A toalha

Conto de Jádson Barros Neves
Ilustração: Marco Jacobsen
01/03/2005

Há muito tempo, pedi a um viajante que ia para a capital, que levasse a toalha e explicasse a você tudo o que sua mãe bordou nesse tecido gasto. Meu lápis é de carpintaria, você entende: sei contar histórias, mas não escrevê-las, e mesmo a ler só aprendi tardiamente, quando meus olhos já eram de pouca serventia. Conservei, porém, boa minha audição e aprendi palavras bonitas, formões brilhando ao sol. Talvez você ache infantis e até engraçados os desenhos, mas entender a toalha, o que sua mãe bordou nela, será de valia para descobrir o que se passou aqui.

Nas bordas, o pano tem cores vivas, brilhantes. É o centro que carrega a convulsão. Talvez você não acredite em nada, ou pense que sou apenas um velho caduco. O mais sensato seria esquecer isso de vez, deixando os fatos mergulhados no seu ar lendário, sei disso. O esquecimento é nossa maior virtude. Também ficamos adestrados no falar pouco e em nos espantar menos.

Eu poderia começar contando sobre o homem-besta esquecido pelos visitantes. Sua existência invisível e inquieta ainda me leva àqueles dias. Pelas madrugadas, ele fica gemendo entre uma casa e outra, nesses corredores úmidos, onde as crianças gostam de urinar. Permanece ali, insone, e como perturba meu sono seu gemido de criatura solitária! Fico consternado, mas nada posso fazer por ele, que acaba enxotado pelos cães.

Tudo começou após a última chuva de maio — está na toalha, em linhas cinzas, oblíquas, pois foi chuva de vento e veio deitada —, no dia do enterro do frade. Após o sepultamento, no início da noite, abandonamos o cemitério sob um céu ainda esponjoso e sumimos em nossas casinhas de barro e taquara, envenenados por um sentimento de orfandade.

Você tinha poucas semanas de vida e nos pedia mais cuidados que seus irmãos. Diziam que uma caixa de sapatos era o suficiente para você, mas improvisei um berço de jacarandá, algo que durasse muito tempo.

Sua mãe ainda estava de resguardo. Vim do enterro direto para casa. Matei um capão e pilei arroz para o dia seguinte. Na sala, à luz da candeia, desmontei e lubrifiquei minha espingarda. Anoiteceu muito rápido, uma escuridão intensa e sufocante.

Cedo, procurei dormir. E mergulhava naquele estado de dormência que antecede o sono, de músculos frouxos e pensamentos embaralhados, quando ouvi os cães correndo na rua. Latiam e uivavam. Corriam numa urgência cega, rápida, e unhavam as portas da casa. Depois dispararam em tropel. Em seguida, ouvi animais batendo inquietos contra as cercas do curral. Os cavalos assopravam e relinchavam. Pensei que algum bicho houvesse descido da serra e os estivesse assombrando.

Mas os galos também se desordenaram, tentando abrir um amanhecer prematuro, distante ainda, engravidando a noite de uma sensação de madrugada enlouquecida. Se muito, passavam das dez horas. A sonolência do resguardo fizera sua mãe adormecer rapidamente, mas eu permaneci atento ao barulho de tantos bichos na rua, preocupado com toda essa confusão atormentada. Seus irmãos, educados para serem curiosos e sem medo, acordaram e vieram para perto de mim.

Saí à porta da rua. Então vi lamparinas acesas nas outras casas. Voltei para a rede, pensando no que poderia estar acontecendo. Nos intervalos de silêncio, eu ouvia o choro de crianças nas casas vizinhas. Sua mãe criou uma casa com luzes na janela e muitas cabecinhas olhando para a rua, num cantinho da toalha. Eu disse para ela que não havia crianças olhando para a rua, que estavam agarradas às mães, chorando, mas ela me disse que podiam estar, sim, sobre tamboretes, diante das janelas abertas.

Acho que por causa da falsa segurança que a espingarda lhes dava, seus irmãos continuaram comigo na sala. Iam-se encostando um no outro, esquentando as costas, talvez buscassem derreter o medo que sentiam. Perto da madrugada, todos os galos clarinaram em coro. Foi algo medonho, para nós acostumados a ouvir um galo devolver o canto que outro lhe havia emprestado, passando-o de volta, de galo em galo, até chegar àquele que começou a cantoria.

Os cães voltaram a se abrir em tropel aturdido, e o gado a bater violento na madeira dos currais. Não lembro quanto tempo demorou toda essa agitação. Descrevendo essa noite, sua mãe pôs tudo em linhas escuras, próximas ao centro, e você pode ver um pouco do nervosismo dela, que furou o dedo na agulha, manchando o tecido de sangue.

Depois, tudo se aniquilou no silêncio. Um sossego tão profundo que podíamos ouvir até o ruído das lagartas comendo folhas. Mas depois até isso se apagou, e tivemos de tapar os ouvidos, por causa do silêncio dentro do silêncio, que nos desorientava. Não demorou muito, no entanto, e escutamos uma forte explosão no poente, deixando-nos ensurdecidos. Aí, as mulheres desmoronaram numa só gritaria. Choravam. Gritavam. Há o desenho de algumas com filhos enganchados nos quadris e de outras com a mão na cabeça e a boca se abrindo num grito assombroso. Mas todas vestidas de cores alegres, como nossas mulheres se vestiam.

Mais tarde, tudo se acalmou. Enfiei um cartucho na espingarda e saí para a rua. Uma névoa densa cobria todo o povoado. Pensei em ir até a casa em frente, mas temi me perder na volta. Imaginei que se tratava de um pesadelo, de um truque de minha visão, com tudo adormecido na neblina. Ouvi vozes de pessoas perdidas, chamando, buscando orientar-se através de gritos e assobios.

Fiquei muito tempo na soleira da porta, surdo às advertências de sua mãe, que me chamava para dentro, até que desisti de esperar por qualquer coisa e entrei e sentei-me no meio da sala. Acabei adormecendo na cadeira de balanço, esquecendo a porta aberta. Não sei quanto tempo dormi. Disseram que tentaram me acordar, para que eu fosse para a rede. Despertei de tarde, ainda sentado na cadeira. Pela porta, vi sombras esticadas na rua. Saí e vi as pessoas paradas, olhando para a serra.

Esse é o desenho mais demorado, mais triste, porque todos pareciam órfãos. E é isso mesmo o que você vê, depois de anos que sua mãe passou trabalhando nessa toalha, buscando na memória alheia o que contar, pois na nossa não havia tudo. Todos esses pontinhos esticados terminando num longo risco atrás eram a boa gente do nosso lugar. Descobri o que tinha acontecido, e mal sabia que era apenas o começo. É assim que começam tudo, com espetáculo e uma dose de terror inicial. Vi na serra o que eles haviam feito, e eu tentava imaginar o que a vida nos reservava. A vida, não o destino tecido por nós mesmos. Uma grande pedra rolara serra abaixo, abrindo na vegetação uma cicatriz semelhante a uma cruz.

Uma descoberta veio através de uma criança, como tantas coisas nos chegaram através das crianças naquele tempo. Um menino procurou por seu cachorro, mas não o encontrou. E outros meninos e caçadores procuraram inutilmente por seus cães. Então descobrimos que haviam desaparecido.

Devíamos ter aberto as portas para os cães, naquela noite, isso sim. Eu tinha talhado as portas das casas, bem sólidas, para que as pessoas se trancassem de noite. Mas descobri que portas servem apenas para interromper a luz, o vento, o pó das estrelas. Servem para fechar casas, tornar perdidos os homens. Servem para esconder as dores alheias, o silêncio alheio, embora dia e noite sejam comidas por cupins, até um dia ruírem. Uma porta aberta, uma ameaça; fechada, a proteção de uma pequena república. As pessoas gostam de portas, de todos os tipos, você sabe.

Alguém teve a idéia de irmos ver os bichos. A cena testemunhada era a mesma e repetia-se nas outras casas: deitados, com a cabeça enfiada entre as cercas, estavam os bois, mortos. Havia também cavalos baios, malhados, vermelhos, pretos, brancos, jogados como marionetes de arame e pano nos terreiros, entre galinhas endurecidas, galos carijós, garnisés, rolinhas de estimação e tudo quanto era pássaro com suas patinhas-graveto agarradas a nada.

Meu primeiro pensamento foi arrastar os animais dali, antes que começassem a apodrecer. E os amarramos com cordas e os tiramos. Trabalhamos iluminados por lamparinas, até que nada ficou daquele amontoado de carne conhecida, de bichos que atendiam por nomes humanos, tão amigos eram. Já anoitecera e nasciam as primeiras estrelas. Você deve lembrar aqueles nossos céus, inebriantes de tantas estrelas! Voltávamos para casa estafados, quando alguém gritou para os da frente:

— Ela está viiindo!!!

Virei-me. Vi a neblina pontilhada de luzes descendo da serra. Corremos, largando sandálias de couro, esfolando os pés nas pedras do calçamento. Olhei para trás e vi um rapaz caindo, justamente o que nos avisara. Caiu e ali ficou, e então algo que era maior que meu pavor fez com eu disparasse na frente de meus amigos e recolhesse seus irmãos do quintal, e os puxasse para dentro e trancasse a casa. Ficamos quietos, calados no escuro. Ouvimos o ruído da neblina passando, em seguida o refluir da calma, da paz.

Seu irmão abriu a janela e a casa se encheu de pirilampos. Sua irmã Helena, uma mocinha na época, pegou um luze-luze e esfregou-o no braço, provocando uma listra fosforescente. Posso dizer que nessa noite todas as crianças banharam-se de vaga-lumes. Dá gosto ver as crianças raiadas de amarelo na bruma sem brisa. No meio da rua, muitos pontinhos negros, na escuridão azulada pela névoa daquela noite, rodeados de vaga-lumes intermitentes. Uma criança ou outra surpreendida no pulo que dava para pegar algum pirilampo: essa é a cena que sua mãe bordou durante tardes seguidas enquanto todos estavam quietos em casa, fazendo a festa range-range da rede.

Vivíamos à espera de algo indefinível. Sentíamos falta dos cães, pois perdêramos nossos companheiros de caça, e nunca fui tão procurado para fazer mundéus para preás; laços para as raposas não apanharem nossas últimas galinhas; arapucas simples, de taquara, para as pombas divinas; arapucas grandes e pesadas, para cutias e macacos; fojos para os caititus; cepos para as aves, tudo quanto era armadilha que servisse para apanhar qualquer bicho.

À noite, não podíamos mais esperar. Proibiram-nos. De tarde, íamos à mata em busca de alguma caça. Eu queria muito uma noite sentado na rede, aguardando algum bicho. Tanta invenção para aqueles dias! Por enquanto, permitiam-nos caçar. Esperar, jamais. Tínhamos a liberdade de armar a espingarda num carreiro de caça, mas, se um tatu era abatido ainda cedo da noite, ninguém o tratava. O animal estufa rapidamente, até ficar redondo como um balão e solta um mau cheiro que impregna a carne e que nenhum fogo nem tempero consome.

De noite, eu ouvia os tatus-china passeando. Acordei uma manhã, olhei para a horta e vi um veado mateiro comendo alfaces. Passávamos até visgo nas árvores, para pegar passarinho cantante. Logo eles, que faziam a alegria do povoado! Ninguém soube quem havia imposto a ordem de não sairmos, mas sabíamos que ela existia. Disseram que havia sido um dos estranhos. Muitas vezes duvidávamos da existência dos visitantes, mesmo sabendo que estavam logo atrás da serra.

à noite, não arriscávamos sair de casa. Eu nutria minha rotina inventando armadilhas. Sob os olhares curiosos de seus irmãos, arqueei uma besta, tentando me emprestar mais valor, mais coragem, com tanta cerimônia ao redor de armadilhas e armas.

Uma casa que à noite se arrisca sem coragem de fogo é a nossa, você sabe. Talvez represente todas as casas do lugarejo. Representa a fúria, o medo, a dor. Nada podia fazer sua mãe, cuidando de você, tão pequena você era. Você é esse pontinho na toalha, os adultos distantes (pois nanismo se pega). E os adultos sempre diziam: “Tirem a menina do quintal, senão gavião carrega!”

O medo não foi o pior. Pior foi perder. Já estávamos acostumados à maioria dos acontecimentos. Foi numa noite sem lua que vimos as luzes pela primeira vez, na direção da serra. Olhamos, mas nada dissemos. Eram eles, os estranhos. Eu disse calado a seus irmãos, com mãos de vem-vem, que voltássemos para dentro.

Você se lembra de um bando de pardais voando, do barulho que fazem voando de repente? Assim veio outra vez a neblina, veio e passou, mas sentíamos que havia algo diferente nela. Quando acabou o ruído, proibi seus irmãos de abrirem as janelas. Escutei gritos nas outras casas, vozes nas ruas, bater de portas. E então, naquela maneira de correrem, escutei veados assoprando e parando, e os canastras em disparada, e rasga-mortalhas lançando seu grito curvo e sem freios no ar.

A manhã chegou de tarde, o dia estava invertido. Abri a porta e vi novamente as pessoas na rua, paradas sob um sol tépido, lançando sombras oblíquas nas paredes e na rua.

— Não peguem mais os vaga-lumes — avisaram. — Eles estão cegando.

Foi isso mesmo o que vi: pessoas cegas. A doença espalhou-se em silêncio, de casa em casa, fruto da curiosidade, porque alguém tinha aberto uma janela, uma porta, tinha esfregado fere-lume no corpo e depois coçado os olhos. A curiosidade de uma criança era o bastante para desfazer a visão, para borrar a vista. Mas a doença contaminava somente membros de uma mesma família. Na maioria das casas, apenas uma pessoa havia tocado nos insetos. Acreditei no que disseram, porque em casa ninguém havia segurado um pirilampo.

Cegueira estranha, que punha ouro no olhar das pessoas, tanta luz e nada viam. Protegi sua mãe e vocês como pude. Muita gente morreu de pequenos acidentes por esses dias. Caía-se numa privada, num poço aberto. Um tropeção, e a cabeça arrebentava nas pedras. Novamente as crianças ficaram proibidas de brincar na rua. E ninguém mesmo queria mais sair de casa. É assim que se dá: não nos tinham arrancado a mão, mas o corpo em si próprio estava enjaulado. Presos a nós, mas separados de nós. Você entende? Você sabe como são essas coisas: se a um empresta a mão, logo lhe pedirá o braço, e assim vão retraindo seu corpo. Foi o que fizeram comigo. Não sei como. O poder deles o fez, disseram anos depois. Mas era tarde demais. Era o fim.

Então tomei partido, tomei cor. Saí certa manhã e atravessei a serra. Vi no percurso ossadas de animais. A viagem demorou por causa de meu medo, maior que o trajeto. Um homem sente medo, tem de sentir medo. A coragem é para os fracos. Eu era forte e medroso. Havia muito que olhar no acampamento. Três galpões de madeira onde dormiam homens, casas com jardins, prostitutas, botequins, armazéns. Tão perto de nós, outro povoado! Como tiveram tempo de montar tudo aquilo, de um dia para outro? Quantas noites de claridade refletida acima da serra para montar aquilo? Você se lembra do riacho, da cor que adquiriu depois, uma cor de barro revolvido? Era azougue. Vi homens com grandes mangueiras despedaçando a terra, abrindo a serra, explodindo-a com dinamites — foi isso que derrubou a pedra.

Estive lá. Vi a tarde pelo meio e um homem alto, de chapéu de couro, diferente dos outros, sujos e encurvados, carregando sacos cheios de cascalho. Fui conversar com ele. O homem estava na frente da casa, cortando fumo. Cortava, mastigava, cuspia. Aproximei-me da cancela de madeira, olhei para ele, para uma mulher na cozinha, e então descobri sacos empilhados na sala. Um saco estava furado e deixava ver um pozinho dourado, que depois eu soube ser ouro.

— Preciso falar com o senhor… — fui dizendo, meio recuado.

— Se veio até aqui, é para falar.

O sangue atravessou minhas veias e jogou meu coração para cima, jogou-o na boca.

— Estamos passando fome lá no povoado. Nossos animais morreram. Algo que fizeram aqui desordenou a natureza e de vez em quando desce uma neblina cheia de vaga-lumes que deixa as pessoas cegas. Vim buscar remédio para a cegueira amarela.

O homem tirou os pés do peitoril da varanda, levantou-se e disse:

— O senhor é muito corajoso em vir aqui…

— Alguém tinha de vir.

— Logo tiraremos as máquinas. A cegueira se curará com o tempo.

— Precisamos voltar a caçar.

— As proibições foram para a espera, porque de noite suas espingardas podem assustar nossos homens.

— Mas vocês não nos deixam sossegados, com suas explosões.

Eu não disse mais nada. Num momento, pensei ouvir o ganido apagado de um cachorro. Pensei reconhecê-lo. Um foguete subiu no céu, estrondeou, e em seguida veio o silêncio. O cachorro calara-se. O homem deixou-me sozinho. Fiquei sem poder de voz. Outra porta se fechava. Se ali havia portas, era porque havia segredos, pensei assim como o frade me ensinara a pensar, anos antes de morrer. Ensinou-me tudo o que aprendi sobre palavras e como dizê-las.

Arrependi-me de ter ido lá, de ter costurado a boca da tarde com a linha da noite, como disse sua mãe. Perdi-me na estrada, na volta ao povoado. Olhando daquela entrada, vi apenas uma seqüência de casinhas trancadas. O silêncio agora também era enorme durante o dia. Até os passarinhos haviam sumido. Às vezes, ouvíamos um gavião. E só.

De algum canto de seus escuros baús, as mulheres sacaram rosários e rezavam todo fim de tarde. Com os olhos amarelos semicerrados, sussurravam suas preces.

Sua mãe desdobrava-se nas provisões que seus irmãos distribuíam de casa em casa: bolinho de mandioca, beiju, feijão, algum arroz, cuscuz. Esses meses de tanta tarefa terminaram por esgotá-la, e um dia ela adoeceu. Trancamo-nos em casa. Ouvíamos as pessoas tateando as paredes, ouvíamos seus chamados, ouvíamos sua fome. Nada podíamos fazer, embora sua irmã já fosse crescida e conhecesse todos os afazeres domésticos. Ficou em casa, preparando nossa comida e chás.

Certo dia, de madrugada, ouvimos um tropel de cavalos na rua. Sua irmã Helena levantou-se e abriu a porta. Reconheci a voz do estranho com quem eu conversara e as palavras de minha filha, ainda quase infantis. Contei para sua mãe o acontecido. Ela apenas me olhou e começou a chorar. Só isso. Só. No dia seguinte, sua mãe estava de pé, cuidando da casa.

Uma noite, enquanto as mulheres rezavam, apareceu um grupo de homens armados e queimaram todas as Bíblias. Eu retinha na memória várias passagens sagradas e depois ajudei as mulheres em suas novenas. Foi esse hábito antigo de falar o lido antes de lê-lo que me levou a mostrar os desígnios divinos para você. Não, você não se lembra. Tudo o que sei, tudo que aprendi, a leitura em minha vista fatigada como num quadro embaçado, tudo foi herança do frade. Na noite em que o estranho veio, li no rosto de Helena que algo vasto lhe ocorrera.

Um dia, o povoado acordou iluminado por um grande incêndio. Procurei por todos vocês, e dei por falta de sua irmã. Perguntei por ela a seu irmão Mábio, e ele me disse que a vira na tarde anterior, conversando com o estranho perto da cacimba. Saí. As pessoas olhavam para a serra, e então descobri o que olhavam. Não sei o que aconteceu, para terem de volta a visão; explicaram-me que o fogo havia consumido aquele amarelo do olhar. Até falaram em milagre.

Quando o incêndio acabou, descobrimos um homem vindo em nossa direção. Tivemos de deter as crianças, que lhe atiravam pedras. Estava descalço, era muito cabeludo, e tinha os pés tortos. Não falava. Tudo lhe vinha em forma de grunhidos, mas concluímos que era manso. Proibimos as crianças de maltratá-lo e passamos a deixar comida para ele nos lugares mais isolados. A partir desse dia, não o vimos mais. Sabíamos que estava vivo porque achávamos as vasilhas vazias e, de noite, costumávamos ouvi-lo por perto, muitas, muitas vezes.

Certa madrugada, escutamos um tropel alegre, vindo do poente. Saímos e contemplamos nossos cães correndo para nós. Algo lhes deve ter estragado o olfato, pois fomos nós que tivemos de procurá-los, abraçá-los. Custamos a perceber o que de pior havia acontecido: tinham desaprendido a latir. Nas noites de insônia, tentávamos imaginar o que acontecera aos cachorros. Mas nossa imaginação nunca alcançou a verdade de tudo. Encarregamos as crianças de os ensinarem a latir.

Em pouco tempo, a vida voltara a seu leito. O sumiço de Helena, no entanto, enchia sua mãe de silêncio. E ela foi ficando triste e pensativa. Evitávamos falar sobre a menina. Se fora raptada, ou se partira pela própria vontade, jamais saberíamos. Foi na época em que comprei pano, linha e agulha e, com a memória ainda fresca, pedi a sua mãe para contar numa toalha tudo o que nos tinha acontecido, e essa é a toalha que um dia pensei em mandar para você.

Foram dias felizes, e sua mãe desenhou com a linha um fiozinho embranquecido e ascendente. Eu perguntei o que era, e ela me disse que era fumaça de chaminé. Expliquei que aqui nunca houve chaminé. Ela desfez o desenho. Fiquei olhando para as mãos dela, depois de tantos anos, agora castigadas; ela mesma cheia de sulcos, de rugas.

Há alguns anos, recebi a notícia de sua morte, aí no convento.

Um dia, comprei um boi para trabalhar por mim. Durante anos, vaguei por esta casa: vocês todos, apenas em minha lembrança. Uma noite, acordei com fortes dores de cabeça. Fui encontrado caído na sala. Sua mãe cuidou de mim algum tempo. Depois, algo também aconteceu a ela, que a secou. Foi minguando, minguando, até começar a tossir sangue, e não viveu mais dois meses. Ela pôs na toalha esses últimos dias de nossas vidas. Está aí.

Mábio cresceu como todos os rapazes e, como todos os rapazes daqui, deixou o lugarejo. Há muito desaprendi a andar. Sinto quando movem meu corpo, as poucas mulheres que restaram por aqui fazem isso. Vejo-as, tento falar, mas a voz não vem. Não consigo tremer um músculo sequer. Nem consigo chorar. Há algo que parou, definitivamente, e meu corpo arde em carne viva. De vez em quando me sentam numa cadeira e me colocam no alpendre. Fico ali, olhando a rua, com olhos que não vêem. De noite, alguém se aproxima, olha-me, verifica se estou sujo ou com cheiro de urina e depois me deixa sozinho.

Jádson Barros Neves

Em 2001, o conto Fendas & flâmulas ficou em 1º lugar no Concurso Felippe D’Oliveira  e recebeu o prêmio Cidade de Fortaleza.

Rascunho