Mundo dos valores mortos

Pequenas luzes movimentam-se no teto branco. Reflexos perolados oscilando entre dois pólos imaginários
Gilbert Keith Chesterton, autor de “O tempero da vida e outros ensaios”
01/02/2005

Pequenas luzes movimentam-se no teto branco. Reflexos perolados oscilando entre dois pólos imaginários. Duas vezes abre os olhos e

(dormir, respirar)

os fecha antes de focar o que são as pérolas flutuando no céu baixo demais para apenas ser céu. Duas vezes abre os olhos e

(dormir, respirar, morrer)

um vulto chama sua atenção

O mal de que os homens tenham deixado de crer em Deus não é que já não creiam em nada, mas sim que estão dispostos a crer em tudo.

com chapéu, óculos de aro redondo e bigodes e gordo demais para estar tanto tempo de pé.

— Me deixa dormir.

A maturidade torna os homens menos autores e mais espectadores da vida social.

— Me deixa…

O resmungo escapa de entre os lábios secos e quebradiços, esvoaçando a pele esbranquiçada feita a casca da cigarra em mutação final. Fecha os olhos e não vê a luzes. Pérolas continuam a percorrer o céu de seu mundo interior.

(tanto trabalho para nada, tantas horas em vão, tantas páginas escritas e ainda assim em branco)

Um enfermeiro entra no quarto e toma o pulso e conta números em uma ordem silenciosa até que repousa o braço ao lado do corpo amolecido e ajeita o travesseiro sob a cabeça de cabelos desgrenhados e anota algo na prancheta aos pés da cama e sem largar a caneta lê a página anterior e outras mais. Passa os olhos pelo paciente e tira do bolso uma caixa de chicletes e enfia duas pequenas pedras na boca. Puxa a carteira e acaricia a foto e morde os lábios e engole uma pequena porção de saliva.

— Deviam avisar os suicidas dos riscos envolvidos no ato. O ministério da saúde adverte: suicídio pode provocar a morte.

Sai.

(quanto mais tento a grande obra, sob meus pés desfaz-se a pequena, a possível, ou quase nada)

Sabe mais o tonto em sua casa que o sábio na ignorância.

G. K. Chesterton (1874-1936) sorri e olha para o pátio, acompanhando uma ambulância que chega apressada e descarrega duas macas pesadas de carne sem vida e apóia-se com mais força na bengala na mão esquerda e baixa a cabeça tocando a testa no vidro grosso. Uma forte ventania quer fazer bater folhas de salgueiro em seu rosto enquanto no céu nuvens escuras encobrem o sol.

A maturidade faz do homem mais espectador do que autor da vida social.

Alguém toca no ombro largo.

A pena é a língua da mente.

Chesterton, sem olhar para trás, responde que estava se sentindo só,

(antes só do que)

sem ter com quem conversar, que a companhia dos adormecidos é menos efetiva que a dos mortos.

Um criminoso perigoso é um criminoso culto.

Chesterton interrompe-se vendo que abre os olhos com dificuldades e usaria as mãos se conseguisse levá-las ao rosto e limparia a grossa remela seca que cola os cílios e faz do simples acordar uma tarefa dura e custosa.

— Me deixa…

Pede com a voz fraca e arranhada, sem conseguir ajuda ou mesmo interromper a conversa que toma o quarto.

Se vai à praça do nunca pela rua do vou

Continua a forçar as pálpebras até conseguir abrir um vão entre si e o mundo e a luz que entra mais que alívio é dor em sua retina. Demora alguns segundos até acostumar e então vislumbra duas sombras díspares. O mesmo gordo de antes acompanhado de um homem magro e de voz macilenta, que parece ter sofrido algum acidente pois ao redor de seu pescoço tem um envoltório branco e volumoso.

(por que é querem que seja preciso acordar de verdade, de mim e mais que de mim)

— Por favor…

Uma pequena mosca vinda de lugar algum bate asas entre sua orelha e a luminária no criado-mudo e sibila um som que parece significar

(ruído branco)

algo que não dá realmente para identificar a não ser que seus olhos se abram e sobrevivam à luz que se intensifica mais e mais cai a tarde e o sol se posta no horizonte em uma diagonal direta que atravessa a janela e dardeja em seu cérebro sem conseguir verdadeiramente iluminar, apenas ferir.

(qual o assunto, qual a lavra, qual o texto que me vai redimir?)

O enfermeiro retorna para limpar o dreno. Ajoelha ao lado da cama e puxa uma pequena bolsa inchada e troca-a por outra, murcha e ansiosa. Cervantes toca o envoltório repleto de excreções e olha para a palma de suas mãos como a buscar alguma marca ancestral,

Não há carga mais pesada que uma mulher leviana.

uma lembrança inscrita de outros tempos, torturas e naufrágios.

Chesterton passa o lenço no vidro, limpando marcas invisíveis.

A fúria com que hoje o homem busca o prazer prova como está em falta.

Por isso julgo e tenho discernimento, como coisa certa e notória, que o amor tem sua glória às portas do inferno.

Cervantes (1547-1616) diz enquanto encara os olhos que o observam por sobre a serra formada por escápulas e costelas e ombros e acaba consumido pelo enfermeiro que se levanta com o saco preso no dedo indicador pela estreita alça.

Não há amor perdido entre nós.

Os narizes quase se tocam enquanto o enfermeiro constrói para si um breve momento de paralisia, um escape de si e do quarto, para outras paragens, restos de uma possibilidade, uma esperança que o acompanha desde cedo, quando a esposa fechou a porta levando consigo uma pequena mala e a filha de dois anos.

Um suspiro fundo.

Cervantes toca o rosto coberto de espessa barba e sussurra algo no ouvido do enfermeiro. O corpo dentro da roupa branca estremece e o rosto se enrijece. Quase que imediatamente o homem retorna para o segundo que respira e apressa-se em sair do quarto. Chesterton pergunta o que foi dito e Cervantes mostra as palmas das mãos e tudo parece explicado.

A lavada tudo tira.

Deitado na cama, observa os dois homens de dois tempos e sente uma breve tontura a qual responsabiliza como sendo mais um dos sintomas que o levaram a estar ali, amortecido de corpo e de alma, agradecido que desse modo não precise lembrar ou sentir verdadeiramente as angústias que o tomavam dias atrás, dias de escuridão, quando nenhuma campainha, fosse porta ou telefone era capaz de fazê-lo levantar e esticar as pernas.

— Por que não me deixam em paz?

Cervantes encara Chesterton e acena a cabeça que não,

Parece mais belo o soldado morto em batalha que vivo na covardia.

enquanto Chesterton faz o contrário e,

A aventura pode ser louca, mas o aventureiro, para levá-la a cabo, deve estar em seu perfeito juízo.

riem-se e voltam a ficar sérios e

No começo de toda discussão convém fixar o que está fora da disputa; e quem a empreende, antes de dizer o que se propõe provar, há que se dizer o que é que não se deseja provar.

Cervantes concorda que não é possível permanecer o dilema e, assim sendo, um juiz deve ser convocado.

(é o estado da mente que rege o estado do corpo, é o estado do corpo que rege o estado da mente, é da perturbação de dois estados que surge toda a dor e a impossibilidade de evasão verdadeira)

(onde está minha verdade)

Paul Valery (1871-1945) chega acompanhado de Oscar Wilde (1854-1900), continuando uma conversa de séculos, como dois cavalheiros maltrapilhos vindos de uma farra

Um estilo seco se mantém através do tempo como uma múmia incorruptível; outros estilos inchados e profundos de imaginação se corrompem com todos os seus adornos. Só algumas vezes se sacam alguns diamantes de suas tumbas.

ou da masmorra

Nesta vida a primeira obrigação é ser totalmente artificial. A segunda, de qualquer modo, não leva a lugar algum. A pessoa vulgar é um prodígio de tolerância, perdoa tudo, menos o gênio.

e fazem breves cumprimentos de cabeça e se colocam sentados na beirada da cama.

(quando posso descansar de mim e daqueles que me acusam de fracassar por simplesmente estar)

O cheiro de seus charutos pesteia a sala com uma névoa que lembra inversão térmica paulista ou, tomando mais ao pé da letra, o desespero de um entardecer solitário.

O cachorro fez do homem seu deus. Se o cachorro fosse ateu, seria perfeito.

Chesterton pigarreia interrompendo a fala de Valery,

Desejar a ação é desejar uma limitação. Neste sentido todo ato é um sacrifício. Ao escolher uma coisa, necessariamente rechaçamos algumas outras.

e Cervantes dá a medida da contenda original, para a qual foram convocados como juízes, esclarecendo o quanto é necessário não pairar dúvidas sobre a verdade

A verdade estica mas não quebra, e sempre nada sobre a mentira como o azeite sobre a água.

sendo ela, a verdade, a causa de todos os males presentes.

(estranho como o sono aconchega o espírito e torna a maior dor algo feito lembrança de um poema lido na juventude)

Wilde vira-se e encara o semi-adormecido e coloca sua mão pesada em seu peito e recita um breve trecho de De profundis e suspira solene a última sílaba e aguarda aplausos ou agradecimentos ou cumprimentos e não os tendo,

Que falem mal de uns é espantoso. Porém, há algo pior: que não falem.

traga o charuto e bate a cinza contra o chão e ajeita-se sobre o lençol azul celeste.

(e mesmo assim adivinham as causas de minha dor)

Valery pede a responsabilidade de proferir o primeiro veredicto, justificando que o ego de seu companheiro o torna incapaz de ir direto ao tema.

A arte é a forma mais intensa de individualismo que o mundo conhece e conheceu.

Valery limpa uma pequena nódoa no rosto de Wilde, cortando sua interrupção.

O que há sido criado para todo o sempre e em todas as partes, tem todas as probabilidades de ser falso.

Wilde puxa a cabeça para trás sem conseguir esvoaçar os cabelos, por demais empastados, o que não o impede de agir como se o cansaço de suas cãs estivesse impregnado de vigor juvenil.

Descobrir com precisão o que não aconteceu e nem vai acontecer é o privilégio não apreciado de todo homem culto e de talento.

Chesterton uma vez mais toma a palavra,

O jogo de colocar limites em si mesmo é um dos secretos prazeres da vida.

e Cervantes o apóia,

As palavras honestas dão indício da honestidade de quem as pronuncia ou escreve.

mostrando-se insatisfeitos com o que é dito e pedem uma ação mais escorreita, o que significa um maior número de juízes e em número ímpar a fim de garantir uma resposta que não seja o empate, de preferência pessoas de lógica apurada e não humoristas e poetas.

(descompasso entre mente e corpo, eternidade e mortalidade, no fim apenas conceitos vagos e sem o menor significado quando a dor de um é tamanha que sobrepuja a vontade de outro)

A dor no tronco tem uma origem mais trágica do que o desconforto de tantos dias deitados, acerca-se da certeza ao tocar o curativo que ali está. Aumentando a pressão dos dedos sente o buraco na cavidade abdominal,

(afinal, por que procurar a grande obra se a pequena satisfaz os espíritos pequenos)

feito um respiradouro auxiliar para a boca e o nariz que mal conseguem supri-lo de oxigênio. Cervantes, observando o modo como reage à descoberta e conseqüente rememorar dos fatos passados, pela primeira vez sorri, e não apenas um riso vago e automático, mas uma expressão clara da satisfação que o invade sabe-se lá qual o motivo.

Na língua consistem os maiores danos do ser humano.

Wilde continua exercendo a leve pressão do peso de seus dedos e transmitindo para o corpo narcotizado a sensação de estar acometido por uma brisa desgarrada, que apenas ali ocorre e, sendo assim, treme influenciado não tanto pelo frio quanto pelo novo peso que cai sobre seus olhos, não mais das pálpebras, mas das imagens incompreensíveis de quatro homens caminhando na direção da porta que, mesmo sem ser aberta, aceita a chegada de três novos convivas, mais o enfermeiro.

— Eles não ficam quietos.

O enfermeiro continua a preparar a injeção, supondo o delírio ser o resultado de tantos dias na cama, sentindo inveja da alienação próxima e controlando o tremor nas mãos.

— Fica tranqüilo que esta belezinha aqui vai fazer o mundo ficar tão quieto que nem uma manada de elefantes te acorda. Aqui é assim, pagou para dormir, dorme com os anjos.

O enfermeiro esboça um riso irônico enquanto Cervantes fala em seu ouvido,

As palavras honestas dão indício da honestidade de quem as pronuncia.

Pelo sim, pelo não, provocando um interromper de ações e uma lágrima desgarrada e uma saída dramática, homem, injeção, e doses suplementares.

(as palavras têm poder)

Antes que perguntem, Chesterton esclarece a situação do enfermeiro.

Um fracasso no amor é para o homem como uma missão cumprida. Os corações foram feitos para serem maltrapilhos.

George Bernard Shaw (1856-1950), que aceita um trago do charuto de Wilde, completa.

Há duas tragédias na vida. Uma é não alcançar o desejo de nosso coração. A outra é alcançá-la.

José Ortega y Gasset (1883-1955), após cumprimentar os colegas mortos

Na morfologia do ser feminino, não há figuras femininas mais estranhas que as de Judith e Salomé, as duas mulheres que vão com duas cabeças cada uma: a sua e a cortada.

Bertrand Russel (1872-1970), seguindo a tradição da controvérsia

Temer o amor é temer a vida, e os que temem a vida já estão meio mortos.

abre a janela e procura ar limpo para respirar.

(realizar para saber se está realizado)

Risadas gerais, acompanhadas das do que devia estar adormecido, que agora realmente acordou, desistido de fugir de seus fantasmas, e ainda saudando Maeterlink, que entra no quarto trazendo pela mão o enfermeiro pálido como a neve de outono.

Sempre prejudicamos aqueles que amamos. Diria-se que desde o momento em que queremos outro, o destinamos ao sofrimento que não o havia alcançado ainda.

Cervantes deixa o quarto, atravessando a janela. Maurice Maeterlink (1862-1949) o segue com o olhar, largando o enfermeiro e ficando a contemplar o que resta de rubor no horizonte, desespero no qual desaparece Cervantes.

O que destrói a possibilidade da vida é permanecer sempre encerrado no cárcere de nossos pequenos ideais, sem generosidade e ser ardor, sendo que o sol ilumina a terra ao redor de nossa casa.

Bate palmas, ao que todos os fantasmas o acompanham, dando boas vindas ao mundo dos valores mortos.

Wilson Hideki Sagae

É escritor.

Rascunho