Se há algo que parece exercer uma atração tão intrigante nas pessoas como as histórias de morte, são as de presos. Atração intrigante e, mais ainda, inexplicável. Inúmeros são os casos em que assassinos cruéis recebem uma atenção condescendente demais em relação aos crimes que cometeram. Parece que o fato de viverem em celas apertadas e imundas, sujeitos a códigos internos de conduta e punição, os torna especiais, dignos de compaixão muitas vezes superior à que recebem pessoas honestas e trabalhadoras, que carregam uma vida miserável porque têm a decência de não cometer ação ilegais.
Intrigante mesmo este mundo da cadeia. Por lá circulam missionários, professores voluntários, evangélicos, almas bondosas que tentam, para usar o jargão, ressociabilizar estes presos. Muitas moçoilas, algumas famosas, chegam a resgatar completamente estes rapazes do crime, dando-lhes até o corpo e um casamento duvidoso.
A literatura também é uma prostituta de porta de cadeia. Ela também circula pelas celas, a começar pela leitura, afinal, quem no mundo tem mais tempo para ler livros se não os detentos. É natural que esta leitura produza alguns aventureiros das letras, até porque outra atividade natural dos presos é escrever cartas e diários. A tentação para publicar é tão grande quanto um carro-forte de portas abertas e sem guardas. Muitos conseguem, porque há uma infinidade de agentes literários de porta de cadeia querendo fazer dinheiro com as histórias daquele mundo. Raros têm talento, alguns sobrevivem mais pela condescendência altruísta de outros, a maioria deveria ter sua pena aumentada pela prática do crime contra a literatura.
Abro um parênteses para deixar claro que não compactuo dessa compaixão pelo submundo. Minha preocupação é apenas com os honestos. Enquanto houver trabalhadores injustiçados com salários miseráveis e condições de vida piores ainda, acho que os bandidos têm mais é que ficar empilhados em celas imundas, pois foi a opção que fizeram ao cometer um crime.
Também não vejo a literatura como instrumento de ressociabilização. Torço o nariz quando recebo release de autor contando como ele começou a ler na cadeia e buscou a redenção nos livros, e que cabe a nós contribuirmos comprando suas obras para lhes dar uma nova chance, porque quem sai da cadeia, coitado, é visto com desconfiança pela sociedade e patatipatatá…
Para mim, é totalmente pertinente que quem sai da cadeia seja visto com desconfiança, pois já mostrou ser desonesto. E tenho mais desconfiança ainda de quem descobriu os livros na cadeia e lá começou a escrever, pois esta não me parece a ordem natural das coisas, e sim uma tábua para o desespero.
Os americanos são os campeões nesta história. Eles adoram exercer a compaixão sobre autores de porta de cadeia. E os tongos aqui debaixo dos trópicos costumam embarcar nessa onda, endeusando mais ainda a literatura de bandido quando o tal fala inglês.
O mais novo extraditado é Edward Bunker, cuja história é a de sempre: aprendeu a ler na cadeia e publicou o primeiro livro antes dela sair. A editora Barracuda lançou por aqui dois trabalhos de Bunker: seu romance de estréia, Nem os mais ferozes (356 páginas), de 1973, e Cão come cão (286 páginas), de 1996. O primeiro até que é razoável, mas o segundo é terrível.
A vantagem de Nem os mais ferozes é mesmo o fato de ter sido o primeiro livro de Bunker. Não é uma autobiografia, mas fica evidente que Bunker baseou o protagonista Max Dembo em sua própria história, e a vida de um criminoso e presidiário tem sempre aquele lado intrigante. Escrito em primeira pessoa e narrado por Max, o grande trunfo do romance é o realismo. Bunker transmite com precisão o torvelinho que é a vida de um bandido no momento que deixa a cadeia e retorna às ruas, mas sem exatamente a liberdade que imagina ter direito, como alerta seu agente da condicional (“Você age como se estivesse livre, como se pudesse fazer o que dá na telha. Você não está livre. Ainda está em custodia legis, direito concedido a um prisioneiro de servir parte da sentença em liberdade condicional. Além disso, você tem um longo histórico de administração incompetente de sua vida.”)
Apesar de alguma inverossimilhança em alguns fatos, Bunker até que administra com razoável competência este seu primeiro romance. É realmente uma história de bandido contada por um bandido, com toda a frieza necessária na hora de enfiar a pistola na cara de alguém e dispará-la sem remorsos.
Max resiste por pouco tempo à vida regrada. Logo volta às drogas e à companhia dos antigos parceiros, o que o reconduz para as atividades criminais. Neste ponto o livro ganha força, pois Bunker relata o planejamento dos assaltos com riqueza de detalhes e consegue transmitir as emoções dos bandidos nos momentos que antecedem os ataques. Pena que o enredo seja poluído com lugares-comuns das histórias policiais vulgares, com aquelas coincidências mágicas, sempre a favor do protagonista, como quando Max procura o parceiro ideal para um golpe e reencontra um velho amigo por acaso. Sim, o velho amigo era aquele parceiro ideal que ele procurava.
Outros deslizes acontecem quando o autor, por meio do protagonista, tenta vangloriar-se do conhecimento adquirido na prisão com os livros, enfiando citações de Freud, Dostoievski, entre outros. São citações rasas e que revelam a falta de profundidade de Bunker no assunto, e que ficam ainda mais inverossímeis no perfil intelectual de Max Dembo.
Tirando os lugares-comuns e as intelectualices, Nem os mais ferozes é um romance razoável, e apenas isso. Está muito aquém de ser “o melhor romance sobre crime escrito em primeira pessoa que eu já li”, como atesta Quentin Tarantino na capa da edição brasileira. Ou Tarantino foi muito condescendente, ou o cineasta deveria ter passado mais tempo de sua juventude em bibliotecas que em videolocadoras.
De qualquer forma, era preferível que Bunker, e todos os escritores de porta de cadeia, tivesse contentado-se com um único livro. A falta de habilidade com as letras fica muito mais evidente em Cão come cão, um fraco e mal escrito romance policial. Aliás, a diferença nos textos em português destes dois livros leva a duas suposições. Uma é o chamado efeito Paulo Coelho, que dizem fazer muito sucesso no exterior porque os tradutores melhoram sua escrita paupérrima.
Se o texto original de Bunker é ruim, o tradutor brasileiro de Nem os mais ferozes deu uma bela concertada. Já o tradutor de Cão come cão não se preocupou em melhorar o texto original. Agora, se o texto original de Bunker flui bem como em Nem os mais ferozes, o tradutor de Cão come cão é mesmo muito fraco. Não que a tradução de Nem os mais ferozes seja um primor, pois há erros de gramática e algumas transposições equivocadas, como um impossível “zagueiro de futebol americano”. Mas mesmo assim o texto é agradável, diferentemente da profusão de lugares-comuns e de frases secas e sem graça de Cão come cão. (“mesmo que chutar um cachorro morto”, “cachorro não mija em poste”, e por aí vai).
De qualquer forma, nem uma boa tradução salvaria Cão come cão. O enredo é juvenil e mais parece uma continuação infeliz de Nem os mais ferozes. O recém-libertado Troy Cameron encontra os parceiros Diesel Carson e Mad Dog e juntos vão retornar à atividade que os havia levado à prisão. É neste livro que Bunker mostra que sua imaginação não é tão fértil. Ou que Nem os mais ferozes foi mesmo fruto de uma realidade vivida ou conhecida, do que um mérito ficcional.
Novamente as divagações filosóficas sobre crime, sociedade e sistema penitenciário aparecem, mas sem nenhuma sustentação intelectual. Bunker chega a ser incoerente até no que deveria conhecer melhor, os crimes. Para amarrar o enredo, ele prefere que seu bandido dê golpes com cartão de crédito do que tomar uma “atitude desesperada como um assalto”. Só que Mad Dog acabara de matar a namorada e sua filha, o que, presumo, torna um assalto uma atitude banal e sem qualquer ponta de desespero. Bem, naturalmente que Mad Dog acaba preso justamente porque deixou pistas pelo uso do cartão de crédito.
Outra falha grotesca em Cão come cão é uso indiscriminado de diálogos. Tudo é motivo para abrir um travessão, até mesmo na hora de acender um cigarro:
Você se importa se eu fumar?
Pode fumar.
Quer um?
Não.
Ou eu sou muito chato, ou esse diálogo é bobo e desnecessário. E são dezenas desses, quebrando o ritmo da narrativa em situações que poderiam ser perfeitamente descritas na continuidade do texto, ou mesmo descartadas. Aliás, eu descartaria Cão come cão inteiro. Fico apenas com o primeiro livro de Bunker. Nem os mais ferozes serve para aplacar a irritação enquanto se espera o ônibus e já seria suficiente para conhecer sua história, que não difere muito de toda a literatura de porta de cadeia.