Cecília

Conto de Cida Sepúlveda
Ilustração: Marco Jacobsen
01/05/2005

As lombrigas em forma de couve-flor no buraco da privada. O sol não entra. Não pensa. Mão na boca. Morde de anseio. Vestido de algodão, borboleta e pé no barro. Ferida na coxa. A mãe canta na cozinha. Magra de fome, bonita, dá pena. A mãe deu remédio e a barriga sumiu. Não se lembra de mais. Só a couve-flor não passa na garganta.

Crista de galo nasceu perto do portão. A mãe não gosta. É de um vermelho que não é. Dói de olhar. Dá vontade de conversar. Saber o segredo do encanto. Subiu na goiabeira. Escorregou e foi caindo, estrepando a barriga, tem cicatriz. A mãe disse bem-feito, pensa que é macaco.

Acorda com os galos, no frio, fogão de lenha, a marmita do pai. Rádio ligado. O mundo é a provocação da brasa. Tio Bepe vem visitar. Sentam em volta da mesa. Ele conta estórias, milagres e perigos. Na cama, o sono não vem. Escuta ruídos. Assombração atrapalha viver.

Leite de cabra, avó na janela, domingo aquece. A vida é um jogo de rostos. O pai no truco. Tio Bepe masca a língua — é nojento. Quem vê cara não vê coração. Por dentro, um monte de tripas, viu no livro. Por ali as lombrigas iam e vinham, a comida apodrecia. Por fora, a lesma. A mãe dizia, é uma lesma. No almoço mexia remexia a comida. Arroz feijão, carne moída com chuchu. Balançava a cadeira pra trás e pra frente. Cheia de mania.

Na casa do centro outras façanhas. Vender banana na rua. Dente podre na boca. O dentista da escola com a mão gigante e macia. Nasceu a irmãzinha, roxa de morte. O caixão branco no meio da sala. A mãe no hospital. A vida acordava tristeza. Dó da mãe.

Aprendeu a rezar no catecismo. As filhas de Maria umas chatas. Jesus, encanto, malícia de viver. O pai perdeu o emprego. Chegou arrasado. A casa custou a indenização, sem água e luz, sem forro. Chão de cimento. Vida se pega no laço.

A jabuticabeira na porta da cozinha crescia. Subia nela. O pai vendia porco e frango. No natal, a faca no coração do porco. O pescoço destroncado do frango. Festa e horror. O grito do porco insuportável. Corria para o portão, mãos nos ouvidos. O grito a alcançava. Mágoa.

O vento na cara. O vizinho de olhos verdes. Reza pai-nosso e ave-maria. O padre acaricia o rostinho — sagrado desejo. Meu pé de laranja lima e a pulga nas pernas. O cinema, uma caixa escura, medo e curiosidade. Pisava leve. O herói machucava dentro. Estranhava sentir.

A lua gemia. Gato e vaga-lume no quintal. Chegou já era madrugada. A mãe esperava, a cinta na mão, ódio no coração. Bateu na porta, a chave girou por dentro. Abriu, não viu ninguém, receou. Entrou. Três cintadas e labaredas nas faces. Chorou, chorava. Amava e odiava. Mãe e pai, mito e nostalgia. Pediu a Deus para morrer. A noite exultava. Não sabia doer na beleza.

Acordou ao meio-dia, vestiu camiseta e shorts, chinelas. Não comeu. Passou a pinguela, o rio da infância. Espuma de sapo na margem, pedregulhos e girinos, cheiro de merda. Correu, o pasto oprimia, deixou para trás, afundou na caminhada. Bem longe o areal, subiu, deitou-se, esperou os corvos. Morrer de areia, sol e urubu. Olhos no azul, nas nuvens. Se aparecesse um louco, tirava sua calcinha, arrebentava com ela. Castigo de Deus, mãe não se deve negar.

Desceu do areal num súbito. Correu, passou o pasto, ofegava, a pinguela, a viela. Deu com a carranca da mãe no quintal. Fechou-se no quarto, nó na garganta. No espelho, o rosto, transtorno. Fixou-se na imagem que, lenta, se transformou na imagem da mãe. Encostou a cara no espelho, queria entrar, arrancar a mãe. Arrancar-se dela. Instante depois se desprendeu da imagem, brusca. Caiu na cama e chorou até dormir.

Ele veio no cavalo mágico. Depois no retrato de formatura. Por fim, nas brigas cotidianas. O amor é ilusão. Acabou-se no verão. No inverno seria diferente. Outra beleza. A seiva que brota da ferida aduba raízes. Vestiu-se de roxo, seda, batom framboesa, a cidade cintilava.

Baile da primavera, rosas e begônias na praça. Meia-noite, a lua e o desejo de lobisomem. O futuro cedia. As cores da estação seduziam. A mãe mandou arrancar a jabuticabeira. Cecília dançava. O salão rosado e cerveja de graça. Seguiu o parceiro até o carro. Línguas aflitas.

Amanhecia quando voltou para casa. A pé. Não queria companhia. A ladeira esburacada. Os velhos no sono profundo. Entrou pé ante pé. Caiu na cama.

Vazia.

Cida Sepulveda

É escritora e professora. Autora de Coração marginal, entre outros.

Rascunho