“Todo livro é uma imagem de solidão. É um objeto tangível que se pode pegar, largar, abrir, fechar, e suas palavras representam muitos meses, senão muitos anos, da solidão de uma pessoa, de modo que cada palavra lida num livro pode-se dizer que se está defrontando com uma partícula daquela solidão”. Citando Paul Auster, Cecília Prada dá início aos seus Estudos de interiores para uma arquitetura da solidão.
O que se pode intuir desta citação é que os livros têm a capacidade de fazer com que duas solidões se encontrem, sem perder a natureza de solidão. A primeira é a solidão frutífera, capaz de existir no plano material por meio do livro, e percorrer vários caminhos. É, portanto, ativa. Há, porém, outra espécie que é incapaz de gerar, é absolutamente estéril, acanhada e sôfrega — é a solidão do leitor durante o ato de leitura, ou durante o ritual de leitura. Nesse momento, contudo, pela identidade que se estabelece, pela união de dois sentimentos; um que extravasa e outro que clama por mais, é que nasce um único corpo, formado por indivíduos absolutamente diferentes, mas que se tocam em um ponto: o sentimento de solidão. O simples ato de ler já impõe ao leitor um certo afastamento e clama por esta solidão, mesmo que assim fabricada e momentânea.
A solidão parece mesmo ser a tônica do novo volume de contos da jornalista, e é explorada em todas as suas facetas. A ingênua percepção infantil em rituais eucarísticos, a lembrança de um certo jantar formal e um homem enlouquecendo são alguns dos cenários dos quais lança mão a autora na busca do melhor lugar para se estar só. Esse ambiente ritualístico da Igreja Católica é para ela, ao que parece, o melhor lugar. É a materialidade da desolação, a fé que de tão grande vaza e some, o ritual que de tão respeitoso se esvazia completamente de significado e se torna mecânico. É o homem que se esvazia de si mesmo e se perde completamente, se cerca de medo, preconceito, maldade, e julga até não mais poder assumindo o lugar d’Aquele a quem rende graças. Não há mais humanidade.
“Estavam todos mancomunados contra mim, isso sim. Ninguém me tira da cabeça isso. Fico imóvel durante horas, ouvindo o silêncio da clínica ao lado. Uma manifestação ao menos, uma só, uma confirmação. Mas é como se na realidade eu tivesse medo dessa manifestação. Que não vem. Mas que poderia. Sim, que poderia vir — horrível, perturbando de uma vez por todas meu sossego. Um grito, de repente… se houvesse… Não dizem que os loucos gritam? Por que esses não gritam? São tão silenciosos. Não deviam ser permitidos loucos assim, que não gritam.”
O livro é formado por sete capítulos, e cada um composto por alguns contos. Já laureada pelo prêmio Esso de Reportagem, a paulista demonstra mesmo uma grande capacidade em seduzir o leitor pelos excelentes títulos, talvez herança da reportagem, em que a chamada para a matéria deve convencer o sujeito a parar em frente à banca de revistas do calçadão, e, mesmo sob a chuva fina, demonstrar um desejo incontrolável de saber do que se trata: “O nada — enfeitado com rodelas de limão”, “Venite Adoremus”, “Santa Cecília dos meus horrores”, são apenas alguns exemplos. Desde o cuidado título do livro — Estudos de interiores para uma arquitetura da solidão — já se percebe o que se propõe a demonstrar a autora. Pode-se dizer que em um primeiro plano intentou observar interiores, meio que cientificamente, listando, classificando, nomeando, e depois desta fase metodológica, partiu para a segunda fase, tratando de conceber a arquitetura da solidão. No entanto, ou o método escolhido fracassou por ser o equivocado, ou, a partir da primeira fase concluída, a pesquisadora falhou ao aplicar suas observações científicas quando da concepção desta tal arquitetura.
Realmente a primeira fase, quase taxionômica, parece estar completa, mas ela apenas não basta. Ao desenhar a arquitetura é que o drama se agrava. É frustrante para o leitor, porque no início do texto, ele aposta pesado que vai chegar em algum lugar minutos depois. Que a criação do espaço é apenas parte da narrativa ficcional, mas que a complementação virá carregando-o dali. Mas atenção: não que um texto literário tenha que necessariamente indicar um caminho, seguir por ele e concluí-lo, de modo algum. Alguns grandes nomes da literatura são capazes de sequer sair do lugar, tal qual faz Clarice Lispector, ou mesmo, para citar um autor contemporâneo, Raduan Nassar, e mesmo assim carregar o leitor para um outro local de onde ele jamais voltará. É transformador, é provocador. Esse procedimento se dá quando um outro texto se cola àquele impresso nas páginas do livro e este mesmo ganha dimensões sempre diversas e inúmeras possibilidades. Não é o caso de Cecília Prada, que se sai muito bem ao ambientar o conto, criando ricamente o espaço, mas não imprime vida aos personagens.
Essa pode ser também uma técnica — talvez a técnica do choque. Uma maneira de explicitar que isso é uma espécie de solidão. A inexistência de vida, a ausência de complexidade em uma vida. O sempre não chegar a lado algum, a estar perdido em toda a extensão da expressão “estar perdido”. Nesse caso se pode pensar que a autora acertou a mão, porque em verdade seus personagens são assim — um não sei quê não sei pra onde sem por quê. Capazes de confundir completamente coisas da ordem do sagrado com as da ordem do profano, buscando se sub-rogar no lugar do próprio Deus, auxiliando nos trabalhos de julgamento e condenação, mas sem, no entanto, perceber que são seus iguais. É também uma leitura possível, fazendo um grande esforço crítico, quase um voto de fé. Aproveitando a imagem, como se o leitor quisesse se sub-rogar no papel de personagem, para compreender que se trata em verdade de uma criação falha por vontade, para buscar apenas aumentar o sentido, tocar de modo mais incisivo o leitor.
Melhor mesmo que a obra é sua orelha, o prefácio e a entrevista com a autora. Além, é claro, da bela edição. É uma lástima, mas aquele que compra o livro deveria ter direito a parte do pagamento de volta, porque parece que o resto da obra ainda está por vir.