É impressionante como temos bons poetas. Neste trabalho para o Rascunho, tenho tido a felicidade de descobrir grandes observadores da vida e do ser humano, gente que traduz nossa condição em poéticas muito bem realizadas. Os poetas estão aí neste Brasil de meu Deus produzindo reflexões, revelações e depurando nossa essência. O trabalho de selecionar as dezenas de livros de poesia que chegam ao jornal é do editor Rogério Pereira, que com um olhar crítico me entrega as melhores obras no momento da seleção. Mesmo assim temos uma fila de bons livros para serem comentados e isso é motivo de grande felicidade para mim. Afinal de contas, vejo que teremos assunto por muito tempo. Nesta edição vamos comentar sobre livros recém-lançados de quatro poetas, que representam parte da fortuna poética brasileira.
Um dos livros mais saborosos que chegaram às minhas mãos nos últimos dias foi Arremesso livre, de Vera Americano. Obra de rara sensibilidade na melhor tradução do fazer poético. Este é o segundo livro da autora que estreou em 1970, com A hora maior (1º Prêmio da União Brasileira de Escritores). Neste intervalo de 34 anos, continuou produzindo e formando seu cabedal. Na orelha do livro, a explicação: “Quem estava em silêncio era eu, não a minha poesia”. A voz que agora ecoa em Arremesso livre é de uma poética madura. O livro reúne 73 poemas divididos em três partes: sinais, álbum e dados. Em Sinais, o amor aparece como tema recorrente, o amor rico em sensações e seus percalços. Um belo exemplo é poema Buquê: “Estimo suas melhoras:/ aos poucos/ cicatrizes desaparecem,/ poentes voltam a ser poentes./ Ao afivelar a sandália,/ jamais se indague/ sobre o estoque/ de saudades”. Vera Americano busca a poesia incessantemente e usa imagens fortes para atingir seu objetivo. Um exemplo é Obsidiana: “Oh! Olhar de larva,/ cinza muda,/ pedra./ Olhar etíope/ a cruzar o Eufrates/ procurando o cerne./ Me olha de novo/ do canto escuro/ do teu olho preto:/ te juro tudo,/ de amor a mel”. Na segunda parte, Álbum, a autora explora o lugar e busca referências espaciais para sua poesia: “1.No quarto/ o ardente poema/ dirigido ao coração da ponte:/ o rio lambe a cidade,/ a cidade imersa/ em sépia,/ sépia meu coração./ 2.no quarto,/ o friso da porta/ alcança o rio/ e submerge/ no átrio escondido,/ onde habita,/ entre andorinhas,/ o segredo”. Em Dados, terceira e última parte, Vera trabalha a poesia dentro da poesia e mostra suas credenciais, suas ferramentas, fala do arrebatamento na hora que ela vem. “Quando chegas/ abruptamente/ sofro um falecimento/ breve./ Nem sabes/ mas me recupero e suprimo/ — às madrugadas —/ uma letra a mais/ no último sofisma”. Torço para que a poesia certeira deste Arremesso livre não deixe mais que a voz de Vera Americano silencie, já que a poesia fala alto dentro dela.
E desejo mais: que as editoras continuem abrindo espaço aos que vivem para os versos.
Exercício
O mais difícil
é desentulhar
a passagem
retirar a tranca
permitir o êxodo.
Depois,
eis que o sol
cauteriza algumas incertezas
e recolhe
famelicamente
os fiapos
da travessia.