A Mãe

Conto de Cida Sepúlveda
Ilustração: Marco Jacobsen
01/05/2005

O menino chupa o dedo. A baba escorre pelo beiço, queixo, eixo. A mãe dorme um sono perigoso. Pai e filho ao lado dela. Se ela acordar, aliviam-se. Ela acendeu uma vela branca antes de adormecer. Escreveu a carta que ficou nos pés da cama. Eles observam o envelope lacrado. A chama da vela cresce, entorpece. O menino passa o dedo. A chama não quebra, nem o dedo queima. Ele se empolga, provoca o fogo, passa o dedo mais devagar, cada vez mais. E não se queima. O pai, pesaroso, esquece o menino e chama ela, pelo apelido, Nica, Nica. Sabe que ela volta, o médico garantiu, não há perigo. Mas só Deus sabe.

A casinha no meio da invernada, o rio fica a uma légua. Ela vai dia sim dia não lavar roupa. Leva bacia na cabeça e canta Lampião de Gás. O menino vai atrás, dedo na boca, cata pedra, quebra galho, saltita. Palito de dente, pau de virar tripa.

O que é tripa, mãe?

Bobo, tripa, sua barriga está cheia. Igual porco, é a barrigada, onde fica a bosta.

O menino pára na trilha. O capim gordura roça as cambitas, coça-se, arranha-se. As marcas das unhas são riscos brancos. Ele olha e se pergunta: de onde vem a cor?

Mãe, tripa fede?

Claro que fede, se furar fede. Anda moleque, chega de conversa, matraca!

O riacho é límpido. Chegam cedo. Ela ensaboa, bate, cora, enxágua. Ele a rodeia, a observa. Venera-a. É um menino, sempre menino. Ainda hoje.

O pai não sai de perto. Nem diz palavra. Pedro esquece a vela e se aproxima. Olha o pai de cima abaixo. Perscruta-lhe a expressão. Tenta adivinhar o inominável.

Pai, acorda ela!

Não, não pode!

Por que não, pai?

Porque se ela assustar, morre.

Assustar por quê, pai?

Porque acordar de repente assusta.

Chega bem perto dela. A cama é estreita, de madeira crua. O pai que fez. À mão e facão. Cruza as mãos atrás, ela o ensinou: para não tocá-la. Não lhe percebe a respiração. Os lábios estão arroxeados, a pele empalidecida. Vêm à mente histórias de fantasmas que ouviu no rádio. Encolhe o corpo esquálido como a escapar dos pensamentos. Vira-se para o pai, aturdido:

Pai, ela morreu?

Não, fio, não fale asneira.

Mas pai, pai, pai…

O pai se levanta, trôpego. Dá as costas e se retira.

Pai, aonde vai? Espera!

Pai não responde, não espera.

Pedro sente a mina explodir na menina dos olhos. Mina d’água, igual a do rio. Lambe as lágrimas e se pergunta, quem dá o sabor? Na quina da parede tem um oratório pendurado. Nossa Senhora Aparecida na porta, rosário entre os dedos, braços abertos. A única preta que a mãe gosta.

Salve rainha, mãe de misericórdia. Acorda, minha mãe, santa. Prometo nunca mais mostrar a língua para ela, pelas costas.

Você vai ser castigado se mostrar a língua para mim, por detrás. É pecado mortal, dizia a mãe.

Não mostro a língua.

Mentir é pecado.

Deus sabe se você mente ou não.

Como ele sabe?

Ele sabe tudo.

A madrugada cedia. A vela minava. A mina dos olhos secava. Encostou a cabeça na beira da cama, com cuidado. Para não bulir nos braços roliços, brancos da mãe. Um sono profundo o levou para florestas e fantasmas. A mãe e o pai moravam numa cabana. Eram criadores de cabras. Ele vivia de braços com os dois. Experimentou felicidade.

O ranger da porta o sobressaltou. O pai voltava com o latão de leite. Veio direto para o quarto e o viu assustado.

Que foi, moleque, viu fantasma?

Não, vi felicidade.

Que história, menino, não inventa!

A mãe respirava fundo. Voltara do desmaio sem acordar. Dormia. Um sono possível, não ameaçador. O pai guardou a carta. Não contou a verdade. A família insinuava daqui e dali — coisas do demônio. Pedro ouvia, via. A invernada o acolhia. Urubus o rondavam. Enterrava-se na areia. Sumia.

Cida Sepulveda

É escritora e professora. Autora de Coração marginal, entre outros.

Rascunho