Invenção de Giron perturba e seduz

Guida Fernanda Bittencourt realiza um manual de morte literária. Mostra como não se deve escrever uma crítica literária. Frígida culturamente até nos ossos, faltou enfrentar a voracidade das gavetas
Luis Antonio Giron: defesa voraz de Fabrício Carpinejar
01/04/2005

As gavetas são melhores leitoras do que Guida. Fazem ruído ao menos. Guida nem disso é capaz, não conhece voz própria. Nem sabe o que é literatura, indecisa entre espremer espinha ou coçar o nariz. Em seu pastiche (Manual da morte do tempo, Rascunho # 59, p. 11) contra Até nunca mais por enquanto, de Luís Antonio Giron, provou para o que não serve: a literatura, o jornalismo, a crítica. Não admito que o conjunto de contos que levou vinte anos para ser finalizado seja manchado pela indolência de um dia da resenhista. É de um acentuado mau gosto seu texto que fico pensando que o Rascunho anda aceitando qualquer coisa. Isso: qualquer coisa é a definição perfeita para Guida, que poderia ser Gilda, mas faltaram pernas. Ela avisa que o belo livro de contos de Giron não é ruim e nem bom, porém não deveria ser um livro. Se não merecia ser um livro, por que ela teimou em escrever sobre a inexistência? Simples: vaidade. Ela quer aparecer, pode mudar o título, o autor, a editora e estará sempre a falar de si, de seu abajur floreado, citando autores como se a crítica fosse um diário da princesa. Faz favor. Ah, Guida!

Começar uma suposta crítica com Carlos Drummond de Andrade, sem nexo com o assunto, e terminar com Osman Lins, sem nenhuma correlação com a obra do Giron, é matar tempo. Por que Guida não escreve um livro de citações? É o mais perto que pode chegar da originalidade. Sou orelhista da obra de Giron e ex-cronista do Rascunho (não admito participar mais de um suplemento que publica qualquer coisa) e não há como responder a crítica porque não houve crítica, houve irresponsabilidade, ataque gratuito e leviano (já aconteceu com Noll recentemente), desabafo infantil e primário, analfabetismo moral.

Guida não leu o livro e não gostou. Mas precisava escrever qualquer coisa no lugar e chamou Drummond, Osman Lins, Vinicius de Moraes, para ocupar espaço. Queria ver seu nome composto embaixo da linha de apoio. Confundiu jornalismo literário com colunismo social. Quem sabe o editor Rogério Pereira não coloca uma foto dela junto de seu nome? Ah, Rogério! Será a glória para Guida, acostumada a declarar somente que o livro presta ou não presta. Difícil pedir mais a ela. Ela apenas cumprimenta ou fala do tempo, como se falar do tempo fosse a sua maior invenção. Não é habilitada a dirigir duas idéias simultaneamente. Redige um prontuário médico sobre um livro e não menciona sequer um trecho, não exemplifica, não ilustra sua opinião com um fragmento, não orienta o percurso. Conclui sem justificar a conclusão. Tese, antítese e síntese não existem em seu vocabulário. É evidente que se evidenciasse parte do livro, perderia sua clientela. Seria desmoralizada no ato. Realiza toda uma página sobre uma obra apenas em função de sua citação (sic) e dedicatória (sic). Pode? O Rascunho defende que sim. É uma pena enxergar a decadência de um suplemento, que vira as costas ao discernimento, à crítica fundamentada e ao esclarecimento e não honra colunistas exemplares como José Castello, Nelson de Oliveira, Wilson Hideki Sagae, Eduardo Ferreira e Fernando Monteiro.

Guida atinge a desfaçatez de pensar no lugar do leitor, afirmando que ele não daria sinais durante a leitura do livro. Ah, Guida onipotente! O leitor não tem culpa de sua frigidez cultural. Se não consegue entender o livro, se emocionar com o livro, perceber o quanto de força e invenção há em Até nunca mais por enquanto, pede para alguém ler a história em voz alta. Sei que é difícil para quem não exercita os olhos folhear 204 páginas. O problema de Guida é a falta de gaveta, de vergonha. O silêncio constrange e ela grita para chamar atenção e sair do desespero e do tédio de suas convicções. Escreve sem ler uma segunda vez. Escreve sem escrever. Comenta que o livro usa fórmulas gastas. Então, quais são as fórmulas gastas? Por que ela não lista? É pedir demais. Insinua, não prova. Fofoca, não argumenta. Induz, não fundamenta. Não interpreta o livro, não pensa para o leitor, não pensa, arrisca alguns palpites emocionais e fugazes. É possível encontrar um bom verbete para Guida em Giron: “tenho certeza é desta mensagem a me ler pelas costas, que brinca por ser fórmula, sem particularizar para meu caso”. Ah!, não posso deixar de apontar o número da página, pois Guida não encontrará em sua falta de leitura. É a última, onde ela não alcançou em função do vazio terrível de suas idéias.

Ensimesmada, dobrada, colada na arrogância de aparecer custe o que custar. Comenta que “uma criança de 7 anos não acharia graça do livro de Giron”. É óbvio que não acharia, concordo pela primeira vez com Guida. Será que ela andou pegando por engano a obra na seção infantil, a que freqüenta. Estamos conversando sobre literatura adulta, Guida. Crianças no quarto! Corre, Guida, passou da hora. Uma das dificuldades de Guida é que não compreende o cinismo, a ironia, o humor inteligente de Luís Antonio Giron. Ela absorve tudo de uma forma literal. Leva tudo a sério, ao pé da letra. Não assimilou o exagero, o estado de graça verbal, o milagre das comparações inusitadas, o jogo metalingüístico. Imagino como deve ter sofrido para decifrar racionalmente e fazer tabuada de títulos de narrativas como Avestruz no vergel, Obstáculos Isolda, Tião, corvo e capeplufos e Nimbado de cloro. Em um desses contos de Giron, a personagem Cecília cai de um edifício depois de uma molecagem, e a irmã, também Cecília, conforta o narrador: “Vão consertá-la! É só trocar os amortecedores, os pára-choques… Os freios”. A construção é límpida, a mostrar a crença da menina na soluções de um desenho animado. O escritor emprega o artifício da fábula para simbolizar o desapego da imaginação. Não deixa de colocar uma censura no ato, expressa nos ‘freios’. Portanto, o autor não pretende escandalizar (não é violência pela violência), explora com inteligência a percepção surreal de qualquer menina, que reconhece a irmã como uma boneca. Ah, Guida!, há muita coerência literária no despropósito. Basta sair de si mesmo para entrar no mundo, coisa que raros conseguem. Por exemplo, Guida culpa Giron por erotizar Betty Boop para chocar. Desculpa, Guida, Betty não deve ser do seu tempo matado, de Balão Mágico, mas ela é erótica desde que nasceu. Ou aquele decote é por que faltou lápis? Giron apenas toca um ragtime para conquistá-la. Como fará com cada leitor que nasce durante o livro, não antes dele.

NOTA DO EDITOR: Ao contrário do que afirma Fabrício Carpinejar, o Rascunho não defende nada. O Rascunho é apenas um palco aberto para as discussões literárias (sejam elas importantes ou não), como faz mais uma vez agora, ao publicar esta resposta ao texto de Guida sobre o livro Até nunca mais por enquanto, de Luís Antonio Giron. É exatamente esta característica que faz o Rascunho chegar aos CINCO anos nesta edição, sem mostrar os traços de decadência apontados por Carpinejar. Basta uma passada de olhos nesta edição para comprovar o vigor que ainda mostra este jovem jornal. Em nenhum momento o Rascunho virou as costas ao discernimento, à crítica fundamentada e ao esclarecimento, como afirma Carpinejar do alto de sua cólera espumante contra um dos tantos colaboradores do Rascunho. Onde está a decadência, Carpinejar? No texto de Marcelo Pen sobre Paulo Coelho, no longo ensaio do professor Benito Rodriguez sobre Lima Barreto, no poema inédito de Affonso Romano de Sant’Anna, no texto de Paulo Polzonoff Jr. sobre Hamlet, na publicação de contos de autores sem espaço na grande imprensa? (Para citar apenas alguns exemplos desta edição). Compreendo e respeito o ímpeto de Carpinejar ao defender o amigo Giron. Em nenhum momento o Rascunho deixou de honrar seus bravos e abnegados colunistas e colaboradores. Uma pena que Carpinejar tenha utilizado este espaço mais para criticar Guida Fernanda Bittencourt do que para mostrar as qualidades literárias de Até nunca mais por enquanto. A raiva, quase sempre, embaça o olhar.

COROA DE FLORES NUNCA VAI CHEIRAR A FLOR

Fabrício Carpinejar*

Sempre fiquei intrigado com quem diz, com mais saliva do que dentes: eu não o leio porque não faz meu tipo. Ou eu não gosto dele porque é concretista. Aquele cara não presta porque é conservador, neo-romântico. Não fui com o jeito de pronunciar o efe daquele autor. As aparências enganam, mas a falta de aparência engana mais ainda.

Há centenas de tipos de letras, mas a maioria ainda continua a escolher a times new roman. Porque é a primeira que aparece. Os hábitos provocam o desaparecimento da personalidade, a rotina preserva a não-existência. Fazer tudo da mesma forma é um jeito quase seguro de não aparecer, de ser invisível.

A literatura não é uma religião, não há a figura de um padre ou pai-de-santo ou pastor ou rabino a seguir. É uma solidão dentro do nome. Mais desaforo do que elogio. Mais dúvida do que dogma. Estranheza em estado bruto, inadiável, que inverte a ordem do senso comum, cava contradições, fornece velocidade ao idioma, não é para enrolar, mas para dizer unicamente o necessário. Um bom livro não adormece, instaura a insônia da alegria, a euforia de ter encontrado a palavra certa para o que vivemos ou podemos viver. O poema, por exemplo, tem que ser simples, não simplório; rápido, não fácil; autêntico, não rebuscado.

Está se precipitando uma guerra pouco santa. Encalha-se no narcisismo desde a leitura. A criação apenas a amplifica. Acredito que se desaprendeu a ler para reafirmar a vaidade da autoria. Todo leitor se transforma em um escritor apressado, louco para se enxergar estampado na capa de alguma brochura. Ou seja, o leitor está mais interessado em escrever do que ler. E ler se converteu em escritura anônima. Segue-se uma receita, com a covardia em preparar o almoço de olho e acrescentar novos ingredientes. Nada disso seria problema, mas acaba-se não sabendo ler o que não é espelho, intimidando possibilidades de transgressão e aventuras na linguagem. O que não é espelho é rosto e muitos se apavoram em olhar de frente os olhos abertos que não os seus. Não se lê outros autores porque se está interessado unicamente em reiterar a identidade. Assim, ninguém lê ninguém, o autor somente se procura em cada livro e não valoriza o que difere de sua voz. Ao invés de multiplicar as diferenças, somam-se as subtrações. A megalomania na leitura gera mais crítica dentro da criação do que criação. Os livros passam a ser ensaios de como se escrever mais do que narrativas e poesias versando sobre o cotidiano. O que era para servir para entrar no mundo assumiu o caráter de fuga do mundo. Os escritores lêem escritores para se amar duas vezes, mergulhando em uma metalinguagem sem bilhete de volta. Esquecem que o público não está interessado em manuais de datilografia ou de poemas falando de poemas. Coroa de flores nunca vai cheirar a flor.

Não aprendi muito na literatura, mas algo me previno: eu não leio para repetir o que escrevo. Nem escrevo para repetir o que leio.

Fabrício Carpinejar

É jornalista e poeta. Autor de caixa de sapatos, entre outros.

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