A aporia do romance contemporâneo não está na concorrência dos meios audiovisuais que promovem a narratividade, mas em seu cerne mesmo. As experiências das vanguardas do século 20 como os romances de Joyce, Proust e Kafka renovaram a literatura, deram-lhe novo fôlego, permitiram que duas ou três gerações de grandes autores produzissem suas obras baseadas em descobertas (como o fluxo de consciência de Joyce) e resultados exitosos do ponto de vista narrativo. Uns se aproveitaram da viagem ao mundo interior, que Proust proporcionou. Outros da recuperação do absurdo promovido por Kafka, com seus mundos sem sentido, que tinham origens milenares e, até mesmo, do início da literatura, pois já estavam no maravilhoso das Mil e uma noites da literatura árabe ou da Odisséia e a Ilíada, de Homero, passando pelo fantástico do século 19. Escritores como Faulkner, Borges, Bioy Casares, Juan Rulfo, o grupo do nouveau-roman (Natalie Sarraute, Robbe-Grillet, Claude Simon, entre outros) e, no Brasil, o caso de Guimarães Rosa, puderam escrever suas obras tendo por base uma ruptura radical que foi sendo desenvolvida e adaptada a cada um dos escritores com suas idiossincrasias narrativas e seus pontos de vista estéticos.
Desta forma, o stream of counsciouness e o fragmento, as narrativas em primeira pessoa, mudança de foco e outras expressões se firmaram, passaram a não chocar mais e, inclusive, a ser usados pela literatura menos sofisticada e apreendida de forma fácil pelos novos leitores. Não causa mais estranheza, por exemplo, os períodos longos e descontínuos por vezes de Saramago com sua ausência de pontuação para marcar o final do discurso de um personagem e assinalar o de outro ou um mero ponto de interrogação que o leitor supõe existir onde está colocada apenas uma vírgula ou um ponto. Se Joyce poderia levar o romance para um beco sem saída com suas experiências, principalmente o Finnegans Wake, o romance também alargou as conquistas instrumentais e estéticas dos grandes autores do princípio do século 20 e inclui no seu repertório outros comportamentos narrativos interessantes como a experiência do nouveau-roman da abolição da psicologia do personagem e, como no caso de O inominável, de Beckett, a ausência de trama, carregando no personagem e na sua atuação quase ontológica como em Clarice Lispector. Alguns autores brasileiros, emparelhados com as experiências internacionais, também adotaram atitudes narrativas comuns na pós-modernidade como a chamada literatura do olhar, as já citadas ausências de psicologia do personagem e tramas incipientes. Agregou-se a isso um tipo de procedimento peculiar dos nossos romancistas como Bernardo Carvalho, Chico Buarque e João Gilberto Noll, por exemplo, que é, curiosamente, o espaço do estrangeiro. É o estrangeiro em seu aspecto físico — basta ver-se o nome dos livros desses autores como Mongólia, Budapeste ou Lorde (passado na Inglaterra). No fundo, é a sensação de estranheza — muito talvez parecida com o que buscavam os formalistas russos com seu “estranhamento”, que era visão da literatura como desvio da linguagem cotidiana. Aqui há desvio do espaço nacional. Não é propriamente fuga, evasão, porque os personagens estão no estrangeiro, mas se conectam com nossa realidade a partir de que seus corpos estão no Oriente ou na Europa, mas suas angústias nasceram aqui e permanecem brasileiramente neles no estrangeiro.
Mas há outro tipo de estrangeirismo: é aquele do personagem em sua própria terra. O personagem que estranha o mundo que está em volta que, talvez desde O estrangeiro, de Albert Camus, passou a ser uma constante na literatura universal. O homem passa a ser estrangeiro em seu país — na verdade, é estrangeiro no mundo. Não entende as regras do mundo. Elas lhe soam arbitrárias, quando não imorais. O personagem passa assim a comportar-se como um ser errante. É errância, junto com o estrangeirismo, uma maneira de estar e não estar no mundo. É o personagem que é estrangeiro mesmo entre seus pares. E, no mundo da pós-modernidade, ser estrangeiro é algo muito sério, já que a tendência é a participação em grupos, nos estilhaços do grande discurso moderno, o personagem passa a integrar as minorias étnicas, eróticas ou outro tipo qualquer de comportamento e origem. Ora, ao mesmo tempo em que o personagem passa, no romance contemporâneo, a pertencer a um grupo social minoritário e não mais, como no romance moderno, a ser o representante de uma classe social, como nos romances de Graciliano Ramos e nos outros autores do romance de 30, chegando mesmo nos personagens de Guimarães Rosa e seu sertão-mundo, o romance contemporâneo brasileiro vai em direção a uma diluição do personagem na grande cidade, perdida sua identidade de classe, vendo o que o cerca com desconfiança e sempre tem atrás de si uma autoridade repressora muitas vezes não identificada. Diria que a Clarice Lispector de A paixão segundo G.H. é que vai fazer a ponte, no Brasil, entre o romance moderno e o pós-moderno, e, principalmente, entre o personagem representante de classe para um personagem estrangeiro de si mesmo, ontologicamente se perguntando de sua origem, estranhando as possíveis parcerias e completamente descrente de um futuro promissor ou redentor. Este fenômeno ocorre mesmo em narrativas mais explicitamente sociais e voltadas para o exterior, como nas narrativas — conto e romance — de Rubem Fonseca. A melhor representatividade deste personagem de que me refiro está no longo conto A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro.
Outro dado curioso, que está muito explícito nos romances de Noll, é o da automutilação. Talvez a automutilação seja alegoria de um esfacelamento interior, de perda de membros e partes do corpo espiritual que se concretiza, na ação narrativa, no fato de os personagens se maltratarem, se flagelarem, se deixarem à míngua, sofrerem punitivamente a culpa. Os personagens das narrativas contemporâneas carregam um alto grau de culpabilidade. Novamente culpa advinda de uma transgressão que não sabem por que a cometeram ou, caso não tenham infringido nenhuma norma ou lei, acreditam-se punidos por um crime que não sabem qual foi. A origem desse personagem talvez venha, modernamente falando, de Kafka, de suas metamorfoses sofridas em nome de um “processo” ao qual eles não têm acesso ou desconhecem onde buscar a fonte que provoca a repressão e a punição.
O estrangeirismo e automutilação e o sentimento de culpa caminham juntos e juntos estão também no personagem verdadeiramente “estrangeiro” em nossa cultura. Se antes falamos do personagem que viaja ao exterior, do brasileiro que é estrangeiro em terras da Europa e da Ásia, agora vemos o imigrante que pouco apareceu na literatura brasileira. Um dos precursores deste personagem, debito ao judeu Samuel Rawet, que trouxe as angústias de um deslocamento cultural forte, imprevisível, demoníaco e errante para a narrativa brasileira. Creio que, embora tenham outras influências, o judeu Moacir Scliar e os árabes Milton Hatoum e Raduan Nassar entronizam uma temática que é muito cara a dois pensadores literários e sociais como Homi Bhabha e Edward Said: a condição humana de grupos ou seres deslocados de sua origem, o conflito de sobrevivência, adequação e inadequação na nova sociedade, a rejeição ou sentimento de rejeição do país que os acolheu, o sentimento maior de repartição e fragmentação de culturas que se mesclam, algumas vezes não se misturam, outras apontam para um conflito existencial.
Em Scliar, este personagem tende biblicamente ao maravilhoso ou ao realismo mágico e trágico; nos dois autores árabes temos imensamente um forte sentimento de culpa (Raduan) e de conflitos interiores e exteriores, partindo da comunidade da família, núcleo menor, à comunidade da sociedade amazonense, núcleo maior (Hatoum). Outro dado é a violência. Não existe apenas a violência do bandido, do marginal, como em Rubem Fonseca. Não é apenas a violência urbana: todos esses aspectos apontados iriam convergir para uma violência exterior (morte do Outro) e interior (penitência, mutilação, culpa). Há então uma violência social que é a de Rubem Fonseca e uma violência existencial que é a de Noll e outros, embora não se possa excluir a interioridade em Fonseca nem a exterioridade em Noll e outros. João Gilberto Noll ainda apresenta duas características que nele são mais fortes que em outros autores. Refiro-me à gratuidade das ações e mudança repentina do rumo da trama. Como o autor não está preocupado com a psicologia do personagem e influenciado por certa deambulação dos personagens de Samuel Beckett (e não pela sua não-ação ou sua inação de peças como Esperando Godot ou romance O inominável, mas pelo perambular, entre outras narrativas, do personagem de Molly), os câmbios de condução narrativa são muito fortes, ora o personagem está num bar, ora vai para a beira de um rio onde é maltratado, muda-se repentinamente, não como corte dos romances joyceanos ou faulknerianos, ou como nas narrativas de Manuel Puig, Vargas Llosa, Cabrera Infante e muitos outros. Aqui o corte não representa fragmentação e mudança de narrador. É o narrador, sem descontinuidade, que se desloca para os ambientes e confronta-se com outros personagens. É muito comum nessas narrativas o encontro no bar ou rua — pois o bar e a rua são espaços que recolhem o aleatório, ou seja, não há propósito determinado, além de beber e conversar (no caso do bar). Há espaços repressores da individualidade como o trabalho, de uso restrito, e que não favorece a gratuidade das ações que o bar e a rua proporcionam. Ora, se existe gratuidade nas ações, logo não precisam ser explicadas (nem no nível psicológico, nem no nível da verossimilhança). O grande perigo que este tipo de narrativa corre é desfazer a “suspensão da descrença” de Coleridge e gerar o inverossímil. Mas parece que os leitores de Noll não se incomodam com essas mudanças radicais. O personagem deambula, se automutila, muda de espaço físico e de ambiente (clima, atmosfera, etc.) sem maiores detalhes ou justificativas. É também uma herança do nouveau-roman que, raspando do personagem sua psicologia, o coloca à mercê dos fluxos e influxos das ações.