Antes de Mohamed

Em “O enigma de Qaf”, Alberto Mussa desvela a magia do mundo pré-islâmico
Alberto Mussa: portas abertas para imagens de um povo que vê o mundo de maneira diversa
01/03/2005

(Antes de começar, é necessário dizer que não fiz nenhuma pesquisa, nem no Google, a respeito das inúmeras referências citadas em O enigma de Qaf. Preferi manter-me ignorante a respeito da autenticidade ou não de todas elas, para preservar a beleza do texto e a alegria de ler sem ter referências prévias, coisa que o tempo de leitura vai eliminando.)

Há muitos mundos desconhecidos aos cidadãos ocidentais, de origem basicamente católica — cristã, com preceitos morais fundados na lei romana e que habitam em sua maioria a Europa Ocidental e a América (essa poderia ter outros mundos, mas os índios foram praticamente dizimados, não puderam exercer uma influência tão grande). Esses mundos trazem outras histórias do mundo, outras narrativas a respeito de como os homens se tornaram homens, de como as paixões vingaram ou naufragaram, de como morreram sua gente comum e seus mitos. Hoje, por causa do Iraque e arredores, muito se fala do mundo islâmico. Pouca gente fala do mundo pré-islâmico, o conjunto de povos que viviam naquela região que compreende o crescente (o norte da África e o Oriente Médio) antes da revelação ao profeta Mohamed.

Aventurar-se por esses mundos é como ler As mil e uma noites sem conhecer nada do Islã, das Arábias e de seus costumes. É realmente explorar uma nova dimensão, com conceitos de moral e costume absolutamente diversos do que temos. Ler O enigma de Qaf, último trabalho do escritor Alberto Mussa e ganhador do Prêmio Casa de Américas deste ano, é pegar um guia de um outro planeta, assustadoramente semelhante ao nosso, mas absolutamente diferente.

O enigma de Qaf é ficção. Sua história começa com a história do autor, que está concluindo seus estudos em literatura pré-islâmica, e defende a existência e veracidade de um poema chamado Qafiya al-Qaf, título que se pode traduzir por “poema, cuja rima é a letra qaf, que trata da montanha chamada Qaf”. O autor toma conhecimento do poema por meio de seu avô, o velho Nagib, que costumava recitá-lo ao neto ainda criança. Depois que o avô morre, o autor reconstitui o poema, que narra a luta de al-Ghatash, guerreio-poeta e autor de Qafiya al-Qaf, para conquistar a bela Layla. O autor não tem dúvidas da autenticidade do poema, mas descobre ser o único entre os estudiosos da Idade da Ignorância, como os árabes chamam o período antes da revelação ao profeta, que acredita na existência de al-Ghatash.

Novamente, O enigma de Qaf é ficção. Mas a maneira como Mussa coloca seu relato nos faz confundir se estamos diante de uma obra de ficção ou de um relato histórico. Isso porque Mussa divide seu livro em três partes. Na principal, ele relata a história do poema e da luta para certificar a sua veracidade, a sua existência. Essa parte está dividida em vinte e oito capítulos, nomeados de acordo com as vinte e oito letras do alfabeto árabe. Entre eles há capítulos intermediários chamados de parâmetros e excursos. Os excursos têm como relação à história principal as origens de al-Ghatash no contexto da civilização pré-islâmica. Já os parâmetros são lendas de heróis árabes, todos eles poetas, que se comparam e defrontam com al-Ghatash.

(A propósito, segui a recomendação do autor de ler antes os capítulos principais para depois ler os acessórios. No meu caso, li após o principal os parâmetros e só então os excursos.)

Essa costura entre a imaginação de Mussa e a cultura árabe torna o romance uma peça dúbia, que, mesmo saibamos ser ficção, confunde-nos a ponto de acharmos aquilo verdade. Numa péssima comparação, é como o Código da Vinci, um livro com fundamentos sólidos na realidade, mas que desanda para a ficção (a comparação é péssima, pois o Código é mal escrito, é um roteiro de Hollywood; não que todo roteiro de Hollywood seja mal escrito).

E Mussa sabe do que fala. As imagens escolhidas por ele falam de um povo que vê o mundo de maneira diversa (o trecho do livro fala do momento em que Abdallah, talvez pai de al-Ghatash, é condenado. Se você conseguir ver o que os sábios viram para condená-lo pelo crime que ele iria cometer, cartas à redação). É a maneira de se vestir, de comer, de olhar o sexo oposto, de guerrear, uma honra diferente, uma escrita diferente, muito mais um exercício gráfico que uma escrita, enfim, um conjunto de elementos que mostram humanos como nós, mas semelhantes apenas na forma, e não no conteúdo.

As portas que se abrem com O enigma de Qaf são inúmeras. Basta ler com olhos de aprendiz e deixar-se seduzir pela magia de um mundo novo, baseado em um mundo real que reverencia até hoje os sete grandes poetas da cultura pré-islâmica. Al-Ghatash pode ter existido de verdade ou não. No entanto, desde que se tornou um personagem de livro, e um bom livro, faz diferença se ele existiu mesmo?

O autor — Alberto Mussa nasceu no Rio de Janeiro em 1961. É formado em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde também concluiu o mestrado. É autor de Elegbara (contos, 1997) e O trono da rainha Jinga (romance, 1999, prêmio da Biblioteca Nacional). Traduziu diversos contistas africanos e árabes para a revista Ficções e a coletânea de poemas pré-islâmicos denominada Al-Muallaqat (Os poemas suspensos), ainda inédita. É um dos convidados para o IV Festival Internacional de Literatura de Berlim.

O enigma de Qaf
Alberto Mussa
Record
268 págs.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

Rascunho