Como é difícil falar dos livros que a gente ama. Eu, pelo menos, me sinto desconfortável quando tenho esta tarefa. Porque fico querendo convencer o leitor a perceber as múltiplas qualidades que eu percebo em certos livros. Mesmo sabendo que isso, além de inútil, é impossível. Ler é uma experiência única, individual. Há frases num livro que tocam determinado leitor e que não dizem nada a outro. Há livros que encantam um determinado leitor e desencantam outro. E não existe, como querem muitos, uma relação de inteligência versus ignorância nisso tudo. Cada vez mais, estou propenso a achar que tudo não passa de simples coincidência.
Talvez seja por isso que eu tenha descoberto, de uma hora para outra, que a crítica literária não serve para nada. Nada. Trata-se de um exercício de auto-afirmação, apenas. A gente fica aqui querendo provar que aprova ou não determinado livro porque temos mais referências para fazer este julgamento. Na verdade, estamos querendo dizer, pura e simplesmente, que somos mais inteligentes que os outros. Concordemos: uma besteira sem tamanho.
Hoje, eu prefiro apenas escrever sobre os livros que amo. Como estes sete livros de Andrea Camilleri. Dizer que os amo pode parecer exagero e talvez esta escolha vocabular apenas reflita algo que não ouso mais esconder: meu espírito espalhafatoso, operístico. O fato é que passei o último mês de 2004 agarrado aos livros de Camilleri. E comecei 2005 do mesmo modo. Não poderia haver decisão mais acertada: Camilleri me diverte, me emociona, me cativa. E eu fico aqui torcendo para que meu texto leve os leitores à obra deste escritor e que ela também os cative. Se isso não acontecer, porém, relaxe. A vida é boa demais para a gente ficar aqui debatendo sobre literatura.
Andrea Camilleri não é um autor de romances policiais, apenas. Ele também escreve romances históricos. Em ambos os gêneros o cenário é a Sicília, no sul da Itália. Terra de mafiosos, de catolicismo ferrenho, de uma sociedade conservadora que, a todo custo, tenta manter as aparências. Nunca li os livros históricos de Camilleri. Recentemente ele lançou no Brasil A ópera maldita (Bertrand Brasil). O alvo de meu interesse são mesmo os livros policiais, protagonizados pelo comissário Salvo Montalbano.
E já aqui aconselho o leitor a começar a leitura dos livros policiais de Camilleri por A forma d’água e seguir a ordem de publicação: O cão de terracota, O ladrão de merendas, A voz do violino, Excursão a Tíndari e O cheiro da noite. Apenas Um mês com Montalbano deve ser lido independentemente da ordem, porque se trata de um livro de contos. Mesmo assim, não aconselho que este seja o seu primeiro contato com o comissário. A leitura dos livros na ordem em que foram publicados permite que o leitor acompanhe o amadurecimento de Montalbano, como se fosse numa novela. Além disso, Camilleri reutiliza muitos personagens de romances anteriores, que podem parecer mal construídos se os livros forem lidos de forma aleatória.
Por falta destas orientações, eu não li os livro na ordem correta. Li primeiro O cão de terracota — e me apaixonei. Depois li A voz do violino, O ladrão de merendas, A forma d’água, Excursão a Tíndari e O cheiro da noite. Um verdadeiro samba do crioulo doido, por certo. Se ainda assim consegui me apaixonar pelas histórias, imagino o que não pode acontecer se você ler na ordem correta.
Aqui talvez valha a pena dizer para o leitor que, apesar de se passar na Sicília das famílias mafiosas, mais exatamente na cidade de Vigàta, os livros de Camilleri não têm, necessariamente, o envolvimento da Máfia. Não são como livros de Mario Puzzo. A Máfia existe, é verdade, está sempre presente e atuante, mas à margem dos acontecimentos principais.
Antes de começar a falar dos livros, não posso deixar de introduzi-los no maravilhoso mundo de Salvo Montalbano. Ele é um comissário de polícia de meia-idade, solteirão que vive às turras com uma namorada de longa data, Lívia. O traço mais marcante da personalidade de Montalbano é seu humor extremamente volúvel, mas que segue um padrão: o tempo. Se faz sol, Montalbano pode até distribuir sorrisos e gracinhas e eu-te-amos aos que o rodeiam. Mas se chove e venta… Outra característica marcante de Montalbano é seu amor pela culinária siciliana. Ele é capaz de medir o caráter de uma pessoa por aquilo que come.
A forma d’água, o primeiro livro com o comissário, não é o melhor momento de Camilleri, tenho de reconhecer. Como livro policial, já li melhores. Serve mesmo é como introdução ao mundo de Montalbano. Pode-se perceber nele claramente que o autor está construindo um universo próprio. Por isso tantas imperfeições. Que não se engane, porém, o leitor: é um livro policial competente, só não é dos melhores. Mas é esta a melhor porta de entrada para o mundo de Montalbano.
Em A forma d’água conhecemos a cidadezinha de Vigàta, de cerca de 20 mil habitantes, onde mora e trabalha Montalbano. Aprendemos que é uma cidade conservadora, cheia de aparências, onde manda quem pode e obedece quem tem juízo. Montalbano, evidentemente, não tem lá muito juízo. É neste livro também que entramos pela primeira vez na delegacia onde trabalha o comissário. Ficamos conhecendo Mimí, o vice-comissário, os investigadores Fazio, Gallo e Galluzo, Lívia, a namorada de Montalbano, que mora em outra cidade, e Adelina, a empregada doméstica e cozinheira que nos deixa com água na boca.
Neste livro, o crime gira em torno de uma importante figura local que é encontrada morta numa zona de baixo meretrício. Graças à investigação, Montalbano acaba por fazer amizade com Ingrid, uma sueca totalmente liberal e boa de volante que o auxiliará em outros romances. É, como eu já disse e repeti, um livro menor.
Ainda mais se levarmos em conta que o livro seguinte é O cão de terracota, simplesmente um dos melhores livros policiais que já li na vida. E tenho certeza de que o apreciaria ainda mais se tivesse lido A forma d’água antes, porque estaria habituado ao mundo de Montalbano. Em O cão de terracota, nosso comissário se envolve em duas investigações paralelas. A primeira é a de um crime comum, assassinato que para o leitor cai no esquecimento tão logo são descobertos dois corpos mumificados dentro de uma gruta, guardados por um cão de terracota. Os corpos estão ali há cinqüenta anos. Foram assassinados. Desvendar o crime atual, para Montalbano, se torna uma tarefa banal perto do verdadeiro e fascinante mistério que é o dos corpos na gruta.
É interessante perceber como, em O cão e terracota, Montalbano já está mais bem construído. A personalidade está totalmente delimitada, os trejeitos, o vocabulário, o humor volátil e a paixão pela comida. Vale acrescentar ainda que é neste livro que aparece um dos mais curiosos personagens de Camilleri: Catarella. Trata-se de um destes tipos bem conhecidos por nós, brasileiros: idiotas bem apadrinhados. Mas, em vez de ficar fazendo crítica ao sistema judiciário ou coisa que o valha, o autor opta pela via do riso. E acaba por transformar o idiota num personagem delicioso pelo seu modo, digamos, peculiar de falar e sua incrível ignorância.
O ladrão de merendas é um dos livros mais tocantes de Camilleri. Porque nele o autor expõe uma face obscura de Montalbano. Não convém, aqui, contar o final do romance, mas vale dizer que é neste livro que o comissário se deparará com questões como paternidade e casamento. Camilleri aprofunda o relacionamento dele com Lívia, mas não a ponto de ameaçar sua liberdade. Também deixa claro ao leitor que Montalbano, por baixo do seu mau humor, esconde um coração absolutamente italiano, fraterno e quente. Eu cá para mim tenho uma teoria sobre isto: alguns se empanturram de chocolate, outros de pasta ‘nasciata, mas, no final das contas, todos estão tentando se empanturrar é de amor.
Besteira, né? Eu também acho. Nem sei por que escrevi isto. Mas agora que está escrito, fica. O papel aceita tudo.
Agora eu cheguei num ponto do texto em que as coisas começam a ficar repetitivas. Dizer que A voz do violino, Excursão a Tíndari e O cheiro da noite são grandes livros é óbvio. Cada qual tem as suas peculiaridades, os seus mistérios próprios de livros policiais. Uns são melhores, outros são piores, mas todos são competentes. Num deles a gente fica com raiva porque o chefe de Montalbano quer substituí-lo, noutro a gente ri porque Catarella está fazendo um curso de informática e, súbito, se torna um gênio dos computadores. E por aí vai. Dentre os livros restantes, o único que merece um parágrafo à parte é Um mês com Montalbano.
E aqui está: Um mês com Montalbano reúne 30 contos envolvendo o comissário. São casos curtos, de resolução rápida e sempre surpreendente. Também aqui Camilleri acerta a mão, ao mostrar um comissário envolvido com casos que muitas vezes nada têm a ver com a lei. A leitura deste livro, contudo, só é aconselhável a quem já tiver alguma experiência com Montalbano, porque os contos pressupõem que o leitor já esteja ambientado em Vigàta e familiarizado com os trejeitos do comissário.
Mais interessante do que ficar aqui fazendo sinopses de livros é comentar a diferença entre o livro policial latino (francês e italiano, que são os que conheço) e o anglo-saxão. Eu concordo com a teoria de certo escritor brasileiro que diz que há, entre os anglo-saxões, uma diferença básica: a “escola americana” é brutal, violenta, enquanto a “escola britânica” privilegia a inteligência, a solução por meio da lógica.
Camilleri e seu comissário Montalbano estão muito próximos de Simenon e Maigret, pela importância que dão a aspectos humanos. Eu, quando leio um escritor inglês, digamos, P.D. James, não consigo me identificar muito com os personagens. Eles parecem reféns da moral e da justiça. Não levam em conta aspectos particulares de cada criminoso, de cada vítima e de cada investigador. Já quando leio um bom policial americano, às vezes fico enjoado de tanta briga que, no final das contas, só serve mesmo é para substituir a lógica dos romances ingleses, já que tanto americanos quanto ingleses fazem de seus personagens reféns da tal da justiça. Claro que exceções existem e uma boa surpresa, neste sentido, é Dennis Lehane. Gone, baby, gone, seu livro mais recente traduzido para o português, é uma lição neste sentido.
De qualquer modo, são os escritores latinos os que, sem psicologias baratas, conseguem dar uma dimensão humana a seus personagens. Montalbano, por exemplo, é um homem solar, dado a arroubos impensáveis para um detetive, caso figurasse num romance de Agatha Christie. Tampouco Montalbano segue à risca as regras do poder judiciário. Ele conduz a investigação de modo instintivo, como lhe dá na cabeça. Se algum problema surge, ele não consulta necessariamente os superiores. Dá-se um jeito, sempre. E o conceito de justiça sempre se ajusta à ocasião. Camilleri manipula o leitor de modo a fazê-lo pensar que tal atitude é certa, independentemente das leis que cercam o indivíduo.
Há uma diferença importante que precisa ser realçada entre tipos humanos e tipos mundanos. Tipos mundanos são os que infestam o mundo noir. São detetives de moral duvidosa, cafajestes que vivem no submundo, assim uma espécie de vampiros. Que estejam do lado da lei é mera casualidade. Podiam estar do outro lado, do lado negro e, de certo modo, estão. No romance noir é como se o mal combatesse o mal. Reside aí o seu charme.
Apesar de não fazer o tipo excêntrico, Montalbano não é um homem à margem. Ele mora sozinho, tudo bem, mas tem amigos, uma empregada e uma namorada. Em certo momento da sua “saga” um chefe de caráter duvidoso começa a persegui-lo, mas isso não faz dele um homem rancoroso, ressentido e sombrio. Por outra, Montalbano ri destes empecilhos todos e vai vivendo sua vida. Na verdade, acho que nada incomoda muito Montalbano se ele puder comer uma boa comida de vez em quando.
O que distingue Camilleri, a meu ver, é esta capacidade de rir de tudo e de todos, até de si mesmo. Montalbano não leva sua profissão a sério, sabe dos defeitos do sistema e sabe que a justiça é algo relativo, uma bússola cuja orientação muda de acordo com o montante envolvido na questão. Ele sabe que a vida é curta e que é um homem acima de qualquer coisa. Um homem que ama e que odeia, que tem dias bons e dias ruins, que acerta e que erra — e que na maior parte do tempo duvida.
Exatamente como eu. E você, eu diria, se o conhecesse.