Antes de mim

Conto de Fabrício Carpinejar
01/01/2005

Dependia só de mim para ir à escola. Caminhar quatro quadras, entrar na maré humana na parada de ônibus e ficar quietinho na sala de aula até a professora apanhar o giz. Rito certo e infalível. Não incomodava para não ser incomodado. Falava nada para minha falta de assunto não transbordar. Tentava não chamar atenção das meninas para não ser percebido, dos meninos para não ser zombado. Tinha as condições ideais de temperatura de uma cerveja no verão. Não podia ser apanhado pelo casco, mas pela garganta, senão congelava. Fui assim nos dois primeiros anos da escola. No início da terceira série, minha mãe me chamou ao canto e disse que precisava mudar, que agora cuidaria do meu irmão caçula. Miguel entraria na primeira série e era de minha responsabilidade. Jurei de tremer de jurar. Não conseguia me controlar, como mostrar ao meu irmão segurança? Fugia do convívio, como transmitir envolvimento com os colegas? Peguei-o pelos braços e caminhamos juntos o trajeto de minha solidão. Antes conferi sua merendeira e expliquei como abria sua térmica e a duração do recreio. Lembro que avisei: o recreio dura metade da metade de um tempo de futebol. Ele fez sim, com a cabeça, compassivo. Mudos, cumprimos o mapa em linha reta. Miguel era solto, decidido, com os cabelos encaracolados e um dente da frente a menos que surgia a mais em seu sorriso. Um anjo de avental vermelho, diferente da minha retração de domingo. Na manhã nublada, não prestei atenção na aula, ansioso por movimentos e aparições na sala do outro bloco. Fiquei em uma classe que me permitia enxergar vultos nas demais janelas. Contraía o olho esquerdo para empurrar o direito mais longe. Meu batimento doía, como uma prova onde sequer intuía como começar o assunto. Não era prova, mas o dia da primeira responsabilidade. Nunca cuidei de ninguém, de repente lá estava imbuído de deveres, ungido pai de ocasião. Paternidade que não conhecia direito desde que minha mãe havia se separado há dois anos. Paternidade inventada a partir de livros e gibis, em que fazia cartões com palavras roubadas de revistas. Paternidade que descobri depois quando deixei de condenar meu pai por aquilo que não compreendia. No recreio, fui catar Miguel e o percebi extremamente articulado com amigos, brincando de corrida e alheio à preocupação. Enrugou a boca em um rápido “oi” e apressou o passo para não atrasar o ritmo da brincadeira. Em um dia, Miguel conseguira amizades que não fizera em três anos. Isso não me deu alívio, confirmou a suspeita do meu despreparo para a função de olheiro. Despreparado para recolher as palavras de volta. Senti inveja de sua facilidade inata, inveja por não tê-lo ensinado absolutamente nada. Eu tinha pena de mim, porém a pena de mim era o único sentimento que me consolava. Mordi muito o lápis nos últimos períodos. Se lápis fosse faca, não teria boca para assobiar. Todo recreio era uma explosão. Não importava se a professora estava falando um tema importante, logo a interrompiam. O ranger das cadeiras era biológico, pontual, definitivo. Quando o sino transformou a porta em janela de incêndio, corri na frente para aguardar meu irmão na praça, local em que combinamos o encontro. Em dias anteriores, saía em disparada para não ser acompanhado por perguntas de onde moro, o que faço de tarde e quem são meus pais. Naquele meio-dia, permaneci observando as turmas deixarem ruidosas o pavilhão da escola. A vida dos outros parecia mais feliz do que a minha. Mais alta, mais pátio para correr, mais interessante. Reparava inclusive os movimentos bruscos dos pássaros, o deslizar monótono da cor. O que não vivia era mais meu. Quinze minutos depois, a angústia concentrou a respiração. O pensamento tornou-se repetitivo e letal. Nada de meu irmão aparecer. Desci novamente a escola e vistoriei sua sala, o refeitório, o campo de futebol e novamente nada. Vazio como um lago recuado pelo sol. Trinta minutos depois, desesperado, passei a rezar. Rezar de pé não adiantou. Pensei que seria ouvido se me ajoelhasse. Não podia voltar para a casa sem meu irmão. Encolhido no meio-fio, rezei, rezei, rezei e de repente já estava chorando no meio da reza e vestia o pai-nosso de ave-maria. Pensei que não seria ouvido chorando. Alguém se apoiou nos meus ombros. Era a mãe. Gritei que havia extraviado o Miguel. Ela reagiu com calma, como a não entender a gravidade do som.

— Ele está em casa. Estamos preocupados é contigo.

Eu havia me perdido, não o Miguel. No dia seguinte, lembro de escutar, atrás da porta, a mãe pedindo ao meu irmão menor que me cuidasse.C

Fabrício Carpinejar

É jornalista e poeta. Autor de caixa de sapatos, entre outros.

Rascunho