Religião nacional, capaz de operar o milagre do encontro de classes e culturas, o futebol tem merecido ao longo dos anos incursões literárias, tanto na crônica esportiva, quanto na ficção, ainda que neste gênero sejam raros os romances que o tematizam. Inúmeros são os autores que deixaram pérolas sobre o mundo da bola e dos gramados, impressas em textos memoráveis na imprensa.
Alguns dos mais importantes escritores brasileiros, entre os quais Antônio de Alcântara Machado, Armando Nogueira, Carlos Drummond de Andrade, Edilberto Coutinho, Mário Filho, Nelson Rodrigues, Roberto Drummond, João Antonio, Sérgio Sant’Anna e João Batista Melo escreveram sobre essa paixão que transformou o Brasil numa “pátria em chuteiras”. Outros, no terreno da biografia, do ensaio, do teatro ou em coletâneas publicaram obras referenciais, como João Saldanha, em Subterrâneos do futebol, Ruy Castro, com Estrela solitária, sobre a vida de Garrincha, Flávio Moreira da Costa e a escalação de Onze em campo e um banco de primeira, Nelson Motta no comando de Brasil F.C., Vanderlei Pequeno Cardoso relatando 50 casos do nosso futebol, Oduvaldo Vianna Filho encenando o espetáculo Chapetuba Futebol Clube e o recente Segunda divisão, da jornalista Clara Arreguy, novela que tem como pano de fundo uma decisão do campeonato brasileiro da série B.
Um novo livro, que por meio da ficção e da memória, traduz a visão de diversos autores sobre o futebol brasileiro, desde a pelada de várzea até os grandes campeonatos dos times de elite, acaba de ser publicado, reunindo histórias colhidas nesse mundo mítico que povoa a consciência coletiva. Trata-se de Contos brasileiros de futebol, organizado pelo escritor, crítico e ensaísta baiano Cyro de Mattos. A obra escalou 19 craques da moderna prosa contemporânea, entre eles Hélio Pólvora, Salim Miguel, Moacir Japiassu, Caio Porfírio Carneiro, Duílio Gomes, Lourenço Cazarré, Renard Perez, Antonio Barreto e Deonísio da Silva.
Com seus olhares distintos — ora pungentes, sobre a frustração e a angústia de derrotas inesquecíveis, ora poéticos, sobre momentos de epifania e vibração em vitórias consagradoras —, esses autores reproduzem com fidelidade a profunda relação da vida brasileira com o futebol. São contos que captam a psicologia dos jogadores, as artimanhas dos cartolas, as rivalidades dos torcedores, a guerra enfrentada pelos juízes durante a arbitragem, as revanches das equipes, revelando o cotidiano apaixonado e envolvente do universo da bola e dos gramados, em que convivem talento e arte, muitas vezes levados ao paroxismo.
Contos brasileiros de futebol traça um nítido perfil dos sentimentos que habitam o coração do brasileiro quando entra em campo com seu time e seus sonhos, despojado de outras necessidades materiais e abstraído do dia-a-dia, para mergulhar no terreno mítico das disputas, de onde parece tirar força para viver. São histórias profundamente humanas, calcadas numa realidade da vida: o jogo pela sobrevivência. Dentro ou fora das quatro linhas, o futebol é o terreno da catarse nacional, que em tantos desperta amor e ódio. Nesse trabalho que une a bola às letras, Cyro de Mattos, mostra “uma das faces da alma brasileira”. E o cenário futebolístico, de tantos mitos e magia, inspirou Albert Camus, um campeão da literatura mundial, que traduziu sem pieguice a sua vinculação com o nosso próprio destino: “Depois de muitos anos em que o mundo me ofereceu tantos espetáculos, o que finalmente eu mais sei sobre a moral e as obrigações dos homens, devo-o ao futebol”.