Nunca os inimigos estiveram tão próximos dos vilarejos. Pelo menos foi o que pensamos naquela manhã em que todos acordaram com um pequeno tumulto no meio da rua. Várias pessoas discutiam em voz alta, andando de um lado para o outro como se estivessem aflitas; outras permaneciam nas calçadas, mas se punham na ponta dos pés, a mão em pala sobre os olhos a mirar o infinito. De início pensei se tratar dos burros do correio que havia dias não chegavam com a correspondência, no entanto, quando vi que muitas já subiam nos telhados e árvores, convenci-me de que algo grave estava para acontecer. Vesti a calça por cima do pijama e saí ainda abotoando a camisa. Ao chegar à rua, também olhei na direção em que todos apontavam e não avistei nada, apenas as últimas casas, o cajueiro torto no meio da praça e tudo o que sempre ali estivera… e só depois de muito insistirem, foi que distingui lá no horizonte, quase se confundindo com umas nuvenzinhas, um filete de fumaça. A partir desse momento entendi melhor a apreensão dos nossos habitantes, pois eles havia muito tempo esperavam um inimigo que nossos antepassados juravam estar a caminho de cá, deslocando sua aldeia pouco a pouco em nossa direção.
Parecia ter chegado a hora do tão esperado confronto. Os que há décadas faziam tanta propaganda do inimigo eram os mais perdidos, andando feito baratas tontas, atordoados. Alguns mais práticos traçavam estratégias de guerra, formando comissões para cavar trincheiras e montar armadilhas nos arredores dos vilarejos. Mulheres foram encarregadas de armazenar mantimentos e arear as velhas espingardas enferrujadas; e até as crianças engajaram-se na espera do inimigo, bem mais por folia do que por estarem compreendendo tudo aquilo. Houve gente que se trancou em casa e famílias inteiras que simplesmente sumiram do povoado; estas foram esquecidas depois de acusadas de traição. Entretanto foi justamente um dos desertores amedrontados que nos poupou de mais alguns dias de medo (pânico seria definir melhor) no meio daquela imensa algazarra em que se transformaram nossas ruas. Ele inicialmente nos ajudou em tarefas mais simples, fazendo sempre questão de não se afastar demais da presença de todos; suava frio e tremia as mãos ao sinal do menor rebuliço. Porém, na manhã em que esclarecemos tudo, ele se ofereceu para realizar a mais corajosa missão, que era a de pôr armadilhas na beira do rio, distante bons quilômetros do centro de nosso povoado. Quando os outros que o acompanhavam retornaram no meio da tarde, notamos logo sua ausência. As perguntas foram inúteis: era mais um covarde que fugia da luta. Mas na manhã seguinte os sentinelas avistaram uma nuvem de poeira ao longe. Aos poucos fomos distinguindo os dois vultos. Para nossa surpresa, tratava-se do desertor que caminhava lado a lado com um indivíduo escanchado num jumento; depois de certo período de desconfiança nos convencemos (ao examinarmos o animal, a roupa colorida e os dentes de ouro do visitante) de que não eram, os acampados, os nossos tão sonhados inimigos. Aí então a alegria foi grande, esquecemo-nos de punir a covardia do desertor e nunca os ciganos foram tão bem recebidos pelos habitantes dos vilarejos.
Quanto a mim, não engoli direito essa história de ciganos rondando nossas fronteiras; aliás, eles sempre foram os maiores suspeitos, e, senão todos, sei que há espiões infiltrados entre eles. Esperam somente nos encontrar em situação desfavorável, descuidados de nossas defesas, para nos atacar sem pena… muito embora não seja esta a opinião dos daqui, pois apenas sentem um grande alívio por não terem que enfrentar os inimigos logo agora, tão próximo ao Natal e às festas de fim de ano.