É bastante comum em nossa literatura acontecer de o enfoque sociológico sufocar o estético quando o ideal seria que este complementasse aquele. No romance A um passo, o leitor pode comprovar uma exceção à regra. Elvira Vigna, também artista plástica, se preocupa com a forma ao mesmo tempo em que subverte a previsibilidade da lógica corriqueira em cujo manual diz que a forma destrói o conteúdo. Longe de ser panfletária, livre do apelo sentimental mesmo com a covardia, a carência afetiva e a solidão em primeiro plano, a leitura permite a conclusão que o social não é prerrogativa do coletivo e tampouco a arte se faça questão particular. Personagens que são refúgios de contradições, solitários, buscam platéias para encenar sua cena dramática de emoção contida, embora sabedores que seus sofrimentos não podem ser compartilhados. Tentativa de ajuste, sempre impossível, de contas com o passado. Calma. Vingança não é a palavra mais adequada, ela sugere agressividade, enquanto neste A um passo o objetivo é se defender. A agressividade fica circunscrita aos movimentos internos dos personagens. O resultado é uma tensão concisa e nada previsível.
Em seu romance anterior, Coisas que os homens não entendem, Elvira Vigna nos apresentou Nita, a fotógrafa, narradora, enigmática e carismática (vivia com Eva em Nova York — homossexualismo?). No romance em questão, a protagonista é Nina (ou seria Tânia?), um reservatório de insatisfações e angústias, sem o menor carisma, uma protagonista banal, cuja consciência pouco vigorosa apaga a fronteira que separa o bem do mal. O homossexualismo fica por conta de P e Gringo. Entre Nita e Nina, algo mais denso e grave que a quase coincidência de seus nomes, crimes como referências para a interminável viagem rumo aos afetos impossíveis. Retornos às cidades de origem, contas a ajustar. Os dois livros são fartos em personagens nada ingênuos, mas que também não alcançam o status de malandros, o combate à opressão masculina, assassinatos perpetrados por algozes improváveis, a história que começa morna para logo depois engrenar até alcançar um final digno das melhores histórias policiais, coincidências ou receitas? Tanto faz. Tais características não desmerecem em nada a trama urdida pela autora, apenas comprovam o talento exigido para em tais circunstâncias produzir uma literatura com força de reflexão em que a estruturação narrativa e a gerência da linguagem legitimam a clarividência com que a autora invade os mundos de Coisas que os homens não entendem e A um passo. Elvira mantém o foco nas dificuldades (ou seria impossibilidade?) do relacionamento entre as pessoas apimentando com doses nada módicas de hipocrisia, violência e banalidades sem esquecer a frieza nas observações relativas ao sexo. Se em Coisas que.. os momentos felizes são escassos, agora somos levados a testemunhar a ausência desses instantes.
A um passo exige a cumplicidade incondicional do leitor tamanha a quantidade de sutilezas escondidas em suas 186 páginas, e caso a excessiva simplificação na orelha do livro incitar o leitor a ingressar numa provável história de vingança, não desista, não é só isso, não é bem assim. É muito mais. São a delicadeza e a sofisticação da escritora e artista plástica a serviço da rusticidade e da secura dos personagens urbanos que conduzem o leitor a um cenário minimalista e árido.
É a possibilidade de conviver com um narrador que vai conduzindo os personagens, feito um diretor de cinema orientando os atores.
“Ele está mudo na cama e você vai beber água mesmo sem sede porque nestas horas você também prefere ficar sozinha e o apartamento é pequeno e, além do banheiro apertado e mal-cheiroso, o único outro lugar em que você não precisa ficar vendo a cara dele é a cozinha. Então você vai para a cozinha e bebe água no copo que ele mantém na pia e nunca lava. E depois, com nojo, você limpa a boca com as costas da mão.”
É a tensão permanente, da lembrança da última aula de Nina com o Gringo ao suspense que ronda a cidadezinha que será inundada, conseqüência de uma represa, de Nina quase violentada pelo pai à vida dos becos, dos buracos, da agressão de Nina ao professor, da sua prisão e o custo da fuga, do bairro do centro, do marrom do chão da cidade pequena.
É o tempo psicológico, trabalhado com precisão pela inventiva romancista. O modo aparentemente anárquico de organizar os fios da tela, a correta e nada simples combinação das cores, o enredo não linear, onde os medos, a falta de esperança e a ausência de peculiaridades dos envolvidos fazem de A um passo muito mais que uma história de vingança, uma garantia de prosa leve, sedutora e irônica. Segredos, mistérios e misérias compõem a amarga calamidade do romance, peça emblemática da desintegração dos valores, existências em permanente conflito, terreno no qual ninguém pretende se arriscar a conhecer com detalhes a vida de quem quer que seja. A protagonista não é Nina, não é o Gringo, tampouco P, muito menos Gordo, o mistério gira em torno da solidão, nunca alegre, como um tango; e o sentimento predominante é o de incerteza. Esse tipo de narrativa, via de regra, conduz o autor a tropeçar nas redundâncias. Não é o caso de Elvira que mesmo preocupada com a forma artística não priva o leitor dos efeitos das idéias e das emoções. No caso as aparências enganam. Para melhor. Mas não aguarde o aparecimento triunfal do herói no desfecho da trama, desde o início a autora nos deu pistas da tragédia e o gênero não comporta a expectativa de um caráter elevado.
A um passo é um livro estranho. Na trama não se vislumbra o menor sentimento de culpa, muito menos de amor, carinho, amizade, o mais superficial exame do passado tenebroso dos personagens. Permite intuir um futuro sem muitas possibilidades, a prática humana é trágica. A esperança é o cachorro do cego.
Um livro estranho e fundamental. Talvez tenha me agradado tanto pelo simples fato de a única pessoa que talvez eu conheça bem também seja das mais estranhas. Então, o que dizer de um cara, um jornalista que gasta seus dias estudando e escrevendo sobre literatura, que ao pendurar no varal as roupas da filha nunca deixa de imaginá-la morta?