O início e o fim

Com o autobiográfico “De amor e trevas”, o israelense Amós Oz se entrega a um belo acerto de contas com o seu passado
Amós Oz: trajetória peculiar.
01/09/2005

Um grande livro só merecerá o adjetivo se tiver um grande final.

Alguém já deve ter cunhado essa frase. Ou, no mínimo, dito algo muito parecido. Contudo, finda a leitura do romance De amor e trevas, do israelense Amós Oz, é inevitável que se volte a ela. Um gran finale, bem entendido, não implica necessariamente que ele deva ser grandioso, ou surpreendente, ou apoteótico, seja lá o que esses termos possam significar em literatura. Ele às vezes chega sorrateiro, de mansinho, e, com meia dúzia de palavras, traz um sentido inusitado ou maior que tudo o que veio antes. O bom final é aquele que remete ao começo, aguça-nos a vontade de ler tudo outra vez, ou simplesmente nos faz lastimar que o livro já tenha acabado, assim tão rápido. Do ponto de vista da criação ficcional, muitas vezes o autor escreve sabendo de antemão como vai terminar sua história, e a narrativa não serve a outro propósito senão o de construir o caminho que levará ao fim — um processo de descoberta às avessas.

O mais recente livro de Oz, que teve grande repercussão em Israel ao ser lançado em 2002, traz, em suas mais de 600 páginas, um relato nada linear. Autobiográfico, ele é conduzido da mesma forma que as reminiscências brotam na cabeça do autor: a ordem cronológica é quebrada a toda hora, diferentes focos narrativos se intercalam, e até mesmo o narrador eventualmente muda. Situações que já foram contadas voltam à cena várias vezes, assim como a descrição das características mais marcantes dos numerosos personagens. Em certos momentos, a atenção do leitor é posta à prova pelos constantes desvios: quando está totalmente envolvido por uma história, ele vê a narrativa se deslocar para outro tempo e lugar, causando às vezes a frustração de quem quer saber logo o que vai acontecer no que estava sendo contado — e Oz é um prodigioso contador de histórias, que sabe muito bem como envolver o leitor. Contudo, à medida que o livro se encaminha para o final, vai ficando cada vez mais óbvio que ele não poderia ter sido estruturado de outra maneira. E as duas derradeiras e maravilhosas páginas são redentoras de qualquer excesso que o autor tenha cometido antes de chegar até ali.

Amós Oz tem uma trajetória peculiar. Nascido em Jerusalém em 1939, sua infância coincide com a do próprio Estado de Israel, cuja independência aconteceu em 1948 mas que começou a receber imigrantes já no final do século 19, movimento que se acelerou na década de 30 do século passado, à medida que a perseguição aos judeus foi se intensificando na Europa. Sua família veio parte da Bessarábia, parte da Polônia. A mãe estudou em Praga. Esses imigrantes, em que pese a ascendência, eram antes de mais nada europeus, acostumados ao elevado padrão cultural daquele continente, e ressentiam-se com o fato de que estavam agora em terra asiática, que eles julgavam exótica e também menos civilizada. Se a venturosa (e não menos dolorida) saga dos imigrantes judeus ao Novo Mundo tem em Isaac Bashevis Singer seu mais vistoso intérprete, assim como as idiossincrasias típicas da comunidade judaica americana encontram em Philip Roth um de seus melhores e mais divertidos cronistas, o êxodo moderno dos judeus à Terra Prometida é o universo explorado por Oz. Ele descreve como era a vida de seus antepassados na Europa e a pressão que sofreram para que migrassem de uma vez para o seu “verdadeiro lar”.

A construção do novo país, por duvidosa que possa parecer a afirmação, dependia muito mais de braços fortes do que de cabeças preparadas. Na época, todos eram mestres ou doutores, que não raro viam suas pretensões acadêmicas se esfacelarem ao serem obrigados a ganhar a vida em ocupações menos nobres. Um bom exemplo disso, Oz tinha em casa: o pai, poliglota e profundo conhecedor de lingüística e literatura, com doutoramento em Londres, jamais conquistou um merecido e almejado cargo na universidade, servindo a vida inteira como bibliotecário. A mãe, também letrada, em Israel não era mais do que uma simples dona de casa, encantando às vezes as rodas de intelectuais promovidas pelo marido com intervenções brilhantes e pouco ortodoxas. O pequeno Amós era filho único, contrariando a tendência das famílias numerosas de então. Hoje ele rejeita a idéia de que seu livro seja autobiográfico, alegando que os pais — e não ele — são seus verdadeiros protagonistas. E não resta a menor dúvida de que o movimento central do romance gira em torno de um episódio de extrema gravidade na vida de Oz: o suicídio da mãe às vésperas de seu bar mitzva, a cerimônia da maioridade do rapaz judeu ao atingir os treze anos. Também não é por acaso que o principal da narrativa se concentra nos anos que antecedem a morte dela em 1952.

Sobre o tema da autobiografia, Oz dedica um capítulo inteiro — o quinto — dos 63 que compõem De amor e trevas:

“Então, o que é autobiográfico nas minhas histórias, e o que é imaginado?

Tudo é autobiográfico: se um dia eu escrever uma história sobre o caso de amor entre madre Teresa e Abba Eban, com certeza vai ser uma história autobiográfica, não há história que não seja confessional. O mau leitor quer sempre saber, e rápido, ‘o que realmente aconteceu’, qual é a história que está por trás, do que realmente se trata, quem está contra quem, quem afinal transou com quem. ‘Professor Nabokov’, perguntou certa vez uma jornalista em transmissão ao vivo numa rede americana de tevê, ‘professor Nabokov, diga, por favor, are you really so hooked on little girls?’”

E mais adiante:

“Quem procura a essência de um conto no espaço que fica entre a obra e o seu autor comete um erro: é muito melhor procurar não no terreno que fica entre o escritor e sua obra, mas justamente no terreno que fica entre o texto e seu leitor.”

Outra pérola vem no capítulo seguinte, coroando uma das mais saborosas passagens do romance, quando Oz, dentro do melhor espírito de humor judaico, narra as aventuras da avó paterna, que tinha fobia da invisível ação dos micróbios e envolvia toda a família em sua paranóia higienizadora. Para sustentar que ela morrera de “excesso de limpeza” enquanto se banhava, e não de infarto, vale-se então de um argumento tão extraordinário quanto imbatível:

“Os fatos têm o péssimo hábito de ocultar a verdade aos nossos olhos.”

A frase, muito além da ironia que encerra, é também emblemática da própria concepção do romance: por trás das várias e pitorescas histórias, corre uma outra, maior e mais profunda, que custa a vir à tona por ser extremamente doloroso para o autor o exercício de resgatá-la. Sob as meticulosas e inspiradas descrições da vida familiar, dissimulam-se a frustração do pai e a depressão da mãe, ambas respondendo por marcas indeléveis na vida do pequeno Amós. E não há como fugir da idéia de que o livro é também um acerto de contas com o passado.

Numa das últimas páginas, aparece uma foto dos Klausner (o nome de família de Amós, que adotou o Oz depois da morte da mãe e em sua homenagem: Oz quer dizer “coragem” em hebraico). A imagem chega a ser chocante: a mãe bonita e sorridente, o pai de semblante calmo e orgulhoso, o filho de tez muito clara e olhar esperto. Poderia ter sido tirada em Paris, Berlim ou Nova York, e o resultado seria o mesmo. Entretanto, não apenas a placidez da foto parece desmentir a trágica realidade dessa gente:

“Até hoje a minha caligrafia lembra a de meu pai: vigorosa, nem sempre legível, mas sempre enérgica, atestando a pega firme da caneta, muito diferente das letras serenas, redondas como pérolas, de minha mãe, um pouco inclinadas para trás, precisas e agradáveis de ver, escritas com mão leve, disciplinada, letras perfeitas e alinhadas como os seus dentes.”

Outro grande movimento está no próprio cenário. Os anos em que o Estado de Israel ensaiava seus primeiros passos, antes sob o domínio inglês e, depois do nascimento oficial, tendo de garantir a fogo suas fronteiras na luta contra os árabes que também disputavam o território e não aceitavam a existência do novo país, extrapolam a condição de mero pano de fundo e são magistralmente retratados. A reconstituição histórica é minuciosa, precisando datas e fatos. Personalidades importantes como Ben Gurion e Menahem Begin são apresentadas sem qualquer condescendência por quem presenciou a história e sabe dar a exata dimensão aos acontecimentos. Amós, que viria depois a se tornar ativista político — o que talvez explique um tom um pouco didático em alguns trechos —, foi testemunha privilegiada daqueles dias de expectativa que antecederam a célebre assembléia geral das Nações Unidas em 29 de novembro de 1947, presidida pelo brasileiro Oswaldo Aranha, que dividiu o território da Palestina em dois Estados e reconheceu assim a nova pátria dos judeus. Um dos momentos mais emocionantes é justamente quando, ao final da votação na ONU, Amós é despertado pelo fragor dos patrícios tomando de assalto as ruas para comemorar a decisão.

De amor e trevas foi escrito originalmente em hebraico, língua que tem uma história única e surpreendente: considerada morta por quase 2 mil anos, ela foi revivida no final do século 19 pelo movimento sionista, e veio a se tornar o idioma oficial de Israel. Oz conta alguns detalhes interessantes da reconstrução do hebraico, que teve de ser acrescido de palavras especialmente criadas pelas exigências do mundo contemporâneo. Um dos artífices da “nova língua” é um personagem carismático: professor Yossef Klausner, tio-avô de Amós e morador do distante bairro de Talpiót em Jerusalém, para onde o pai levava a família a cada dois ou três sábados, na tentativa de “nos educar a todos para que viéssemos a ser pessoas tão esclarecidas quanto ele”. De novo a verdade aqui foge dos fatos: a deferência do pai pelo tio solapava a mágoa de o parente famoso não ter usado o seu prestígio para conduzi-lo à universidade e à sua realização profissional. Vizinho de porta do professor Klausner, Samuel Agnon, Prêmio Nobel de Literatura de 1966, nunca aceitara um comentário feito por ele à sua obra, e desde então “uma lufada de gélida polidez, fria como o ártico, soprava instantaneamente” quando eles se cruzavam. Embalado por histórias deliciosas como essa, o nascimento da nação israelense ganhou com o romance um original e belo registro.

Para a edição brasileira, o romance foi traduzido diretamente do hebraico por Milton Lando. O trabalho resultou num texto correto e elegante, a despeito das enormes diferenças que se pode imaginar existam entre línguas tão díspares. O bom gosto também está presente em todos os detalhes do projeto editorial. Nada mais adequado a uma obra que já nasceu antológica.

E que final, que final!

De amor e trevas
Amós Oz
Trad.: Milton Lando
Companhia das Letras
617 págs.
Luiz Paulo Faccioli

É escritor. Autor de Trocando em miúdos, Estudos das teclas pretas, entre outros.

Rascunho