A fraude e o artifício

Em “Paraísos artificiais”, Paulo Henriques Britto une Henry James à idéia de logro para criar uma divertida reflexão sobre a arte e a vida
Paulo Henriques Britto parece insinuar que, acima das discussões acadêmicas de gênero ou sexualidade, paira o olhar irônico daqueles que a História atropelou.
01/02/2005

Não é preciso dispor de grande erudição para associar Os sonetos negros, última das histórias de Paraísos artificiais, de Paulo Henriques Britto, à novela Os papéis de Aspern, de Henry James: a fonte é alardeada logo na orelha do livro.

Já a inspiração de Os papéis de Aspern provém de uma história real e curiosa, que vale relatar aqui. James ouvia-a contar um meio-irmão da romancista Vernon Lee. O capitão Silsbee, um admirador das artes e da poesia, conheceu em Florença uma velha senhora chamada Claire Clairmont (seu nome verdadeiro era Mary Jane Clairmont). Acontece que essa dama foi irmã de Mary Shelley, amante de Byron (a quem dera à luz a filha Allegra) e conservava consigo umas cartas de Byron e de Shelley. Com o fito de apoderar-se desses documentos, o capitão alugou acomodações na casa dela e, após uma certa dose de adulação, a amante de Byron enfim concordou em ceder-lhe as cartas. Em troca, o capitão deveria casar-se com a sobrinha de Claire, uma figura sensaborona já entrada nos cinqüenta anos. Silsbee acovardou-se com a proposta e fugiu.

A anedota serviu como base para a criação de James que, mudando a locação de Florença para Veneza, ainda dotou a novela de grande carga atmosférica. Outra modificação introduzida pelo ficcionista foi substituir a dupla de artistas românticos (ou, mais provavelmente, apenas Byron, pois a idéia é a de que houve uma ligação amorosa entre a detentora das cartas e seu autor) por um fictício poeta americano, Jeffrey Aspern. James sabia do risco que estava correndo, pois, na época de Shelley e de Byron, não teria havido nos Estados Unidos um poeta que ombreasse em fama com os modelos metropolitanos. Pior: as condições históricas norte-americanas não teriam permitido, na virada do século 18 para o 19, o surgimento de um escritor do porte de Byron, por exemplo. Vale lembrar que Edgar Allan Poe é um pouco posterior, tendo nascido em 1809 (Byron nasceu em 1788 e Shelley, em 1797). No prefácio que escreveu a essa novela, James disse que a história também lhe permitiu tratar de um passado cuja força ainda podia fazer-se sentir; que continuava, por assim dizer, presente: ou seja, tratava-se de “um passado palpável e admirável, aberto à visitação”. (Grifo do autor.)

No mesmo prefácio, o autor assevera que “nove décimos” do interesse do artista pelos fatos que o inspiram está “no que ele pode acrescentar-lhes e em como pode transformá-los” — de maneira que, seguindo essa sugestão, passamos a examinar as pinceladas dadas por Britto ao mote jamesiano, que também serviu de fundamento à estupenda novela de Carlos Fuentes, Aura. Em Os sonetos negros, temos uma pesquisadora carioca chamada Tânia (se não me engano, o nome é mencionado apenas uma vez), que vai a São Dimas, uma cidadezinha do interior de Minas, a fim de estudar os originais da consagrada poeta Matilde Fortes, falecida uns anos antes. Os “papéis” de Matilde são conservados pelo viúvo, seu Gastão, que conviveu com ela quase quatro décadas e que, na ocasião, reside no velho casarão familiar junto com uma governanta negra de setenta anos e uma cozinheira mais nova, filha dela.

Tânia trabalha para um instituto de corte feminista chamado Nuelfe, Centro de Estudos sobre a Literatura Feminina. Seu objeto de estudo são os tais “sonetos negros” do título, poemas de amor que Matilde escrevera em meados da década de 30. Pouco antes de morrer, seu Gastão manda entregar a Tânia os originais dessa obra, os quais até então se julgavam perdidos. A pesquisadora descobre que os poemas em princípio haviam sido escritos para uma mulher. Entusiasmada com o achado, ela telefona para Ercília, sua orientadora na tese sobre os sonetos, que, igualmente exaltada, já pensa em incluí-los numa coletânea de poesia lésbica. A questão é que, mais tarde, ao ler a obra com calma, Tânia percebe que os poemas não foram escritos por uma mulher para uma mulher, mas por um homem para uma mulher. Seu Gastão é o verdadeiro autor dos sonetos, cuja autoria cedeu à esposa, por amor a ela. Matilde, a famosa poeta feminista, no fundo é uma farsa, e o grande dilema de Tânia passa a ser (após a morte de seu Gastão) se deve lançar os manuscritos ao rio e prosseguir com a lenda, ou corrigir essa monumental fraude literária (à custa da ira das feministas e de sua bolsa no Nuelfe).

Muito além dos elementos satíricos, que centram mira contra os atuais gender studies (estudos de gênero) e a onda do politicamente correto, a narrativa gira sobretudo em torno da idéia da fraude, do engano, do logro. Em dado momento, Tânia vê um retrato de Matilde. A poeta aparece segurando um exemplar de As canções de Bilitis, do francês Pierre Louÿs. Supostamente escritas por Bilitis, amante de Safo, e editadas por Louÿs, as Canções configurariam, assim, um caso de artifício literário. A História fornece inúmeros exemplos da mesma espécie. Os chamados Sonetos do português, por exemplo, que teriam sido criados por Camões e traduzidos por Elizabeth Barrett, na verdade foram escritos pela própria Elizabeth para seu então amante Robert Browning: o estratagema da “tradução” foi bolado para iludir os pais da moça. O próprio nome da cidade mineira onde Matilde residiu alude à idéia da apropriação indébita: São Dimas é o bom ladrão, crucificado ao lado de Jesus Cristo.

Logo, o dilema da protagonista não é tanto da ordem matrimonial (como em James), mas ético-profissional: deve reverenciar a memória da falsa poeta ou, sacrificando sua carreira como pesquisadora feminista, revelar a verdade ao mundo? Mas o aspecto por assim dizer amoroso da intriga jamesiana continua presente, ainda que de forma diluída. Não há uma sobrinha ou sobrinho de meia-idade para assombrar a heroína, mas seu Gastão dispõe de duas empregadas negras, de setenta e cinqüenta anos. Dona Aspásia, a governanta, tem aspecto misterioso e taciturno, enquanto a filha dela, a cozinheira Cleuza, é quem entrega os manuscritos a Tânia. Mais diretamente relacionada é a estranha solicitude do técnico em computador Clemenceau para com a pesquisadora. Apesar do nome francês (Georges Clemenceau foi político que se destacou nas negociações para o Tratado de Versalhes), o jovem é mestiço de índio. Ao transpor para as fímbrias do enredo o que era essencial na novela de James, mas transpondo-o de modo a associá-lo às classes historicamente menos favorecidas da progênie brasileira (o negro e o índio), Britto parece insinuar que, acima das discussões acadêmicas de gênero ou sexualidade, paira o olhar irônico daqueles que a História atropelou.

Há ainda outra questão, para além da fraude. Como pesquisadora, Tânia se preocupa muito mais com os aspectos intratextuais da obra do que os extraliterários. Para ela, a biografia do autor não é essencial para esclarecer a obra: importa o que está no texto. Essa é a tônica de muitas das conversas dela com seu Gastão, que, naturalmente, quer sugerir-lhe que o oposto é verdadeiro. No fundo, o que está em jogo é uma visão que privilegia a arte sobre a vida (o ponto de vista de Tânia) contra a que concede a supremacia à vida, no lugar da arte. Noutro patamar, é também a fonte da angústia existencial do herói de Os papéis de Aspern: vale mais a arte, representada pelos documentos do famoso poeta, ou a vida, que ele teria de sacrificar por um casamento indesejado?

Tal dúvida nos leva a outro interessante deslocamento proposto por Britto. Quando confrontamos o passado “aberto à visitação” de James com o de Matilde Fortes, este último não nos parece assim tão distante. Afinal, o grande ídolo de barro da literatura morrera numa época não muito remota, em 1986. Mas, se pensarmos no tempo em que ela escreveu os “sonetos negros”, a coisa muda um pouco de figura.

Na década de 1930, a poesia brasileira, nutrida na vanguarda dos anos 20, perseguiu uma maior robustez estética em sua busca por aprofundar temas políticos e existenciais. Foi a década de Carlos Drummond de Andrade, de Murilo Mendes, de Jorge de Lima, e também de Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa. Foi esse decênio que preparou terreno para as experimentações de cunho mais formalista da geração de 1945, cujo maior expoente foi João Cabral de Melo Neto. Assim, não espanta Britto ter alcunhado os poemas de Matilde/Gastão de “sonetos negros”, numa possível alusão aos Sonetos brancos (1948), que assinalam o preito do mineiro Murilo Mendes à forma fixa.

Os poetas dos anos 30 buscavam ter o melhor dos dois mundos: toda a vida mas, se possível, toda a arte também. Numa época como a nossa, em que a arte parece estar mais do que nunca especializada, apartada dos fenômenos vitais, e que a própria vida aponta para realidades supra-reais ou virtuais, a questão sobre as inter-relações entre arte e vida revela-se crucial para compreender não só esta última história de Britto, mas também todo o restante do livro, denominado, não por acaso, presume-se, Paraísos artificiais.

LEIA ENTREVISTA COM PAULO HENRIQUES BRITTO

Paraísos artificiais
Paulo Henriques Britto
Companhia das Letras
128 págs.
Marcelo Pen
Rascunho