O dia do analista é hoje, mas não sei se vou.
Lembro-me de mim, diante do espelho, em 3l de dezembro de 97. Depois de percorrer toda a via-crúcis dos processos físico, biológico, psicológico e social, e de gastar quase todo o dinheiro que herdei de minha mãe, eu perdera, finalmente, aquela aparência dúbia que intrigava as pessoas antes de concluída a minha “machificação” (não sou uma mulher masculinizada, sou um macho). Esse era o meu sonho de menina, e que finalmente conseguira realizar.
Clarisse Andrews Machado só na carteira de identidade, que legalmente ainda não consegui alterar. Meu novo nome é Charles Andrews Machado, a despeito dos cartões de crédito, plano de saúde e documentos oficiais, que me constrangem a ser Clarisse.
Quando morrer, em vez de “saudades” ou de texto religioso, quero, em minha lápide, palavras de gratidão aos profissionais que me assistiram — urologista, psicólogo, cirurgião plástico — e, principalmente, minha ginecologista Fernanda, uma gauchona, amiga de fé que me apoiou quando tomei decisão tão difícil e radical.
Numa das minhas primeiras saídas depois de recuperado, até que dei sorte. Em 30 de abril de 98 (meu aniversário), conheci a Salete no Dama da Noite, na Lapa. Recém-chegada do Piauí, escorraçada pelo pai e abandonada pelo namorado casado que a engravidou, estava hospedada na casa da Teca, sua prima e velha conhecida minha, promotora de eventos como eu.
Gostei da menina e forcei uma aproximação, passando a freqüentar o apartamento da Rua Riachuelo. Convidava Salete para shows, cineminhas etc.
Desde os primeiros encontros, percebi que ela — morena bonitinha, 23 anos — sabia a verdade sobre mim. A discrição não era o forte da Teca. Naquela época, perto dos quarenta, eu não me iludia facilmente: Salete concordara em morarmos juntos, por necessidade. Sozinha na vida, grávida de três meses, sem trabalho nem escolaridade, o meu apê em Copa caiu mesmo do céu.
A gente formava uma família legal. Eu, pai de uma garotinha, indo à praia, visitando amigos, freqüentando festas de aniversário. E, com o tempo, acreditei, Salete se apaixonaria por mim.
Por que não? Impetuoso, romântico, um perfeito amante latino; sem modéstia, bom de cama. Tenho barba, pêlos no peito, pernas cabeludas e, graças à genética (minha bisavó era irlandesa), sou alto e ruivo. Bem, um pênis poderoso é pedir demais. Os trans femininos têm sorte: é mais fácil o médico forjar uma vagina, dando ao operado a conformação física de mulher, ainda que o infeliz tenha que passar trinta dias com um rolo de isopor enfiado numa cavidade criada, também, pela mágica da cirurgia plástica. Agora, fazer uma estrovenga, e funcionando, é coisa bem diferente.
Ora, mas para essa mecânica do sexo, de que as mulheres fazem tanta questão, tenho um apetrecho importado, da melhor qualidade, que nada fica a dever em textura e consistência aos que andam por aí. Melhor, até: não brocha nunca.
Tudo isso não impediu que eu fosse abandonado. Como no poema de Bandeira, minha mulherzinha, quando se apanhou de dentes tratados, roupas da moda, diploma do supletivo e emprego no shopping (que consegui com minhas amizades), optou pelo garotão da loja de artigos para surfistas, vizinha à sua. Foi embora levando Patrícia, a filhinha adotiva que aprendi a amar.
Quando não passo horas sem fim na internet, vou a espaços GLS em busca de companhia. Não gosto de guetos. Porém, mesmo querendo apenas contatos casuais, encontro cada vez mais dificuldades: para as lésbicas, não sou mulher; para os gays e as mulheres, não sou homem; para os homens, não sou mulher nem gay.
Bebo pouco e não me drogo. Odeio surubas, bacanais, libertinagem. Gostaria de me sentir socialmente aceitável, ter uma família careta, igualzinha à da minha casa — dia dos pais, dia das mães, dia da criança, vizinhos, cachorro. Ser marido e ser pai. Pensava que era simples, mas a Salete me ensinou que não é assim que a banda toca.
Por esse ideal de vida, mandei que me arrancassem os peitos, me extirpassem útero e ovários. Estou ficando careca, graças à testosterona. O que não aceito é ser uma piada, um pastiche.
— O que acha que posso fazer, doutor?
Eron Sveiter, psicanalista, autor do livro Problemas Existenciais nas Opções Sexuais Alternativas, olhou o relógio.
— Nós vamos descobrir juntos, Charles. Hoje, você me trouxe o que não pode fazer.
Não gostei da ênfase que ele deu ao “não”. Senti certa ironia nas palavras dele. Esses caras se acham uns fodões. A maioria é de enrustidos que invejam a coragem dos que ousam, como eu.
— O senhor está insinuando que estou arrependido. É isso?
— Isso quem está dizendo é você. Continuamos na sexta, à mesma hora, está bem assim?
É. Talvez não vá. Ontem, no Bar do Mineiro, em Santa Teresa, conheci a Verinha, uma viúva de Macaé. Vende produtos de beleza e está morando na casa do irmão. Levamos um papo maneiro. Ela detesta a cunhada e não sai de lá porque não pode com o aluguel. Não é jovem como a Salete, porém me acha o sujeito mais interessante dos que já conheceu aqui no Rio. Parece que está pintando um recomeço.