunicar e realizar o nosso salto dialético, a nossa catarse, enfim, provocar a reflexão e tocar nas feridas; enfim, deixar o testemunho/testamento da minha relação com o mundo e as pessoas. A poesia entrou em minha vida como opção criativa, influenciado pelas primeiras leituras de poetas que fizeram e fazem a cabeça de muita gente: Augusto dos Anjos, Drummond, Bandeira, Ferreira Gullar, Thiago de Mello, Leminski e Torquato Neto. Foram minhas primeiras descobertas, meu espanto, meu soco no estômago. Acredito que eu seja fundamentalmente poeta, não por ter publicado mais livros de poesia do que de prosa, mas porque assimilei desde cedo uma expressão de Baudelaire (“Seja poeta, mesmo em prosa.”) e isso acabou norteando minha narrativa, de sorte que você vai se deparar na minha ficção com essa simbiose entre os gêneros.

Em recente conversa em São Paulo, você criticou com veemência os contistas novos que estão publicando livros no Brasil. Lembro-me bem que você disse várias vezes que se tratava de uma “literatura” feita somente de apelações. Você ainda pensa assim?
No universo da prosa contemporânea, há uma geração bastante afiada em seu processo criativo, preocupada mais em manter o nível estético de suas produções, do que se expor aos holofotes; autores que vêm criando com aquela responsabilidade que deve balizar qualquer obra, porque ele é formador de opinião, vai influenciar leitores. É uma turma que produz com consistência e consciência e certamente vai legar uma literatura que tem tutano e condições de impor-se num cenário ao mesmo tempo tão prolífico e excludente. Em diversas regiões do Brasil há autores produzindo dentro dessa perspectiva. Por outro lado, há aqueles preocupados com modismos, literatices, pseudovanguardismo, falsas rupturas formais e conceituais, contorcionismos e malabarismos de linguagem, impondo-se mais pelo grito e pelo enganoso sentido de provocação do que pela qualidade e solidez de suas propostas. São os áulicos da mídia; os que inovam; os diluidores de velhas fórmulas. E que, a pretexto de negar a tradição e repudiar os cânones, acabam requentando ou clonando o que um dia já foi novidade. Esses não vão resistir, tanto porque não têm fôlego, quanto porque a crítica e os leitores farão a triagem e nesse inevitável darwinismo literário poucos vão sobreviver.

Além de poeta e escritor, você está sempre à frente da movimentação literária em Brasília, reunindo bons nomes de poetas e escritores que já conseguem romper a fronteira da cidade, ganhando outras capitais que dizem ser importantes para a literatura, os chamados centros culturais. Gostaria que você falasse sobre a literatura produzida em Brasília atualmente.
Brasília sempre produziu literatura de boa qualidade, desde os primórdios da cidade, tanto que aqui há autores premiados em importantes concursos literários e outros com bibliografia numerosa, e até publicando por grandes editoras. O que, muitas vezes, dificulta a promoção do autor local é a distância dos grandes centros e a falta de profissionalismo dos editores daqui (na sua grande maioria gráficas travestidas de editoras), que não têm como enfrentar a concorrência e o seletivo mercado das grandes capitais, não contam com um processo de distribuição nem realizam qualquer trabalho de marketing na imprensa para promover os bons autores que editam.

Depois deste livro de contos, você já planeja alguma outra obra em prosa, talvez um romance?
Tenho inéditos um livro de poesia, uma novela, um infanto-juvenil e um romance. Em Os rios de mim, reúno poemas sobre rios, pois suas águas e o que decorre de sua fúria, sempre exerceram fascínio sobre mim. É também uma tentativa metafórica de dar vazão e fluxo aos rios interiores, por onde navegam certas emoções e tensões. Em O corcunda de São José dos Campos — Histórias de cangalhas e canalhas, novela crítico-picaresca, ambientada numa fictícia Curralópolis, eu procuro mapear o universo social e político de uma cidade do interior, é um livro que faz uma denúncia das mazelas e dos destinos de uma eminência parda que desmoraliza uma administração municipal. O corcunda, Vivaldino Quasímodo, é uma figura execrável, punido por Deus com um defeito congênito (atavismo familiar) e que, depois de ter aprontado em São José dos Campos, onde era uma espécie de bruxo estrategista, uma espécie híbrida de Golbery/Goebbels municipal, foi expulso pelos credores locais, tendo desmoralizado a administração local, falido um jornal e um time de futebol, vai para Curralópolis à procura de emprego e é albergado por Narcizo Videiras Tolomor, que lhe dá plenos poderes. Lá, alia-se a Devil Lam, um jovem francesinho, órfão de pai e mãe, que era filho de um escritor maldito; os dois se aliam e transformam na dupla satânica que, maquiavelicamente, vão influenciar e acanalhar política local, um pelos seus golpes; o outro, pela sua antipatia, seu mau humor canino e sua incapacidade de relacionar-se com as pessoas. Já, em Os filhos de Kafka, construo a história de um personagem, Fernando Tocantins, um homem atormentado, desarticulado socialmente, sem lugar no mundo, que vive as tormentas da pós-modernidade, da falência das instituições e dos valores e sente o tempo todo a manipulação dos meios de comunicação e o controle estatal e do mundo globalizado sobre a vida das pessoas. Aguardo publicação de O fio da meada, infanto-juvenil em parceria com Whisner Fraga, e que fala de dois personagens adolescentes numa grande metrópole, vivendo, cada qual suas experiências, suas frustrações e suas crises existenciais. E no prelo tenho A cidade proibida e outros esboços de solidão e espanto, livro de contos que está saindo pela editora paulista Outras Palavras, cujos contos falam da solidão e da incomunicabilidade de personagens no mundo moderno.

Há algo estranho num dos contos deste Concerto para arranha-céus.
Trata-se de A marca, no qual o personagem, narrado por você na terceira-pessoa do singular, sonhou ir ao Père Lachaise, em Paris, para visitar o túmulo de Baudelaire, mas teve que se contentar em visitar o túmulo de Augusto dos Anjos, em Leopoldina, Minas Gerais. O que significa esse “teve que se contentar”. Você estaria diminuindo o poeta brasileiro?
Pretendi um diálogo com dois grandes autores de minha predileção. Trata-se de um personagem, dividido entre suas impossibilidades materiais/financeiras e os arroubos filosóficos e intelectuais da juventude, quando começa a descobrir a literatura, e ao mesmo tempo, as crises existenciais e os impactos de (sobre)viver no “mondo cane”, e acaba por eleger a opção mais plausível e vai ao túmulo de Augusto dos Anjos. Não foi desdouro ao grande poeta paraibano enterrado em Minas. Ao contrário, foi uma maneira de evidenciar o primeiro mito na vida do personagem, com o qual ele mantinha um silencioso contato, a primeira afinidade estilística e espiritual e que naquele momento era a única possibilidade desse encontro real e também metafísico.

Como Brasília participa de sua produção literária, poesia ou prosa? E onde está hoje a cidade de Cataguases, em Minas Gerais, onde você nasceu? Eu vejo tudo isso presente. É assim mesmo?
Brasília e Cataguases existem de forma simbiótica. Foi na terra natal que colhi as primeiras luzes, os primeiros embates entre a realidade e a utopia. Lá estão minhas raízes, minhas descobertas e minhas primeiras influências intelectuais e literárias. Esse trânsito, quase onírico, tão metafísico e dialético, entre o passado e o presente, acabou forjando um sentido de permanente inquietação em minha obra. Se Cataguases, como Itabira no poema de Drummond, “é apenas um retrato na parede”, doído e nostálgico, Brasília é a possibilidade da “vida que poderia ter sido e não foi”, como nos disse Bandeira. Esse fluxo de memória e consciência entre dois territórios distintos e antagônicos e ao mesmo tempo complementares — o geográfico e o psicológico — personificados nas duas cidades, é que me fornecem matéria para meu trabalho.

Concerto para arranha-céus
Ronaldo Cagiano
LGE Editora
152 págs.
Alvaro Alves de Faria

É escritor.

Rascunho