“O conto está em alta”, decreta Fulano. “Mas quando é que o conto deixou de estar em alta?”, questiona Beltrana. “O conto é o gênero que traduz com mais precisão os impasses da contemporaneidade”, sentencia Tirano. “Mas e o romance, a poesia e o teatro? Tais gêneros não podem ‘traduzir’, cada um de sua maneira, os impasses da contemporaneidade?”, rebate Sicrano. “Cada coisa é cada coisa”, filosofa Belbetrana.
Há algumas, muitas, discussões a respeito, por exemplo, do conto, da pertinência do gênero na contemporaneidade e mesmo a respeito do que é, ou não, um conto. Houve quem tenha criado um decálogo sobre o tema. Tem muita teoria — até demais. Otto Lara Resende, por sua vez, encontrou uma resposta inusitada. Em determinada entrevista, ao ser questionado sobre o que seria um conto, ele respondeu que conto era o texto de ficção produzido por Dalton Trevisan — e, realmente, o Vampiro de Curitiba é uma referência, um exemplo, um modelo, como contista. Então, seguindo a linha de raciocínio proposta por Otto Lara Resende, é possível — por que não? — dizer que conto são os textos fictícios produzidos não apenas por Dalton Trevisan mas também por autores como Newton Sampaio (1913-1938), Amílcar Bettega Barbosa, Sergio Faraco, Fábio Campana, Marcelino Freire, Paulo Sandrini, Mario Sabino, Domingos Pellegrini, Miguel Sanches Neto, Haroldo Maranhão e Jamil Snege, entre outros.
Jamil Snege, por sua vez, morreu em 2003 e seus livros, como Viver é prejudicial à saúde (novela), Como eu se fiz por si mesmo (romance) e Os verões da grande leitoa branca (contos), estão fora de circulação. Quem tem não vende. Não se encontra nenhum livro de Snege, por exemplo, nos sebos de Curitiba. É mais do que urgente viabilizar novas reedições para que mais leitores e leitoras tenham oportunidade de conhecer esse que é um dos mestres da literatura contemporânea. E foi pensando de maneira similar a essa que a Editora Planeta do Brasil recuperou 22 contos de Haroldo Maranhão — material anteriormente espalhado em oito livros já esgotados. O resultado está nas 190 páginas de Feias, quase cabeludas, já disponível em livrarias e demais pontos de comércio de livros.
Haroldo Maranhão (1927-2004) foi leitor, entre tantos autores, de Machado de Assis e Jorge Luis Borges. Seria possível aproximá-lo não apenas dos mestres citados na frase anterior, mas até de outros nomes. No entanto, é (talvez mais) pertinente apontar para temas que Maranhão problematizou. Um assunto que assombrou o paraense universal, sobretudo nos contos aglutinados em Feias, quase cabeludas, foi (e é) a morte.
A morte talvez seja o grande tema. A Indesejada das Gentes foi matéria-prima de textos tidos como clássicos, entre os quais A morte de Ivan Ilicht, de Leon Tolstoi, Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel García Márquez, e (da já mencionada mas indispensável novela) Viver é prejudicial à saúde, de Jamil Snege, entre tantas outras. O escritor Wilson Bueno, reconhecido pela crítica por obras como Mar paraguayo e Meu tio Roseno, a cavalo, superou-se (ainda mais) como ficcionista a partir do momento em que colocou o final da existência em perspectiva, em seu primoroso Amar-te a ti nem sei se com carícias. A morte também foi valiosa para a literatura de Haroldo Maranhão.
Nas últimas e A rede, Dona Bibi são contos que recriam literariamente momentos terminais. Nessas peças, o autor apresenta uma atmosfera melancólica e algum lirismo. Já O defunto e o seu melhor bocado vem temperado com humor. O personagem central, Salada, morre. E, apesar disto, continua com uma ereção — o que se traduz em um problema que exige solução imediata. E a solução aparece:
Até hoje, também nunca se descobriu quem decepou e escondeu a admirada tromba. Quem terá sido? Houve quem sustentasse haver sido o próprio homem da funerária, na ocasião do estampido e da debandada. Aproveitara-se da balbúrdia e julgara de simplificar o problema do ponto de vista da funerária. Seria só telefonar: “caixão normal, número maior, que o homem é gordo”. Pronto. Não acreditei e não acredito. Nas barbas da polícia? Não, ele nem teria presença de espírito, não ousaria. A viúva? Pobre Maída. […] Ora, como teria ela podido esconder a volumosa peça? Um desconhecido, entrado de roldão com os policiais? Não, não, não faria sentido, os que entraram da sala de nada sabiam, ninguém teria podido planejar e aquilo fora obra planejada, quem quer que tenha sido chamou a polícia, propiciou a confusão; […] Mas quem? (págs. 63 e 64)
Se, na ficção de Haroldo Maranhão, o sexo invade a morte, ele, o sexo, também é mote de outros contos do autor. Como as rãs traduz o espanto de uma criança que descobre que os pais faziam algo até então inédito para ela:
Foi quando ela quase gritou, a minha santa mãezinha, e o meu pai fez um bruto psiu que eu não gostei nada, ora bolas!, […] Aí eu vi ele pegar o travesseiro e pôr na cara da minha mãe. Então eu passei a ouvir bem baixinho os gemidos, mas também, pudera!, com toda aquela abafação no rosto, que podia muito bem sufocar ela, até matar. […] Aí firmei a vista, mas firmei bem, e vi: eles estavam nuzinhos-nuzinhos, talvez pelo calor, mas o meu pai estava por cima da minha mãe, amassando ela e ela querendo gritar e ele não deixando ela gritar, pobrezinha, que devia estar sofrendo agüentando aquele pesão. […] Foi quando de repente senti um estalo forte, e vi direitinho a mãozona do meu pai dar uma bofetada na minha mãe, enquanto ela falava: “bate, bate, bate” e ele então sapecava mais bofetes. (págs. 73 e 74)
A proposta literária de Haroldo Maranhão, como se constata, traz ecos do jornalismo, seja pela linguagem (que se quer compreensível) como pela meta jornalística (que pretende revelar um fato, um acontecimento). E o que é um conto senão uma revelação? (O conto pode, e até deve, ser muito mais que uma revelação, mas também é, acima de tudo, revelação).
Feias, quase cabeludas reúne contos que dialogam com a missão jornalística, seja ao apresentar um idoso que se vale de um consolo para proporcionar prazer a uma jovem, em Danações do Dr. Arthur; seja ao mostrar como variam as relações diurnas e noturnas entre um menino e a governanta, em Movimento no porão; seja ao descrever a conquista de territorialidade de um interiorano na capital, em Um paraibano no Rio; ou ainda ao insinuar que não se deve desdenhar nem brincar com o sobrenatural, em O poeta e a astróloga em Nova Iorque.
Haroldo Maranhão faz ficção a partir de variados motes, como, por exemplo, a partir da questão borgiana do duplo, em Amanhã embarco para a Basiléia; da eterna luta (vã) contra e com as palavras, no conto que dá título ao livro; além de empreender experiências humorísticas, em Vendredi-i, Gravatas para o João e Quiquiqui, e de “reunir” Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira em uma Imaginária conversa em mesa de bar. No entanto, o grande impasse, não apenas dele, mas de todos (não é mesmo?) é o desconhecido, é o esperado inesperado, é o mistério: a morte.
Ler a prosa de Haroldo Maranhão é encontrar problematizados alguns dos dilemas do homem do século 20. Ler os 22 contos de Feias, quase cabeludas é, por que não?, entrar em contato com o humano e seus impasses — esse humano que atravessa os tempos, e que atravessa (atravessou) o século 20.