O perfil da literatura brasileira tem mudado radicalmente nos últimos vinte anos. Houve uma grande renovação de nomes (oriundos de toda parte do país), sinalizando uma extensa diversidade de temas e enfoques, o que tem ajudado a distanciar nossa ficção da influência de nomes que formaram grupos e movimentos no século passado, como o modernismo, o regionalismo e vanguardas que propuseram experimentos lingüísticos. Nos anos 60 e 70, tivemos um boom ficcional que propôs inovações estilísticas e de temas mais próximos da realidade nacional (leiam-se fome, miséria, desemprego, desajustes familiares, etc.), quando a ficção se aproximou das utopias da época e tentou dar vez e voz aos excluídos. Ainda há uma infinidade de autores exercitando essa segunda linha e se nos escusamos de mencioná-los é por temer eventuais omissões.
Neste começo de século é interessante perceber uma guinada nesse sentido, especialmente numa era em que os escritores começam a integrar o show business, ocupando mais espaços na mídia (episódio que ilustra bem isso foi o “fato” recente das três principais revistas do país concederem suas capas ao autor Paulo Coelho), algo antes bastante restrito. Não por acaso hoje se discute mais essa aproximação com o universo midiático que propriamente os seus textos. Ou seja, muitos escritores até são conhecidos, mas apenas uma ínfima parcela é realmente lida, a despeito de mais e mais novos escritores surgirem a cada dia.
Na edição de 3 de abril de 2005 do jornal O Estado de S. Paulo, o artista plástico Nuno Ramos, paulistano nascido em 1960, afirma: “Acho que o Brasil tenta sair de uma crise constitutiva que não é nunca nomeada: nossa literatura é pior do que já foi, nossa canção é pior do que já foi, nossa arquitetura é muito pior do que já foi. Atribuir isso, digamos, ao espírito do tempo (tudo piorou) não me parece verdadeiro e ainda que seja verdadeiro, não refresca nada. De certa forma, há um esforço silencioso, espalhado por toda parte, para não enunciar isso”. Mas, se vivemos numa era de aparente superficialidade midiática, de crise de conteúdo, de criatividade e de desrespeito estético, é importante que se diga também que os produtos culturais (livros, CDs, peças, filmes) começam a refletir sobre isso. Cada vez mais, eles registram a violência nossa de cada dia e dão voz a segmentos sexuais, raciais e regionais, diversificando atritos antes silenciados. Com isso, reconhecem que a crise existe e que deve ser exposta. Sendo assim, é interessante atentar que presenciamos não apenas uma literatura com crise de identidade e de criatividade, mas também uma literatura sobre a crise do sujeito contemporâneo, com seus males sociais e subjetivos de toda ordem.
É nesse contexto que surgem autores como o paulista Santiago Nazarian, 28 anos, que acaba de lançar o romance Feriado de mim mesmo. Pode-se até comparar este seu novo romance com o anterior, A morte sem nome (2004), apesar deste seu novo livro ser mais enxuto e menos complexo. Mas há sim elementos comuns entre eles e percebê-los é tentar ouvir o autor com seus temas, suas obsessões, suas insistências. Quais seriam os de Santiago? Sem filiações literárias claras, ele se insere nessa era de falência da ordem institucional e não se ancora mais no binômio antigo de exploração dos limites lingüísticos nem tampouco sociais. Em ambos os livros, há uma fina camada de crítica social, com um narrador onisciente irônico, às vezes cínico e, em geral, desencantado com o mundo. Em destaque, a visada comportamental e as (impossibilidades de) relações entre as pessoas com seus desencontros afetivos. Essa é a abordagem preferida, presente já em seu primeiro livro, Olívio, em que o autor deixava claro que não lhe interessavam enredos precisos nem as tais questões sociais.
Ainda em comum entre os dois livros de Santiago podemos encontrar a solidão dilacerante dos grandes centros urbanos, um certo desencanto com as relações humanas e desilusão no contato com o outro, sensações que vão se refletir numa indiferença com o futuro e num ceticismo que endurece e sufoca os sujeitos. Elementos que resultam num perverso automatismo e na constatação de falsa liberdade, a toda hora lembrada por personagens que não se conformam nem se encaixam nas engrenagens, leis e códigos sociais feitos para serem cumpridos. É dessa forma que um enorme sentimento de tédio perpassa seus dois últimos livros, em personagens beirando a apatia perante uma sucessão de fatos previsíveis — e agora, o que vai acontecer? Parecem se perguntar o tempo todo, antevendo a ansiedade e o desinteresse pelas próprias vidas. As desordens dos apartamentos e dos espaços em que transitam representam o caos da urbe contemporânea, conjugada com a solidão e a indiferença do salve-se quem puder das metrópoles.
Mas Feriado de mim mesmo parece ainda mais vigoroso e rigoroso que A morte sem nome. Talvez o que se cobre neste livro é a opção do autor por uma linguagem mais coloquial, o que alguns estão apontando como uma perda, isso porque grande parte do livro se volta para a descrição do cotidiano claustrofóbico do protagonista, o tradutor Daniel. Devido à linguagem adotada e como sabemos muito pouco da vida e do passado do personagem, alguns vêem o romance como um triller cinematográfico, possivelmente graças à informação veiculada que a história está sendo adaptada para o cinema. Mas a comparação pode soar infeliz porque Feriado de mim mesmo está escrito em linguagem literária e em nada indica, a despeito de sua objetividade, a intenção do autor em adaptá-lo para um longa-metragem. Acreditamos que a única justificativa plausível que aproxima o livro ao arquétipo do triller é a construção do suspense que lentamente se infiltra no apartamento de Daniel, que aparentemente mora sozinho e aos poucos começa a desconfiar de uma invasão.
A história é o relato angustiante do personagem diante dessa sensação de invasão. São recados deixados na secretária eletrônica, comidas que desaparecem, enfim, indícios que há sim um invasor em seu apartamento. As suspeitas só aumentam quando ele constata a existência de um certo Thomas Schimidt, mas que pode ser projeção de sua mente. Como tudo é incerto e impreciso no livro (lado a lado temos loucura, morte, sonho, delírio e solidão), o leitor pode se questionar até que ponto não se trata de uma obsessão ou psicose desencadeadas em virtude da solidão em que vive o personagem. E, de fato, a lassidão que toma conta dele (sobretudo no início da trama) aos poucos se confunde com alucinação e que vai, pouco a pouco, minando a sua (aparente) lucidez: “Voltou à cozinha, à louça, e não pôde deixar de se sentir um pouco melancólico. O feriado terminava, como mais um outro dia. Nada a comemorar, nada a acrescentar. Amanhã seria sexta e todos voltariam a trabalhar. Ele também, como todos os dias, como aquele, sem nada para separar os dias a não ser as noites. Sem nada para fazê-los especiais” (p. 33).
Ou tudo não passa de um sonho? Pode se perguntar o leitor quando o relato de Daniel beira a descrição de um estado onírico. Até o final, não se sabe se ele delira, escreve um livro ou descreve “fatos reais” que ocorrem. Ele, entretanto, acredita nisso a ponto de envenenar a comida na tentativa de desvendar “o mistério”, ou seja, flagrar o invasor: “Naquele apartamento tão silencioso. Naquela vida tão solitária, não havia espaço para mais ninguém, ele diria, por que Thomas Schimidt insistia? A verdade é que Thomas poderia ser apenas uma desculpa. Thomas poderia ser uma inconsciência de si mesmo. Era ele mesmo invadindo seu apartamento, para afastar a solidão, fugir do silêncio” (p. 100-1).
Uma visada crítica atenta não deve dispensar ainda a observação psicanalítica que pode servir como chave de compreensão do livro, tendo em visto o personagem e seu tédio, confirmando aqui a literatura de crise que vem sendo elaborada por diversos jovens autores de sua geração, em larga escala ambientada nos grandes centros. Perpassa em todo o livro a idéia do outro, ou melhor, do duplo que chega para ameaçar sua individualidade. No final, ao encarar este duplo, há um crime. Mata-se esse duplo, isto é, a imagem que ele não quer se deparar, daí o jogo de espelhos ser inevitável. No caso do livro isso não é figurado porque o crime ocorre com cacos de vidro do espelho.
Com Feriado de mim mesmo, Santiago Nazarian se desvencilha de algumas influências apontadas anteriormente em resenha publicada aqui no Rascunho sobre A morte sem nome, indicando sua maturidade no trato com a linguagem e colaborando ainda mais em fixar seu nome nas letras brasileiras contemporâneas.