Obstinação no lugar de musas e oráculo

Entrevista com Milton Hatoum
Milton Hatoum: “a percepção do outro”.
01/09/2005

A foto na orelha de Cinzas do norte é de um homem que aparenta ter cada um de seus 53 anos. O cabelo ondulado e quase todo branco contrasta com o preto das sobrancelhas, como se um dos dois não fosse verdadeiro. Sorriso tímido e olhar que transmite segurança e tranqüilidade ilustram o rosto com traços — sem dúvida — árabes. Tão árabes quanto seu sobrenome.

Filho de imigrante libanês com uma brasileira, Milton Hatoum saiu de casa aos 15 anos para viajar o Brasil e o mundo. Viveu em Brasília, Barcelona e Paris e tem residências em São Paulo e Manaus. Antes de viver de direitos autorais, deu aulas de literatura em duas universidades — a do Amazonas e a da Califórnia, em Berkeley (EUA). É também colunista da revista EntreLivros que, em edição recente, elegeu Cinzas do norte o livro do mês.

Para os amigos, ele é de falar pouco, com olhar de quem vê tudo com desconfiança. Mesmo quando dá opiniões incisivas, o faz de maneira contida. Tal qual um poeta da lírica clássica árabe, Hatoum não consegue dissociar literatura de vinho e de paixão. E escreve porque tem desejo de escrever. Simples assim. Seu romance de estréia, Relato de um certo Oriente, lançado em 1989, venceu o prêmio Jabuti, o mais importante do Brasil.

Onze anos depois, Dois irmãos levou outro Jabuti, em caso inédito de autor a ter toda sua obra premiada pela Câmara Brasileira do Livro. Agora, Hatoum está de volta. Cinzas do norte é sua obra mais amarga e se desenvolve sobra a amizade de Olavo (Lavo) e Raimundo (Mundo), o primeiro é pobre e conformado, o segundo, rico e revoltado. A paisagem é a cidade de Manaus entre meados de 1950 e o início dos anos 1980.

Na entrevista a seguir, o escritor descreve o acontecimento de sua vida que melhor o define, fala de livros, de seus primeiros leitores — entre eles, Raduan Nassar — e do ato de escrever. “Faz tempo que a obstinação substituiu as musas e os oráculos.” Confira.

• Se, em meio a uma enchente, o senhor fosse obrigado a salvar ou A infância, de Graciliano Ramos, ou A educação sentimental, de Gustave Flaubert, qual seria e por quê?
Se fosse uma enchente amazônica, eu tentaria salvar minha própria pele antes de qualquer livro, pois sem leitor não existe literatura. Mas se pudesse apanhar um dos dois, ficaria com o livro de Flaubert. Isso por duas razões: a primeira é que, em 1969, quando estudava em Brasília, tive de ler A infância várias vezes. Sei de cor trechos de pelo menos dois capítulos, de modo que eu seria um náufrago perguntando à mãe do narrador o que é o inferno? Com a A educação sentimental minha dívida é outra… É um dos grandes romances da literatura. Um romance de formação, com um sentido histórico relevante, mas longe de ser um romance histórico. Para escrever uma breve história moral da minha geração, a fonte foi essa obra de Flaubert. Tentei também falar de outras coisas: a devastação da floresta, o autoritarismo do pai, a destruição de uma cidade. A história de uma amizade alterna com uma história passional, que envolve o tio do narrador e a mãe do amigo. Juntei muitas coisas, e tentei dar forma a tudo isso.

• O cineasta Stanley Kubrick foi famoso pela demora na produção de seus filmes — o derradeiro, De olhos bem fechados, levou 11 anos para ficar pronto. Em entrevistas, ele admitia se ressentir de sua lentidão. Embora se dedique paralelamente a outras tarefas — traduções, contos e palestras — e tenha vários textos não publicados — ou não publicáveis, segundo critérios pessoais —, o tempo que o senhor dedica a um livro chega a incomodá-lo (o suficiente, por exemplo, para querer entregar um manuscrito de uma vez à editora por estar cansado de conviver com ele)?
O tempo para escrever um livro é preenchido por um trabalho árduo e paciente, mas que dá prazer. Eu poderia ter publicado o Dois irmãos e o Cinzas do norte um ano antes, mas a leitura dos editores e de alguns amigos me convenceram a trabalhar mais… Percebi que podia melhorar o texto. O leitor percebe isso. Às vezes o leitor diz para si mesmo: se esse texto fosse mais trabalhado… Mas há um limite, inclusive físico, que nos obriga a colocar um ponto final. Se você ultrapassar esse limite, o texto desanda…

• Em Cinzas do norte, Mundo se aproxima do artista plástico Alduíno Arana por estar ansioso para conhecer e aprender mais sobre arte. O senhor parece valorizar, na história, essa relação entre pupilo e mentor. Quando decidiu investir na carreira de escritor, o senhor também contou com alguém para orientá-lo?
Por sorte, tenho amigos, grandes leitores que me ajudaram. Nos anos 70, fui aluno do Davi Arrigucci Jr., da Leyla Perrone-Moisés, do João Alexandre Barbosa. Esses críticos leram o manuscrito do meu primeiro romance, e isso foi importante. Raduan Nassar fez boas sugestões ao Dois irmãos. O Luiz (Schwarcz) e a Maria Emilia (Bender), meus editores, também acompanharam de perto a edição dos manuscritos e fizeram ótimas sugestões. Você não é obrigado a aceitar todas as observações, mas se a vaidade não for uma barreira, o diálogo aberto é sempre importante. Não se trata exatamente de uma relação entre pupilo e mentor, e sim do olhar crítico de alguém que interfere para melhorar o texto. Esse é o trabalho do editor. Depois de três, quatro anos escrevendo um texto, você já não sabe dizer o que é possível mudar.

• Qual o papel de Cinzas do norte em sua bibliografia e, principalmente, como ele se relaciona com os seus outros dois romances?
O papel cabe ao leitor dizer… Depois de publicado, a palavra é do leitor. Se possível, do bom leitor. Eu simplesmente tinha de escrever esse livro, as histórias faziam parte da minha vida e eu esperei o momento propício para juntá-las e armar o texto. Há algumas afinidades com os outros romances, pois é também um drama familiar. Mas de certo modo, vai além disso, porque discute o lugar de cada personagem na sociedade. E o narrador tem outras implicações, é um sujeito perplexo diante da ousadia do amigo e da relação deste com o pai. O centro simbólico do Cinzas do norte foi deslocado, já não é Manaus, e sim no interior do Amazonas, na ilha do artista Arana ou nas andanças de Mundo. São vários centros, cuja síntese é a perambulação, o desejo de encontrar um lugar… O lugar do artista, do filho enganado, traído.

• Nos 16 anos que separam Relato de um certo Oriente de Cinzas do norte, quais foram as principais mudanças que o senhor percebeu em sua forma de escrever?
Proust dizia que quando um escritor amadurece, ele perde conscientemente o élan, o arroubo e a virulência da juventude. Mas ganha na complexidade, no modo de narrar, nos significados ocultos. Penso que é um romance mais refletido, mais maduro, e a crítica tem acentuado isso.

• Existe Lavo, o advogado resignado e, de certa forma, frustrado, e Mundo, o artista sonhador e ousado. Na sua opinião, a vida costuma ser mais generosa com qual tipo de pessoas — ou todos estão destinados à desilusão em intensidades diferentes?
Os conformistas e alienados são menos atormentados. Talvez sofram menos. Mas todo ser humano vive no purgatório, que é o nosso dia-a-dia. De um modo geral, o artista é um dissidente, deve ter uma visão crítica. Crise e crítica têm o mesmo étimo. Uma pessoa que não exerce a crítica e autocrítica tem seu quinhão de paz garantido. A desilusão do romance não é a minha, embora alguns leitores digam que eu “pressagiei” o momento político atual logo na primeira página. Foi apenas uma coincidência, porque na abertura do Cinzas…, quando o narrador diz que deseja alijar-se das “discussões sobre o destino do país”, ele está se referindo ao fim do regime militar.

• Perguntado sobre o porquê de escrever, William Faulkner respondeu que escrevia “para ganhar a vida”. E o senhor?
Por desejo, porque gosto de escrever. Vinho, literatura e paixão. Para um poeta da lírica clássica árabe, são coisas inseparáveis. Mas se eu puder viver de literatura, não vou reclamar. Quanto a isso, nenhuma culpa. Jorge Luis Borges dizia que o fracasso não é garantia de nada. Depois de publicar o Relato…, em 1989, esperei uns dez anos para conquistar um público maior. Com o Dois irmãos esse público aumentou, e isso me deu um pouco de tempo para escrever. Não pensava que um dia ia viver de direitos autorais, viver modestamente, é claro. No caso de Faulkner, ele teve que escrever roteiros para ganhar a vida. Não deu certo, brigou com os graúdos de Hollywood e caiu fora. Mas, a partir do quarto romance, ele conquistou muitos leitores, sobretudo depois da recepção da crítica francesa à sua obra, inclusive os ensaios de Sartre. O que não quero fazer é publicar um livro para virar um best seller. Não entro nessa. Lembro de uma carta de Joseph Conrad ao seu editor. Ele dizia mais ou menos assim: “Acho que desta vez vai dar certo. O romance terá um grande público, etc”. Bom, ele só conseguiu esse grande público depois da novela Chance, uns quinze anos depois do primeiro romance. Na América Latina, poucos tiveram a sorte de García Márquez.

• O quão importante Manaus é para sua literatura?
Minha relação com Manaus é atávica e quase mítica. É a cidade da minha infância e de uma parte da juventude. Não havia tevê, de modo que vivia entre a escola, a rua e os balneários. Fui cantor durante dois anos e meu sonho de juventude era ser isso: um cantor ou um radialista, que nem o tio Ran do romance. Manaus é uma espécie de fonte que irradia questões, conflitos e uma memória sem fim. Isso acontece com muitos escritores, que reinventam sua cidade. Hoje, Manaus é uma cidade monstruosa, e muito cosmopolita. Nela moram milhares de paulistas, mineiros, sulistas e também estrangeiros de todos os lugares: da Índia, do Japão, de Taiwan, da Europa. A zona franca mudou o ritmo dos manauaras, mas a herança indígena no cotidiano ainda é considerável. E há o Negro, que é um dos mais belos rios do mundo. No começo do século, Manaus era conhecida como a “Sodoma do Norte”. Há muita loucura nessa Sodoma do equador… e mil histórias.

• Por que ambientar Cinzas do Norte nos anos da ditadura militar?
Porque vivi intensamente esse período. Mas a ditadura não é o assunto mais importante no romance. A violência está na figura do pai, na vida humilhada de Mundo, de Macau e de outros personagens, no cotidiano do Colégio Militar. Quanto ao personagem Zanda, o coronel-prefeito… Bom, foi uma desforra, minha e da minha geração. Ele foi um dos políticos do milagre brasileiro, e destruiu toda a cidade em nome do progresso.

• A necessidade de contar a história de Cinzas do norte surgiu de que forma?
Surgiu da minha saída de Manaus, em dezembro de 1967. Fui morar sozinho em Brasília, e isso foi um trauma. Eu e dois amigos de Manaus caímos de cabeça no movimento estudantil. Foi uma espécie de educação sentimental, com as decepções, as ambições, paixões, o diabo. Passei uns 15 anos viajando, morando em várias cidades, e aí decidi voltar. Romper com a minha cidade determinou muitas coisas, inclusive a posição dos narradores. E houve também a morte de um amigo. A idéia geral está focada na tensão entre a permanência e a fuga.

• Hoje, as narrativas em primeira pessoa, somadas aos livros de memória, infestam as prateleiras do mundo todo — entre os mais vendidos da Veja, por exemplo, mais da metade se encaixa em um ou outro gênero. É o domínio da literatura narrada pelo “eu”. Cinzas do norte também é narrado em primeira pessoa. Esse recurso torna mais fácil o convencimento do leitor?
Não, basta ler Em busca do tempo perdido, que nunca vai estar em lista dos mais vendidos. Os best sellers narrados em primeira pessoa são romances de ação, suspense, espionagem ou auto-ajuda. Não têm complexidade, não exploram a subjetividade problemática do narrador, os personagens são figurinhas de papel. São livros escritos para serem vendidos e depois filmados por Hollywood.

• Qual o acontecimento de sua vida que melhor define sua personalidade?
Sou filho de um imigrante libanês com uma brasileira do Amazonas. Cresci ouvindo várias línguas, e também histórias da colonização francesa no Líbano. Meu pai era muçulmano e minha mãe é católica praticante, mas nunca me obrigaram a ser crente, nem me impuseram uma religião. Desde muito jovem fui estimulado a aprender coisas sobre outras culturas e a respeitá-las. Isso foi fundamental para a minha formação. O nacionalismo e o patriotismo exacerbado podem levar à intolerância, podem cegar nossa visão crítica. Um outro acontecimento foi decisivo. Não foi fácil sair de casa tão cedo, sabendo que não podia mais voltar. Mesmo assim, não houve resistência na minha família e andei pelo mundo. Um dos pontos mais altos da literatura do Ocidente é o poema de Goethe: “Divã oriental-ocidental”. Ainda jovem, Goethe leu o Alcorão e a poesia de autores islâmicos, e entendeu que não há hierarquia entre as culturas. Essa é uma das definições de literatura: a percepção do outro.

• O senhor ainda mantém algum costume libanês em sua rotina?
Gosto muito da cozinha árabe e mediterrânea. Aliás, eu e milhões de brasileiros, e não apenas os oito milhões de origem árabe. Infelizmente não falo árabe. Falo alguma coisinha… Quando morava em Manaus, aprendi um pouco, o suficiente para escrever uma cena de duas páginas do Relato… Os costumes residem na memória: na voz do meu pai, nas conversas dos meus avós com os vizinhos, na roda em que fumavam narguilé debaixo da parreira plantada por minha avó, nas histórias das Mil e uma noites que os mais velhos contavam nas tardes de domingo.

• Existem escritores que se deixam levar pelos personagens — eles dizem que são suas crias que ditam a história. Já o senhor prefere começar um livro pelo fim. Esse método não acaba limitando seu trabalho — ou esse fim pode mudar ao longo da narrativa?
Muita coisa muda quando você escreve um romance. Por coincidência, comecei os três romances pelo fim, sem saber ao certo o que existia no resto, ou seja, em quase tudo. O desafio do romance não é a abertura e o desfecho, e sim o que une as extremidades, essa ponte sinuosa cuja travessia é imprevisível e surpreendente para o autor e também para o leitor. Começar pelo fim ou pelo meio é uma estratégia narrativa moderna e contemporânea. Palmeiras selvagens, de William Faulkner, começa pelo fim. Muitos contos de Machado de Assis e Jorge Luis Borges também. Não tenho certeza de que os personagens têm uma autonomia absoluta, porque não são construídos por Deus. Um escritor tem uma concepção ou uma noção de cada personagem. É verdade que os personagens se transformam, mas o essencial faz parte de uma concepção, de um esboço prévio. Muita coisa se deixa levar pelo imprevisível, mas alguém está sempre de olho nas coisas mais inesperadas. Alguém de carne e osso, pois não é preciso mistificar o trabalho literário. Faz tempo que a obstinação substituiu as musas e os oráculos.

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Irinêo Netto
Rascunho