O primeiro monoteísmo da história (3)

01/09/2008

Quando Akhenaton foi descoberto, o mundo da egiptologia – ciência já organizada, desde meados do século passado, como um dos ramos mais atraentes da arqueologia – encheu-se de estupefação, internacionalmente. Não só por estar diante de um faraó desconhecido, o fundador de uma capital deslocada para longe de Mênfis e Tebas, uma cidade cheia de surpresas, mas pela figura que emergia dos relevos, das cenas murais pintadas e gravadas abundantemente, com a máxima originalidade e grande brilho de execução. As estátuas, estelas e objetos surgidos daquele lugar tinham uma marca própria, de frescor e certa urgência, sendo esse naturalismo e provisoriedade tão estranhos quanto o místico que ali orquestrara todas as “novidades” realmente inesperadas pelos padrões já canônicos da egyptiennerie há muito na moda.

“Estranho”, aqui, não quer dizer estranheza apenas no sentido da novidade em si mesma, mas diz respeito, literalmente, ao aspecto físico do rei descoberto naquele palco de acontecimentos que assombravam os modernos sábios. Howard Carter, o arqueólogo que se tornou “mundialmente famoso” (os clichês amenizam a escrita?) pelo achado do túmulo quase intacto do faraó Tutankhamon. Bem antes da sua “sensacional” descoberta de 1922, Carter trabalhara nas ruínas de Amarna, precisamente no Grande Templo – onde há muitas cenas da liturgia implantada na nova cidade – e o pesquisador deixaria relatado, mais tarde, seu desconcerto, muitas vezes, com relação às imagens de Akhenaton e de Nefertiti. Alguns dorsos, por exemplo, deixavam-no na plena dúvida se pertenciam ao rei ou à rainha, porque muitas peças incompletas, partidas da cabeça, pareciam sexualmente indiferenciadas – com a figura do rei aproximada à da esposa real, naquelas obras de arte tão magníficas quanto desconcertantes.

Face ao desconhecimento da trajetória real daquele soberano na direção de atos tão inesperados (como fazer surgir uma capital quase no meio do nada, num quadrilátero que lembra a forma do hieróglifo para “horizonte”), a estranheza aumentava diante da figura do faraó de rosto alongado, formas suaves, barriga saliente e ancas largas. O novo personagem, por sobre as surpresas da sua cidade, comunicava uma certa impressão até de deformidade… e o sentimento que se espalhou, na comunidade arqueológica, a partir de 1883, era igual ao desconforto de homens do mundo burguês ocidental que estivessem descobrindo a singular aventura de uma espécie de duende efeminado presidindo a um desvio, entre poeira e equívoco, num lugar remoto da margem oriental do Nilo.

Feira de altos estudos
A palavra “patologia” se insinuou na nova seção “amarniana” do club egiptológico, com seus estudiosos franceses, ingleses e alemães armando acampamentos nos vales e nas necrópoles, as barracas fornecidas de caixas de vinho importado e sombrinhas protetoras para as senhoras trazidas às escavações escaldantes a fim de admirar reis que elas jamais teriam defrontado, na etiqueta do mundo antigo. Múmias, túmulos, deuses e sábios, tudo era tão excitante, na fase pioneira da egiptologia, que é forçoso pensar numa feira de altos estudos, privada e refinada, levantando lonas de circo em lugares antigamente sagrados que todos pisavam com o espírito entusiasta da ciência positiva e dos espetáculos de magia e homens-elefante – além de boa bebida e comida quente, preparada nas cozinhas ambulantes que faziam parte das instalações de pesquisadores por conta própria e a serviço de museus cobiçosos.

É curioso se olhar – como se olha por uma janela do Cairo – para trás, e tentar rever essa idade pioneira dos Belzonis, com seus personagens por sua vez se movendo como numa parada científica, em aposta de quem chegaria primeiro aos despojos mais espetaculares. Desvendar o passado importava menos do que fazê-lo instrumento do espanto dos patrocinadores das pesquisas, dos leitores de jornal e dos clientes de antiguidades contrabandeadas do inventário dos achados dessa rapinagem oficializada através de alvarás e permissões compradas nas ante-salas das autoridades orientais – muçulmanas -, para as quais o mundo antigo não passava de uma idade de ignorância pagã, brutal, no meio do ouro… Na posse dos alvarás, os europeus se lançavam à disputa das ruínas alheias – enquanto não existiam sábios locais, no Egito, bem preparados para o estudo e a preservação do passado da região. Talvez esse passado não fosse precisamente o passado dos sudaneses, líbios e núbios que contribuíram, mais fortemente, para formar a atual raça “egípcia” – mas era o passado remoto do continente e da região deles, muito mais do que daqueles que chegavam pisando um palmo acima do chão, nos hotéis onde os poucos nativos herdeiros dos reis podiam ser vistos a abanar os leques para os europeus afogueados. Tal frase pode parecer injusta com um Auguste Mariette, por exemplo, se trouxermos à lembrança o episódio da Imperatriz Eugênia, que se encantou com a coleção egípcia levada para a exposição internacional de Paris, em 1867, por ordem do Pachá Said. Maravilhada, ela pediu toda a coleção ao Paxá… e este encaminhou o pedido a Mariette, que deu um jeito de nunca atender aos rogos da encantadora imperatriz dos franceses. Em momentos assim – e mesmo noutras circunstâncias menos folclóricas – é verdade que Mariette, Maspero e outros estudiosos fizeram mais pela preservação das ruínas e das antiguidades egípcias do que todos os Paxás Said, juntos, nas suas salas de madrepérola cravejada de rubis… mas nem por isso se pode olhar para os paternais sábios enviados do Ocidente com simpatia que desculpe todas as vezes em que se largaram para “invadir” os lugares do mundo antigo, não só fisicamente, mas com as idéias trazidas de Londres, Paris e Berlim, para serem coladas, quais etiquetas de moderna identificação, na Idade para sempre afastada de nós todos, estrangeiros e egípcios – e distanciada, recuada para onde só o silêncio e a areia sem mácula manifestariam verdadeiro respeito para com “o que ficou tão para trás”. (Aqui encontrarão poesia – essa irmã da História – quando se tratar de impaciência com relação às galochas típicas do ensaio, etc. Pelo que peço desculpas, sem desistir do pé leve num ou noutro verso de “recuo”.)

Síndrome
Mesmo em livro publicado há pouco de mais três décadas, ainda é possível encontrar um arqueólogo do renome de Cyril Aldred apelando à moderna medicina para diagnosticar “síndrome de Fröhlich” no faraó Akhenaton – do qual nunca foi achada a múmia e que, para Aldred, “não foi fiel às regras e pode escarnecer delas porque não era completamente são de espírito”, etc.

O espírito de Akhenaton consegue se defender, perfeitamente, pela própria luz que emana ainda – não me parece exagerado dizer do faraó monoteísta que inspirou um ensaio brilhante de Freud, um longo poema de Velimir Khlébnikov (o poeta de vanguarda mais significativo da literatura russa contemporânea – publicado um ano antes da revolução de 1917 – e que tem Akhenaton como a encarnação de um revolucionário), inspirou Daniel Rops e outros escritores, para não falar dos ensaios especializados que tomam o faraó como personagem de “apaixonados” estudos. Três mil anos depois da sua aventura mística (e política), no entanto cabe rejeitar o espaçoso conforto com que Aldred faz o seu “diagnóstico” médico-arqueológico, para tentar reencontrar o que se acha talvez perdido debaixo da rede da representação simbólica que aludia às sombras de mitos e funções teológicas figuradas no plano artístico-religioso indissociável de quase toda a arte do antigo Egito. Deve-se também levar em conta que, no período amarniano, não só o rei é representado segundo o mesmo gosto artístico, mas a rainha e toda a família real, além de dignitários e até funcionários menores são objeto do que nos parece uma “deformação” que já se anunciava, aliás, em obras bem anteriores.

Tome-se como exemplo a cabeça, em basalto negro, de Amenófis III, que se encontra no Museu de Brooklyn: ela foi feita no início do reinado do pai de Akhenaton, e podemos enxergar o prenúncio da arte amarniana na estilização dos traços do jovem soberano: os grandes olhos amendoados, o risco arqueado das sobrancelhas, os lábios grossos, de cantos revirados para cima, tudo isso faz pensar numa intenção que se dirige, já, para o abstrato, e que procura tornar a figura do rei mais “divina” por efeito de um estilo maneirista que estaria se insinuando na expressão artística egípcia, naquela época em que Amenófis III dava mostras de se inclinar pelo seu “universalismo”. Aqui temos um hábil governante que procurava as vantagens do relacionamento mais estreito com outras culturas, funcionando o Egito – conforme já vimos – como “pólo de atração” já firmado através das conquistas do Novo Império (e do comércio aberto aos povos vizinhos, etc.).

Exagero
Tal tendência se acentuaria no decorrer do reinado do pai de Akhenaton – cuja esposa principal, Tiyi, revela traços também curiosos (atribuídos, por muitos, à ascendência asiática) – e deve ter influído, diretamente, sobre o estilo artístico amarniano, até com certo exagero por parte dos artistas afinal liberados do antigo cânone hierático, com suas regras estritas no que dizia respeito principalmente às figuras reais.

Aqui foi o país da representação mágico-simbólica, por excelência. O caráter dessa representação, no Egito, parece ultrapassar a medida do de outras civilizações da idade pré-científica, porque a pessoa do rei era um “canal” de teologia afirmada na política, com a entidade do faraó sucessivamente assimilada às qualidades e atributos divinos, numa chave simbólica que nunca é precisamente aquela capaz de abrir o escrínio, o canopus perdido de cada cofre de surpresas que nos reserva a religião egípcia. Nossas ligações com os seus temas profundos, com o substrato das idéias que contém cada conjunto hieroglífico escrito, com sentido sagrado, num sarcófago perdido, estão para sempre cortadas, tão ou mais do que os nossos elos com uma natureza viva e “falando” por meio dos fenômenos daquele “abismo de cima”…

Assim, não há sérios motivos – de ordem científica – para se acreditar que o herdeiro do faraó Amenófis III (cujo primogênito, um príncipe chamado Thutmósis, morrera quando o faraó estava próximo dos quarenta anos), o segundo filho homem do Rei-Sol do Egito, o futuro Amenófis IV, não tivesse nascido uma criança como todas as outras, normal na constituição física e sã de espírito.

Esse herdeiro só viera a nascer quando o faraó certamente já devia estar se inquietando pela falta de um príncipe continuador da sua linhagem – e a alegria pela sua vinda ainda nos comunica o júbilo, no palácio de Malqata, em Tebas, por volta de 1360 a.C., quando Akhenaton nasceu, certamente sadio.

Pelo que conhecemos do rosto da mãe, a rainha Tiyi, a mãe é de forte temperamento – e, tudo o indica, influenciará o filho do mesmo modo como já apoiara o marido em algumas das discretas originalidades de Amenófis III. Escaravelhos comemorativos dos primeiros anos do reinado deste faraó, apresentam Tiyi sem os títulos de nobreza que seria da praxe enumerar, ao se mencionar o nome dos seus pais, Youya e Touyou – o que reforça a tese segundo a qual Akhenaton foi educado por uma mãe não-nativa, casada com nada menos que o “Luiz XIV” da Casa Real, nobilíssima, dos Amenófis do Egito.

Belo enigma
E há uma provável nova estrangeira para aumentar as influências externas sobre o espírito do príncipe e futuro rei: é uma mulher que se torna rainha com dez ou onze anos, ao desposar um faraó de doze ou treze anos, como era a prática naquela época. Seu nome – de mulher bela e perdida em algum enigma do qual se partiu o fio de meada antigo – será para sempre associado ao do rei Akhenaton, significando, exatamente, A-Bela-Chegou.

Ou – na língua egípcia – Nefertiti.

Esse nome não era, de modo algum, um nome raro no Egito. Pelo contrário, Nefer-titi (“A-Bela-Chegou”) queria dizer exatamente isso: a beleza reconhecida, a evidência do milagre e da maravilha numa não necessariamente “estrangeira”. A língua egípcia tinha recursos insuspeitados, e aqui estamos diante do som de um nome antigo que aponta para fora e para dentro, para a beleza procedente do exterior ou aparentada com estrangeiros (ou a eles associada)… mas que também sinaliza a descoberta daquela beleza que não é apenas o espelho que revela – porque é uma beleza que precisaria “chegar”, ser reconhecida, receber homenagens (para ser ainda mais bela).

A filha de Tushratta, rei de Mitanni, uma princesa chamada Taduhepa, no seu país, é anunciada com o nome egípcio “Nefertiti” – antes mesmo de chegar à corte do Nilo, enviada para contrair núpcias com o velho faraó Amenófis III, quando este dividia o trono, na co-regência de Akhenaton. Taduhepa não é mais referida em qualquer outro contexto – e talvez tenha morrido antes de sumir no quase anonimato do harém do terceiro Amenófis, cheio de princesas estrangeiras. Duas vezes esquecida – como Taduhepa e como Nefertiti – aqui reaparece somente como um som entre os sicômoros, uma sombra, uma viagem e um nome anunciado para ser, em seguida, engolido pelo vento norte.

A outra Nefertiti, no entanto, viajou da sombra para penetrar na alma do nosso tempo – onde seu nome se inscreveu num imaginário que foi da arqueologia ao sabonete Eucalol. Sua imagem é a mais difundida, suponho, depois da máscara de ouro que os turistas admiram. É uma rainha nas camisetas, nos bottoms, uma estrela de Luxor, uma fantasia num álbum de figuras: Nefertiti, parecida-com-Nefertiti, uma Monalisa egípcia num televisex que a internet difunde, a rainha que dez entre nove estrelas preferem, como se pode preferir o Egito que o Egito inverte em cenário de colorida cartolina. Onde, entretanto, a real Nefertiti?

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Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

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