Entrevista com o vampiro

Entrevista com Dalton Trevisan
01/05/2005

O vampiro mais famoso do Brasil nasceu em Curitiba, em 14 de junho de 1925, cidade na qual vive até hoje. Diplomou-se pela Faculdade de Direito do Paraná e fundou uma das revistas literárias mais importantes da década de 40, a Joaquim (em homenagem a todos os Joaquins do Brasil), recentemente reeditada em edição fac-similar pela Imprensa Oficial do Paraná. Seus primeiros contos, cujo neo-realismo extrapola o mero registro dos conflitos sociais, foram editados em folhetos que lembram muito a literatura de cordel. A partir de 1959, com a publicação das Novelas nada exemplares, a sua obra passou a ter repercussão nacional. Depois vieram Cemitério de elefantes (1964), Morte na praça (1964) e mais de duas dezenas de novos livros, sendo o mais recente Rita Ritinha Ritona, recém-publicado. Sobre a sua literatura a opinião é unânime: Dalton Jérson Trevisan é tido hoje, pelos principais críticos, como o maior contista vivo da língua portuguesa. Tal opinião encontrou a sua síntese no dizer de Alfredo Bosi: “Como todo verismo que nasce não do cuidado de documentar a realidade, mas da violenta tensão entre o sujeito e o mundo, a arte de Trevisan cruza o limiar do expressionismo, graças ao uso do grotesco, do sádico e do macabro, comum a tantos dos seus contos”. Dalton é famoso também por sua ojeriza à vida literária. Sempre se recusou a participar de sessões de autógrafos ou mesas-redondas, jamais aceitou dar entrevistas ou ser fotografado. Foi assim que ganhou a carinhosa alcunha de Vampiro de Curitiba, título de um de seus contos mais famosos. O que pouca gente sabe é que esse escritor não é o misantropo que aparenta ser. Muito pelo contrário. Hoje viúvo, o Vampiro tem inúmeros amigos entre a gente simples de Curitiba, cujo cotidiano entrelaça-se e se confunde com o da sua literatura. Ele costuma caminhar no mais antigo parque da cidade, o Passeio Público, em pleno centro, próximo à sua casa. Conversa com quase todo mundo na rua. Uma das confeitarias que freqüenta incluiu no cardápio a broa de fubá, um de seus pratos preferidos. Sobre a sua cidade natal, ele escreveu: “Fora dos meus livros, Curitiba não existe. Essa cidade é pura ficção. Se existisse, nela teria que existir outro Dalton Trevisan. E esse novo Dalton teria que fazer dia após dia o que eu faço até hoje: reinventá-la”. Diferentemente de seus personagens mais marcantes, Dalton não bebe, não fuma, não freqüenta prostíbulos. Seu único vício é o mesmo de Nabokov: o xadrez, que pratica de domingo a domingo no Clube de Xadrez de Curitiba ou sozinho em casa. A breve entrevista agora reproduzida, a primeira concedida pelo escritor após décadas de silêncio, só foi possível graças à paixão de Dalton por esse esporte. Ele com as brancas, eu com as pretas. O acordo era: se eu vencesse teria a minha entrevista, se perdesse pararia de assediá-lo.

• Sua recusa em dar entrevistas é devido à timidez ou puro jogo de marketing?
Não suporto responder perguntas. Detesto falar sobre os meus livros. Simplesmente porque perco a fala, paro de respirar. É verdade, sou arredio, sempre fui. Incuravelmente tímido. Um pouco menos com as loiras oxigenadas. Já está gravando?

• Já. Me conte como foi a sua infância?
Eu gostava muito de jogar futebol. Mas, apesar disso, estava sempre agarrado aos livros. Coisa de família. Meu avô escrevia, meu pai escrevia, meus dois tios escreviam, os primos escreviam.

• Como foram as relações com os seus pais?
Distantes. É. Havia certo distanciamento entre eles e os filhos. Meu pai, por timidez, minha mãe, por temperamento. Mas nós tínhamos muita liberdade. O que eu não aprendi nos livros, aprendi na rua. Apesar de meus pais serem católicos, não impuseram religião aos filhos. Na verdade, minha mãe era a falsa católica. Ela ia à missa aos domingos e pensava que tinha fé. Mas não tinha fé.

• Então sua infância foi feliz.
Só até o dia em que uma amiguinha foi atropelada. Isso me marcou muito. Nunca me esqueci, eu tinha seis anos. Foi o maior choque da minha vida. Há meia hora ela estava brincando com a gente. Depois minha mãe explicou que ela não ia voltar mais. Eu olhava para a bicicleta da minha amiga e não entendia. A menina tinha acabado pra sempre.

• Quais os livros que o marcaram?
Quando estudava Direito, lia muito Graciliano Ramos. Depois descobri o Newton Sampaio, que me mostrou outro caminho. O Newton foi o maior contista do Paraná. Morreu jovem, aos vinte e cinco. Hoje só leio Machado. Leio e releio. Não me interessam os outros.

• Você é um dos escritores mais lidos do Brasil, isso há décadas. Tem conseguido viver só dos direitos autorais?
Sim. Mas modestamente. Não tenho luxos. Sou solteiro. Não tenho escritório, nem secretária, nem vícios caros. Moro nesta casa há quarenta anos. Nunca foi reformada, como pode ver. Tem gente que acha que fiquei rico com os meus livros. Vêm aqui, torram a minha paciência, pedem dinheiro emprestado. Ficam espantados porque não moro numa cobertura com piscina. Já ganhei muito dinheiro. Mas queimei tudo. Com uísque, baralho e mulher. Principalmente com mulher. Isso quando era casado. Hoje não.

• Como conseguiu publicar seu primeiro livro?
Não foi difícil. O livro era muito ruim, por isso achei editor rapidinho. Foi bem antes da criação da Joaquim. Pouca gente conhece esse livro, Noites de insônia. Nessa época eu só escrevia poesia. Foi em 45 ou em 46, não me lembro. Procurei o crítico que eu mais admirava, o Temístocles Linhares. Eu estava angustiado. Queria que ele me dissesse se os poemas valiam alguma coisa. Ele leu e depois mandou o original ao José Olympio. Mandou sem me avisar. Uma noite, eu estava olhando a vitrine de uma livraria e levei o maior susto. O meu livro estava lá.

• Nas suas memórias, o escritor Jamil Snege, também curitibano, conta que você passou muito tempo recuperando e destruindo os exemplares dos seus primeiros livros.
Besteira. O Turco sempre foi de exagerar as coisas. Noventa por cento do que ele escreveu nesse livro é invenção. Nunca roubei meus próprios livros das bibliotecas. Muito menos da casa dos amigos, como ele disse. Eu pedia emprestado, isso sim. Não devolvia mais, queimava. Mas não roubava.

• Na Joaquim você certa vez escreveu: “Notícia policial, frase no ar, bula de remédio, pequeno anúncio, bilhete de suicida, seu fantasma no sótão, confidência de amigos, leitura de clássicos etc. O que não me contam eu escuto atrás da porta”.
Lastimável… Essa foi a primeira e a última vez que eu expliquei a minha literatura.

• O sucesso de uma obra depende de quê? De quem?
Do acaso. Do acidente. Nunca entendi direito isso. Não basta escrever bem. Não basta a qualidade. O sujeito tem que ter também muita sorte.

• Desde as coletâneas 234 e Ah, é? você optou pelo miniconto, pela concisão absoluta. Suas histórias hoje não têm mais do que dois ou três parágrafos, às vezes apenas poucas palavras. O que o levou a abandonar as narrativas mais longas?
Não acordei numa bela manhã decidido a optar por um estilo assim ou assado. Frito ou cozido. Essas coisas não acontecem desse jeito. Outra bobagem é quando chamam meus novos contos de haicais. Cretinice. Um jornalista escreveu que eu sou o maior haicaísta de Curitiba. Escreveu que Curitiba é a capital nacional do haicai. Citou o Leminski, a Alice Ruiz. Disse que eu sou o melhor de todos. Bobagem.

• Mas você já publicou muitos haicais. Só no livro Dinorá há quase trinta.
Calma lá. Não são haicais no sentido clássico. São só estripulias. São contos que parodiam o haicai japonês. São contos.

• São microcontos.
Voltei à poesia pelo caminho da economia. Cuido da palavra, da frase, do detalhe. Isso é mania de poeta. O prosador se preocupa com o enredo, com as personagens, com os grandes parágrafos. O poeta não. O poeta quer dizer muito com o mínimo. Coisa de chinês.

• Como você vê a literatura que está sendo feita hoje?
Não vejo, fiquei cego. Gosto dos poetas. Gosto dos poemas do Chico Alvim. Têm tudo a ver comigo. Os novos? Quase não leio. Não me interessa. A grande época da literatura brasileira já vai longe. Já passou. Foi na década de 30, na de 40, com os modernistas. Hoje escreve-se muito, publica-se muito, mas nada que valha a pena. Insignificâncias. Nada que se compare a Rosa, a Clarice, a Bandeira, a Drummond. Atualmente só leio do modernismo para trás.

• E os autores da sua geração? José J. Veiga, Osman Lins, Rubem Fonseca?
Dos três, só o Rubem ainda está vivo e escrevendo. Temos a mesma idade, oitentinha… Mas não leio. Desisti. Também desisti de tentar acompanhar a moçadinha que veio depois. Não vale a pena. Recebo muito livro, que deixo de lado. Dou de presente. Ou deixo no sebo dos amigos. Nem sei se devia dizer isso, porque vai ser finalmente publicado. Muita gente vai ficar magoada comigo.

• Hoje o sexo e a violência têm grande presença na literatura. Graças a você e ao Rubem Fonseca.
Mas os jovens não entenderam nada. Escrevem pornografia, quando deviam se dedicar ao erotismo. No mundo todo há a grande literatura erótica, que é bela. Nela o sexo é importante. A pornografia não me interessa. Nem a violência gratuita, banal. Não vamos misturar alhos com bugalhos, Machado com Eça.

• Você escreve à máquina ou no computador?
Escrevo à mão, depois datilografo. Não tenho e nunca terei computador.

• Há momentos ideais para escrever?
De madrugada. Nunca fui de dormir cedo, gosto do silêncio. Mas também, quando a idéia vem, anoto tudo em papelinhos. Isso acontece quando estou na rua. Ou no vegetariano onde almoço. Ou no supermercado. Meus melhores contos nasceram na fila do banco, tão cheia de Joões e Marias.

• Você escreve regularmente ou costuma trabalhar por turnos?
No início eu escrevia todos os dias. Escrevia com raiva. Religiosamente. Burocraticamente. Foi assim até A polaquinha, meu primeiro e único romance. Depois parei com essa mania. Só escrivão escreve todo dia. Só burocrata escreve com raiva, revolta, indignação. Hoje escrevo quando dá vontade, com ternura. Às vezes fico semanas sem pegar na caneta. É claro que com o passar do tempo vou ficando angustiado. Preocupado. Será que morri? Me apalpo, me cheiro. Não, ainda estou vivo. Ponho a cara pra fora da janela, escuto a cidade. Berro: “Estou pronto! Mova-se mundo”. Fico atento à gentinha no ponto de ônibus, no bar da esquina. Aí as idéias vêm aos montes. Até me assusto. Fico com o pêlo dos braços arrepiado.

• A crítica sempre tratou você muito bem. Quando você escreve se preocupa em não desapontá-la?
Quando escrevo me preocupo com muitas coisas. Mais com a posição das vírgulas e dos pontos do que com a crítica e os leitores. Quando escrevo eu penso em tudo. A maneira de pensar em tudo é que varia. Você sabe, todos sabem: minhas figurinhas são de carne e osso. Existem de verdade. Estão lá fora, trabalhando, comendo, dormindo. Às vezes sou ameaçado, porque fulano e beltrano não gostaram de se ver num conto meu. Então, fico sem aparecer na praça duas, três semanas. Isso me preocupa.

• Dos livros que escreveu qual é o seu predileto?
Rita Ritinha Ritona. Esse que a Record está lançando. Meu melhor livro é sempre o último que escrevi. Não gosto muito dos primeiros. Até há bem pouco tempo eu sempre reescrevia esses livros. Mas, como também detesto reler conto antigo, hoje em dia deixo tudo como está. Sou um revisor compulsivo, mas só até o livro ser publicado. Antes de mandar pra editora refaço dez, vinte vezes o mesmo conto. Não descanso nunca, é um inferno. Até publico alguns por conta própria.

• Os famosos caderninhos.
Os tais caderninhos. Os cordéis. De papel vagabundo mesmo. Papel de jornal. Mando aos amigos, deixo nas livrarias. Na do Chain, principalmente. Só para testar. Só para ver se os contos funcionam.

• Como você se vê como escritor. Conseguiria traçar seu auto-retrato?
De jeito nenhum. Eu jamais me vejo. Detesto espelhos.

• Como se sente dentro da literatura brasileira contemporânea?
Bastante isolado. Desconfortável. Não gosto de escritores. São vaidosos, pedantes. Me aborrecem as suas intriguinhas de província. Acham que merecem o Nobel. Também não gosto dos leitores. Pelo menos não dos mais fanáticos, dos imbecis que vêm me encher o saco. Querem conversar sobre os meus livros, querem autógrafos, querem escrever teses sobre mim. Odeio os professores de literatura, os críticos.

• Qual é o balanço desses sessenta anos de atividade literária?
Olha, quando era jovem, eu achava que era escritor. Um grande escritor. Um escritor bom pra caralho. Hoje eu acho que sou um modesto escritor. Aprendi isso com a vida. Não tenho a ilusão de ter realizado uma grande obra. Não mesmo. Fiz o que pude. Mas convenhamos… Não dá pra levar a sério os escritores que estão por aí. O pouco que eu fiz é muito, perto do nadinha que essa gente está fazendo.

• Eu soube que o atual presidente da ABL tentou convencer você a lançar a tua candidatura…
A morte, ela pode ser de três tipos: física, moral e espiritual. Física: um tiro no coração. Moral: uma autobiografia. Espiritual: a Academia Brasileira de Letras.

• Curitiba é mesmo invenção sua?
Curitiba foi a melhor coisa que já criei. É a melhor cidade da literatura latino-americana. Melhor do que Macondo. Melhor do que Comala. Melhor do que Santa Maria. Pena que não exista de verdade.

LEIA RESENHA DE RITA RITINHA RITONA

Notas

Newton Sampaio: contista curitibano (1913-1938), colaborador da revista Joaquim. Seus Contos reunidos saíram em 2001 pela Imprensa Oficial do Paraná.

Temístocles Linhares: crítico literário curitibano (1905-1993), autor de, entre outros livros, Introdução ao mundo do romance e O crítico do modernismo brasileiro.

Livraria do Chain: ponto de encontro da boemia literária de Curitiba, local onde Dalton Trevisan deixava seus cordéis e onde os fãs do Vampiro deixavam livros e cartas para ele.

Jamil Snege: escritor curitibano (1939-2003), autor de, entre outros títulos, O jardim, a tempestade (contos) e Como eu se fiz por si mesmo (memórias). Os amigos o chamavam de Turco.

Macondo, Comala e Santa Maria: cidades fictícias criadas respectivamente pelos escritores Gabriel García Márquez, Juan Rulfo e Juan Carlos Onetti.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho