No inferno de Hatoum

Para o autor amazonense, idéia geral de seu terceiro romance, “Cinzas do norte”, está focada na tensão entre “permanência e fuga”
Milton Hatoum: “a percepção do outro”.
01/09/2005

Cinzas do norte é um romance sobre perdedores, fracassados e ineptos. Sobre desilusão e a falta absoluta de ilusão — difícil dizer qual das duas é a pior. Ele começa na Manaus dos anos 1950, quando Raimundo (Mundo) e Olavo (Lavo) se conhecem na rotina do colégio local, e se desenrola sobre a relação dos amigos até o início dos anos 1980.

Mundo é um desenhista talentoso que sonha em se tornar artista. Mesmo sem idade suficiente para entender as agruras da vida, age como um sofredor, um incompreendido. Na escola, é o aluno esquisito. Tem uma relação complicada com o pai rico e agricultor, Trajano Mattoso, capacho dos militares cujo projeto pessoal é civilizar o Amazonas. Mundo vive para sua arte e para a mãe, Alícia, mulher que casou por conveniência e não esconde a insatisfação com a vida do norte. Por ela, viveria no apartamento da família no Rio de Janeiro.

Jogadora viciada, Alicia tem uma queda por bebidas alcoólicas e por Ranulfo, o tio Ran. Ele, um beberrão bon vivant, e a irmã, a costureira obstinada Ramira, foram responsáveis pela criação de Lavo, órfão de pai e mãe.

A prosa de Milton Hatoum tem o ritmo de um filme de Jean-Pierre e Luc Dardenne, os irmãos belgas responsáveis por Rosetta (Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1999), O filho — único disponível em DVD no Brasil  — e O menino. A reação mais comum às quase duas horas de O filho, sobretudo quando a pessoa encara a tarefa sem saber do que se trata, é de indiferença ou, na pior das hipóteses, de tédio. É o tipo de filme em que “nada acontece”. Quer dizer, não há explosões, perseguições de carro ou salvamentos espetaculares. A história procura retratar a vida como tal, listando silêncios, frustrações e rotinas pouco estimulantes. Carpinteiro que trabalha em um centro de reabilitação, ensinando a profissão para jovens desajustados, descobre que um dos delinqüentes é o menino que matou seu filho — fato que botou fim em seu casamento. O filme é, basicamente, o dia-a-dia na oficina. Essa situação em que o ódio e a compaixão do pai pelo assassino se alternam sem nunca resultar em atos não pode ser confundida com “nada”. Ela abre possibilidades para tudo.

Quando os sentimentos são apenas insinuados, a arte chega muito perto da vida. É raro uma pessoa não gostar de outra e dizer isso ao desafeto sem meias palavras. Admitir que se gosta de alguém pode ser igualmente difícil. Na vida, é normal as coisas não serem ditas. Elas precisam ser percebidas. Se isso for “nada acontecer”, em Cinzas do norte também, nada acontece.

Lavo é uma espécie de parasita que vive por meio de Mundo. Quando cresce, se torna um advogado medíocre com vocação para ajudar almas esquecidas atrás das grades. “Mundo sabia que dificilmente eu sairia de Manaus; nas cartas que lhe enviei, insisti nesse assunto, dizendo que minha cidade era minha sina, que eu tinha medo de ir embora, e mais forte que o medo era o desejo de ficar, ilhado, enredado na rotina de um trabalho sem ambição.”

Nos seus 20 e poucos anos, Mundo cai no mundo, vive em Berlim e em Londres, e se revela um artista medíocre que morre sem nunca ter feito uma exposição. É uma figura patética, filhinho-de-mamãe que, quando ainda vivia no Amazonas, criou uma instalação risível no condomínio de casas populares Novo Eldorado. A obra, intitulada Campo de cruzes, levou o artista e o tio Ran — com quem passou a se corresponder em cartas que intercalam os capítulos do livro — a arrumarem cruzes em frente às construções, a fim de fazer uma crítica ao governo. A cidade era administrada pelo coronel-prefeito Zanda, despreparado como costumam ser os governantes brasileiros.

Revoltado contra o regime militar, Mundo é pupilo do artista plástico Alduíno Arana, personagem pedante e cheio de afetação. Na página 226, Arana encontra Lavo: “Virou a cabeça: pressentira a sombra da mulher aos pés dele, e me puxou para perto da parede; tirou da carteira uma cédula, a dobrou e atirou ao tronco da árvore. Olhou para a roda de mendigos e fez uma careta de asco: leprosos. Enxugou a boca com um lenço”. Três páginas depois, explica ao narrador: “Os motivos nascem com a gente, e a escolha das cores, as pinceladas, a luminosidade e a perspectiva, tudo depende de um único indivíduo: o artista”.

O Brasil teve lá suas guerras e revoltas — todas repercutiram mais nas regiões em que ocorreram do que no país todo. A mais famosa talvez seja a Guerra de Canudos, graças à obra-prima de Euclides da Cunha (1866-1909), Os sertões. É suposto que a ditadura militar tenha marcado a história do país mais do que qualquer conflito. Se não, marcou ao menos a arte nacional — não são poucos os livros e filmes que falam do assunto, embora nenhum seja da envergadura de Os sertões. Outra possibilidade é a de pessoas que experimentaram os anos de chumbo quando jovens terem virado adultos dispostos a discutir o tema em seus trabalhos.

Hatoum viveu “intensamente” a ditadura e conta que caiu de cabeça no movimento estudantil. O fato histórico, porém, serve apenas de cenário a sua narrativa, cujo propósito é retratar o espírito da geração da qual fez parte. Segundo ele, a inspiração veio de Gustave Flaubert (1821-1880) e seu A educação sentimental.

O autor manauara procura criar expectativa com um segredo em torno de quem seria o pai biológico de Mundo. A resposta vem na penúltima página do romance e não surpreende. O que fascina é perceber que, à exceção da empregada Naiá, herdeira de um pequeno apartamento em Copacabana, nenhum personagem se dá bem. Ninguém é poupado — nem o cachorrinho de Trajano. A palavra desilusão não basta para dar conta de Cinzas do norte. Ele é o inferno de Hatoum.

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Cinzas do norte
Milton Hatoum
Companhia das Letras
312 págs.
Irinêo Netto
Rascunho