A fera

Conto de Leila Guenther
Leila Guenther, autora de “Partes homólogas”
01/01/2005

Ninguém o viu desde que chegou aqui. Seria perigoso se a vizinhança soubesse de sua existência. Não sei do que seriam capazes caso isso acontecesse. Acho que não despertei nenhuma suspeita, pois meu ritmo de vida, desde sua chegada, pouco se alterou. Não sei o que pensam de mim, mas suponho que me têm como um homem austero e isolado, ou talvez até louco, pouco dado às demonstrações de sociabilidade. Enfim, tudo continua da mesma forma: cuido da horta que me provê, nos fundos da casa, que é tudo quanto basta em termos de alimentação, e, vez em quando, de madrugada, desço até a cidade, quando já não há mais ninguém nas ruas. Minhas aparições públicas se resumem a isso, apenas. Quando eu morrer, creio que só o descobrirão muito tarde, pelo cheiro. Até lá, porém, espero que venham buscá-lo. Não que me incomode, apenas me dá o mesmo trabalho que um animalzinho de estimação daria. Digo daria porque eu mesmo nunca tive um: os mais próximos e dependentes de mim são as verduras de minha horta. Para uma pessoa como eu, compromissada consigo mesma e mais ninguém, isso não significa muito. Havia vezes, no começo, em que ele acordava durante a noite, fazendo um ruído semelhante ao dos gatos no cio em cima dos telhados… Seria impossível descobrir por quê. Dor? Não parecia haver nada de errado, nenhuma lesão, nenhum machucado. Fome? Ora, eu lhe dava sua última refeição à mesma hora em que eu jantava, portanto, se eu podia passar algumas horas da noite sem comer, ele também podia. Como eu não lhe acorria, em pouco tempo o pequeno largou o hábito, cessando o barulho, e ele dormia uma noite inteira sem acordar. De qualquer forma, posso dizer que nunca me tirou o sono, com exceção, é claro, da noite em que chegou aqui. Era bem tarde quando ouvi aquele ruído de gatos no cio. Um ruído abafado. “Logo irão embora”, pensei, mas o barulho, em vez de desaparecer, continuou, intermitente. Não sabia se era alto ou se o silêncio da madrugada é que o tornava mais nítido. Vinha dos fundos. Como pudessem destruir as verduras da horta, levantei-me com a intenção de afugentá-los. Surpreendi-me ao deparar com uma caixa de papelão, dessas em que se transportam animais, com pequenos furos para a ventilação. Tomei-me de pânico: receava abrir o embrulho dentro de casa, por desconhecer o que poderia se espalhar de dentro dele, mas também não queria chamar a atenção de quem quer que fosse ao fazer a verificação lá fora, a céu aberto. Resolvi abri-lo na sala. Fiquei aturdido: dentro da caixa estava um pequeno ser que não ousei identificar. Possuía olhos, nariz, orelhas, boca, patas, mas não se parecia com nada que eu me lembrasse. Por isso era preciso mantê-lo recluso: acho que, assim como eu, ninguém entenderia tal coisa. A constatação de sua existência poderia transtornar uma humanidade inteira. Quando me viu, deixou de emitir aquele ruído incômodo. Ficamos assim, no centro da sala, ele ainda dentro da caixa, fitando-nos um ao outro, por um longo tempo. Fui aos poucos voltando daquele estado de perplexidade. Tomei-o em meus braços, aqueci-lhe o corpo, alimentei-o, limpei suas necessidades. Ele não parecia precisar de mais nada além disso. O fato é que, se necessitasse de mais alguma coisa, não o teria, porque eu não seria capaz de lhe dar. Afinal, não fui eu quem o trouxe para cá. Eu não traria nada para junto de mim: nada mais me chega até aqui; não recebo jornais, há muito desisti dos noticiários. Acaso o mundo seria diferente pelo simples fato de eu tomar conhecimento dele? Duvido. Tampouco a ficção me interessa. Há algumas pessoas que chegam a esta triste conclusão: a realidade e a fantasia são absolutamente inúteis; a primeira, por ser tangível e imutável, a segunda, exatamente pelo contrário, não importa o quão paradoxal seja algo que possa ser tocado, mas não alterado, ou vice-versa. Para resumir: as misérias se alteraram significativamente no cômputo geral desde, digamos, a Idade Média? Nos livros, talvez, o que prova todo o meu argumento… Ou seja, tendo me afastado de ambas, realidade e fantasia, e, levando-se em conta que tudo o que não é uma coisa é outra, pode-se dizer que eu talvez não vivesse mesmo. Daí essa minha incompetência para, como deus, soprar as costelas de Adão. Dei-lhe apenas o que de forma alguma exigisse de mim mais do que eu próprio. Mas, ainda que, como já disse, minha vida continuasse igual, não posso dizer que fosse alheio à sua existência: era um ser vivo e, talvez porque tivesse me mantido afastado dos vivos por tanto tempo, devo confessar que ele me despertava certa curiosidade. Pegava-me observando-o, distraidamente, e notava as transformações que o passar do tempo lhe imprimia: pêlos que cresciam no alto da cabeça, dentes que surgiam, movimentos ainda incertos sobre as quatro patas e, creio até ter visto, um dia, uma espécie de sorriso esboçado em seus lábios… Dado ao seu temperamento que pouco demandava, provavelmente adquirido graças à minha incapacidade de renúncia, acostumei-me a ele, embora não fosse sentir sua falta caso ele partisse, pelo próprio caráter de nossa convivência. E sua partida decerto ocorreria algum dia, provavelmente da mesma forma misteriosa que fora sua chegada. A criatura que o fez poderia voltar aqui, para reclamá-lo. Até lá, as coisas continuarão assim, afinal, ele não deixava de ser minha criação também.

Leila Guenther

Nasceu em Santa Catarina, em 1976. É autora de Partes homólogas (2019), Viagem a um deserto interior (2015), selecionado no Programa Petrobras Cultural e finalista do Prêmio Jabuti, e O voo noturno das galinhas (2006), traduzido para o espanhol (Borrador Editores) e editado também em Portugal (Nova Delphi).

Rascunho