Ensaio político

Da vontade de que a política fosse radicalmente diferente do que é
Domingos Pellegrini, autor de “Meninos no poder”
01/06/2005

O castigo dos homens honestos, que se recusam a participar da política, é ser governado pelos desonestos – Platão (esclareço de antemão que roubo a frase do livro, pois foi o autor a buscá-la, não eu)

A política pode não ser um assunto dos mais populares para a maior parte da população. Mas, quando alguém gosta de política, nada pode ser mais excitante do que um debate antes das eleições, que uma intriga palaciana expondo os podres dos adversários, que um plano de governo para a erradicação do pé-chato entre os que foram excluídos pela política econômica do governo anterior, e por aí vamos.

Talvez a política não tenha gerado bons escritores, talvez a literatura não tenha gerado bons políticos. Não sei se o José Sarney escritor veio antes ou depois do político, e não me interessa saber. Também não sei se é um bom escritor. Sei que não voto nele em hipótese alguma. No Peru, Mario Vargas Llosa tentou ser presidente, e não conseguiu. Com certeza, a literatura é eficaz em gerar livros sobre política, e com eles incomodar-nos, cutucar-nos, fazer-nos mexer a bunda da cadeira para evitar que o descalabro tome conta de tudo.

Assim é o novo livro de Domingos Pellegrini, Meninos no Poder. O momento não poderia ser mais propício. Enquanto a nação se choca com mais um escândalo político — dessa vez envolvendo o partido que se dizia formado por paladinos da ética, para gáudio de quem não gosta da esquerda —, Pellegrini cria uma história a respeito de um homem honesto que um dia é surpreendido por um convite inusitado: tornar-se prefeito. O coração de Caboré, o homem honesto, balança entre a vontade de ajudar seu município e o medo de sucumbir às pressões do poder. E assim vai, até o fim da campanha.

Caboré Pessoa é radialista numa cidade do interior (poderia ser qualquer uma, mas desconfio que seja Londrina (PR), cidade onde vive o autor, dada a menção a uma certa “bandeira municipal de quatro estrelas”) e comanda um dos programas mais populares do local, o Café com Caboré. Em seu programa, Caboré recebe gente simples e humilde e lhes empresta o microfone para que chorem suas pitangas. Caboré não promete nada, não dá nada, apenas usa seu vozeirão para reclamar junto com o povo. É a prefeitura que não põe médicos nos postos de saúde, que não tampa buracos de rua, enfim, um governo inoperante. Muito, mas muito parecido com a vida real.

A utopia de Pellegrini começa quando aparece na vida de Caboré o personagem chamado Ari Chimite. Ari, pai de origens árabes e mãe alemã, vem do nada e oferece a Caboré o cargo de prefeito numa chapa para as próximas eleições municipais, sendo ele próprio o candidato a vice-prefeito. De tão irreal, a proposta do loiro, a princípio, é rechaçada por Caboré. Mas toda a investigação prévia de Ari, mais sua convicção de que uma campanha política pode ser feita de outra maneira que não a tradicional — sem doações misteriosas, sem nota fiscal, com rios de dinheiro correndo não se sabe de onde para não se sabe quem — acabam por convencer Caboré que um outro mundo é possível.

Mas mesmo Pellegrini não está convencido de sua utopia. Ari Chimite mantém diversos segredos durante a campanha. Enquanto Caboré é a imagem pública da dupla, a honestidade e austeridade encarnadas, Ari Chimite se mexe nos bastidores para viabilizar a campanha. E aparecem carros, camisetas, adesivos, casa, apoio e dinheiro, muito dinheiro. Enfim, a utopia é irrealizável, uma campanha política tem seu lado podre, sim. E, pelo jeito, não há como não ter. Dinheiro elege, propostas não. O desfecho de Meninos no poder é até certo ponto surpreendente, uma declaração de crença de que um outro mundo é possível, apesar de todas as provas em contrário.

Engraçado que, para quem conhece Londrina, o personagem principal lembre em certos momentos Antônio Belinati, radialista e ex-prefeito de Londrina três ocasiões. Na prática, Belinati é o político mais polêmico de Londrina, por ter sido o primeiro da história a ser cassado e preso, por duas vezes. Nas duas últimas eleições, em 2004, ele perdeu para o candidato do PT local. Mas, afora o fato de ambos serem radialistas, nada é igual entre Belinati e Caboré, para a infelicidade de Londrina. Pellegrini foi secretário da Cultura na segunda administração de Belinati, entre 1989 e 1992. E o escritor conhece bem o tipo radialista-político. Além do trabalho com Belinati, ele participou da direção de criação da campanha do radialista Homero Barbosa Neto, na campanha municipal de 2000. Homero perdeu. Em 2002, porém, se elegeu deputado estadual.

Se na vida prática Pellegrini se aliou com personagens de que não gosto e em quem não confio (opinião absolutamente pessoal), na literatura ele é um idealista. Em maio de 2001, logo após ganhar seu segundo Jabuti com o livro O caso da Chácara Chão, o autor disse, em entrevista à Folha de São Paulo, que a sua literatura “se volta para as coisas que mais fazem falta neste país, como vergonha, honestidade, verdade, sinceridade, produtividade, qualidade. Enfim, os valores em ‘ade’, sem os quais todos os valores em ‘ão’, como eleição, revolução, tradição e renovação não dão em nada. Assim, como os valores em ‘ismo’ (socialismo, liberalismo, capitalismo) nada são sem os valores em ‘ade’”. Meninos no Poder é uma tentativa de tentar mostrar uma outra visão a respeito de algo que enoja qualquer pessoa que se interessa por política, que é a campanha eleitoral com suas infindáveis promessas e inencontráveis fontes de dinheiro.

Em O caso da Chácara Chão, Pellegrini já lidava com o tema da sociedade e seu mau funcionamento. Naquele livro, o protagonista principal é um escritor de livros infanto-juvenis que vive em uma chácara com sua amásia, a filha de dez anos do casal e o filho de 17 anos dela, além de duas cachorras, uma gata e muitas, mas muitas plantas. Em um domingo de Carnaval, a Chácara é invadida por uma dupla de drogados, um playboy viciado e um ex-policial, exemplo da corporação. Defendendo-se de um ataque a golpes de facão, o escritor vê-se depois acusado de um crime, em vez de ser vítima. O livro fala principalmente de como funciona a máquina policial e judiciária brasileira, de como a Justiça (aquela com “j” maiúsculo) está distante do que acontece em nossas vidas. Para Pellegrini, o Jabuti foi uma prova de que ele fazia o certo: uma literatura voltada para a ética.

Pessoalmente, prefiro Terra vermelha (Moderna, 1998) e Pensão Alto Paraná (Imprensa Oficial do Paraná, 2000). Nesses livros, Pellegrini se dedica a romancear a história da conquista do Norte Paranaense, da região de Londrina. A história real se funde com os personagens criados por Pellegrini, e formam, ambos, uma obra comparável a O tempo e o vento (Érico Veríssimo) e Crônicas do Grão-Pará (Márcio Souza), para citar outros dois autores que sabem mesclar ficção e história para contar histórias ainda melhor que a realidade.

Mesmo assim, Meninos no poder é um livro bacana. Talvez sirva até como um antídoto à podridão que emana de quase todos os palácios oficiais Brasil afora. Mas não o tome como remédio. Até que uma campanha verdadeiramente ética aconteça, o Brasil e os brasileiros precisam amadurecer muito. O messias que elegemos na última eleição parece dar sinais de estar cedendo à tentação. Mas o que quer um povo que precisa de messias?

Meninos no poder
Domingos Pellegrini
Record
300 págs.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

Rascunho